Editora argentina lança compilação de literatura de autoria negra brasileira

Por Roger Lerina.

No castelhano rioplatense, quilombo é sinônimo de desordem ou bagunça. A palavra assim em espanhol assume uma conotação racista e silencia a história das resistências do povo negro na América. Termo de origem africana, oriundo da língua quimbundu, no Brasil colonial era como se chamavam as aldeias onde viviam os escravizados fugitivos. Pois foi com esse título potente e ambivalente que a argentina Tinta Limón batizou o livro que acaba de publicar no país vizinho. Quilombo uma coletânea de 288 páginas com 38 escritores e escritoras negros e negras que nasceram no século 20, em diversas regiões do país.

Segundo a editora, a proposta da obra é gerar um espaço de resistência dentro do campo literário brasileiro que circula em língua espanhola, radicalmente brancocêntrico. “Em um momento em que é difícil imaginar um Brasil respeitoso das diversidades e diferenças, publicamos este livro como bandeira do antirracismo e da esperança”, justifica a argentina Lucía Tennina, responsável pela compilação. A obra reúne nomes conhecidos das letras brasileiras, como Carolina Maria de JesusConceição EvaristoPaulo Lins e Solano Trindade, entre outros. Dois autores representam o Rio Grande do Sul: a santanense Eliane Marques e o rio-grandino Ronald Augusto. Confira a lista completa de poetas:

Solano Trindade / Carolina Maria de Jesus / Carlos de Assumpção / Oswaldo de Camargo Cuti / Conceição Evaristo / Geni Guimarães / José Carlos Limeira / Miriam Alves / Bell Puã / Esmeralda Ribeiro / Éle Semog / Eliakin Rufino / Paulo Lins / Márcio Barbosa / Gabriel Sãnpera / Miró de Muribeca / Ricardo Aleixo / Ronald Augusto / Edimilson de Almeida Pereira / Nelson Maca / Cidinha da Silva / Eliane Marques / Tula Pilar / Cristiane Sobral / Allan da Rosa / Mel Adún / Dinha / Livia Natália / tatiana nascimento / Elizandra Sousa / Helena Silvestre / Jennyfer Nascimento / Lubi Prates / Mel Duarte / Kika Sena / Meimei Bastos / Jarid Arraes.

O volume traz ainda dois estudos críticos sobre literatura brasileira contemporânea e as questões raciais, assinados pelos pesquisadores Regina Dalcastagnè e Mário Augusto Medeiros da Silva, além de entrevistas com vários dos autores selecionados. Professora de literatura brasileira da Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires e investigadora da Comisión Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (CONICET), a compiladora Lucía Tennina já publicou na Argentina estudos e antologias sobre poesia marginal brasileira, especialmente a produzida em São Paulo. Em sua introdução a Quilombo, a também tradutora justifica o escopo da obra:

“O objetivo principal da elaboração desta antologia é sublinhar a multiplicidade e diversidade da produção de escritores negros e negras do Brasil nascidos durante o século XX. Isso explica a amplitude geracional, o que permite mostrar a variedade de estilos e possibilidades de abordagem ao longo do tempo. O livro abre, neste sentido, com as vozes de dois autores emblemáticos – já falecidos – na produção de autoria negra, Solano Trindade e Carolina Maria de Jesus, e se encerra com jovens escritores treinados nos slams e saraus da poesia negra de cidades brasileiras. A essa extensão temporária foi adicionada a atenção para a origem dxs autorxs, evitando que a produção de São Paulo e do Rio (o eixo que concentra os maiores investimentos econômicos e culturais do Brasil) prevalecesse sobre outras regiões. Assim, o livro possui textos de escritores de São Paulo e do Rio de Janeiro, claro, mas também de de outros estados do Sudeste (Minas Gerais), do Nordeste (Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia), do Centro-Oeste (Distrito Federal-Brasília), do extremo norte (Roraima) e do Sul (Rio Grande do Sul e Paraná). Da mesma forma, por trás dos critérios de seleção de autorxs há uma preocupação especial para inverter a proporção androcêntrica comum em ambientes literários (e não literários) e dar uma maior porcentagem de presença a escritoras além da inclusão de uma poeta trans. Da mesma forma, cabe esclarecer que o que “norteou” o critério de seleção dos textos foi a seu qualidade literária. O esforço desta antologia está inscrito na necessidade de mostrar a riqueza e sofisticação dessa produção, expor diferentes estilos e diferentes formas de expressar o vivido, em função de pensar a literatura desde uma perspectiva mais plural e interessante.”

Leia dois poemas traduzidos para o espanhol em Quilombo:

ELIANE MARQUES

26

resta en la médula de las cosas

allí donde soban complotados

los sapatos

 

si pudiese fracturarlas

recostarlas sobre la cama

 

si el crimen alguien lo inventase solamente con el llanto

pero tiene allá su caballo moro un trapo para la loza

y otro (más pequeño) para los pocillos de estaño

 

la negrita dada al servicio de la casa

cuerpo que se aquieta en el tropel de los infantes

 

cuerpo al que se desestima

el boleto del passaje

un cuerpo pequeno un cuerpo extraño

 

a su brazo no le basta la cabeza con piojos

aplastarlos como castañas

 

ese brazo entregado al servicio de los otros

tiene allá su caballo moro su ruido sus azotes

tiene allá su caballo moro su aroma su crin

contra la fuerza que se opone a las insistencias del muerto

 

la negrita brazo de la casa

loza partida entre tantos

 

la negrita dada al servicio de la casa

tiene allá su caballo moro

yo dije: tiene allá su caballo moro

yo dije: tiene allá su caballo moro

 

RONALD AUGUSTO

Pesadilla de la historia

para que el mundo no pise al revés al negro

que soy hasta de alma

con riesgo forzaron a ver navios

 

apartándolo de la salvaje tierra

de los enemigos y de los suyos

no hay cómo no roerle la mecha

de ahí para que intento y estética

intercambien como quien se cambia el abrigo

será nada y bueno al señorío

mal negocio señor vía diversa

 

(en la regla de los nuevos hechos) fui con calma

hasta donde embiste bien alto el río

repliqué con dientes más presas de sierra

tallo de ruda en la oreja macaca

 

ahora la garganta de tu sueño triturado

envoi

pues muchos duermen temiendo lo oscuro

crucifijo en el cuello casi absurdo

los que aún despiertan vivos dan las gracias

se sienten pagados a flor de raza

 

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