Economias locais sofrem com desmonte do setor naval

Foto Ivan Bueno/APPA. Fotos Públicas

Por Cristina Pereira Vieceli e Rodrigo Leão.

Historicamente, a Petrobras teve um papel importante para alavancar os investimentos na estrutura produtiva brasileira, em especial pelo fato de ser uma empresa intensiva em capital e apresentar forte sinergia com diversos segmentos da indústria. Esse papel foi reforçado em 2003 em razão da expansão acelerada dos investimentos da estatal e também pela articulação de uma política denominada de “conteúdo nacional” que ampliava a sinergia entre os investimentos e a aquisição de bens de serviços da Petrobras com a indústria nacional. Tal política se estruturou sob três pilares: (i) a definição de percentuais mínimos para aquisição de bens e serviços na atividade de exploração e produção em território nacional, fortalecendo a indústria para-petroleira nacional; (ii) a criação de novas fontes de financiamento e de qualificação para a indústria fornecedora ao setor de petróleo e gás (P&G) e; (iii) a formação de uma nova empresa nacional que seria responsável pelo afretamento de sondas utilizadas pelas Petrobras, construídas em estaleiros brasileiros.

Em primeiro lugar, o Conselho Nacional de Política Energética, em julho de 2003, com o estabelecimento da Resolução n. 8, estabeleceu que a fixação de percentual mínimo de conteúdo nacional para o fornecimento de bens e serviços utilizados na exploração e produção de petróleo e gás natural deveria ser ajustada permanentemente à evolução da capacidade de produção da estrutura produtiva local e aos seus limites tecnológicos. Isto é, a expansão da demanda da Petrobrás deveria ser articulada à capacidade de oferta da indústria nacional. Como resultado, um percentual cada vez maior das compras do setor passou a ocorrer no Brasil. Na décima primeira rodada de licitações de blocos de petróleo, ocorrida em 2013, por exemplo, estabeleceram-se que 76% dos equipamentos e serviços nas etapas de desenvolvimento e produção seriam adquiridos no país.

Em segundo lugar, em texto recente, Leão e Vilain (2017) destacam que foram criadas novas linhas de crédito a fim de subsidiar a atuação de empresas nacionais, a partir do  Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dentre esses, cabe mencionar o estabelecimento de taxas de juros e participações diferenciais nos financiamentos com recursos no Fundo da Marinha Mercante (FMM) – uma linha de crédito específica para a indústria naval – bem como a criação do Fundo de Garantia à Construção Naval (FGCN), com o objetivo de minimizar o risco de crédito com as operações de financiamento das construções de embarcações.

Especificamente em relação à indústria naval, Cardoso e Serrao (2015) ainda lembram que o governo federal impôs a obrigatoriedade de se produzir plataformas e embarcações da Petrobrás pela indústria brasileira.

Além disso, a criação do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp) atuou fortemente na oferta e demanda de qualificação para o setor de P&G. A ideia era articular a demanda das operadoras de petróleo e gás natural com programas específicos de qualificação para tornar um contingente da força de trabalho capaz de atender às necessidades das empresas do setor.

Em terceiro lugar, a criação da Sete Brasil organizaria a demanda por plataformas para a realização das atividades de exploração e produção em função das expectativas de expansão da produção de petróleo, num contexto em que a Petrobras seria a única operadora dos campos do pré-sal. Essa demanda extraordinária mobilizaria diversos estaleiros nacionais e outros setores fornecedores da indústria de P&G (metal-mecânica, bens de capital etc.). Segundo estimativas da própria Sete Brasil, seriam necessários, para a construção das 29 sondas da Sete Brasil, investimentos de aproximadamente de US$ 26 bilhões. Isso implicaria na demanda para “instalação ou a ampliação e modernização de 5 novos grandes estaleiros no Brasil, gerando aproximadamente 120 mil empregos, diretos e indiretos” (LEÃO, VILAIN, 2017).

Essas medidas, no seu conjunto, ampliaram fortemente os investimentos não apenas na cadeia de P&G, como nos segmentos de fornecimento (indústria naval, metalúrgica, bens de capital, manutenção de equipamentos etc.), além de gerarem resultados positivos na criação de empregos e expansão das receitas fiscais para os governos federal, estaduais e municipais.

Todavia, a ascensão do governo de Michel Temer desorganizou esse arranjo impactando fortemente no acesso ao crédito e na proteção às empresas brasileiras. O aumento dos custos de operações de crédito no BNDES com o fim do taxa de juros de longo prazo (TJLP), a redução dos percentuais de exigência de compras nacionais, a retirada da obrigatoriedade da Petrobras ser operadora única do pré-sal, foram algumas das mudanças que desorganizaram a sinergia criada na indústria de fornecimento de bens e serviços e  de exploração e produção de P&G no Brasil.

Além disso, as formas de punição consagradas na Operação Lava Jato – que inviabilizaram a atuação de diversas empresas fornecedoras da Petrobras, inclusive a Sete Brasil – e as políticas de desinvestimentos da Petrobrás afetaram na capacidade nacional de atender à crescente demanda do setor de P&G. Com efeito, muitas operações têm sido transferidas para o exterior, especialmente para a China, bem como diversas empresas entraram em recuperação judicial, a exemplo da Iesa Óleo e Gás, e Ecovix, no Rio Grande do Sul. Os maiores prejudicados foram as economias locais com a destruição de postos de trabalho, que em algumas regiões chegou a mais de 90%.

Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) mostram que, a partir de 2015, após um período de grande expansão dos empregos na indústria naval, houve uma destruição dos postos de trabalho. As estimativas são de que o estoque de emprego tenha chegado a 34.372 vagas até junho de 2018, uma queda de 52% em relação a 2014.

GRÁFICO 1

Fonte: RAIS/CAGED – Ministério do Trabalho e Emprego. Foram consideradas as informações fora do prazo. *Estimativa

A queda nos empregos atingiu principalmente as economias locais e pequenos municípios, onde os principais estaleiros estavam instalados. Nestas localidades, houve uma diminuição total de 58,76% nos postos de trabalho, entre os anos de 2014 a junho de 2018. Na região sul do país, o estado de Santa Catarina perdeu 33% dos postos de trabalho no segmento, principalmente por conta da queda no número de vagas no município de Navegantes, que passou de 3.333 para 1.242, uma redução correspondente a 62,74%. Já o município de Itajaí permanece com crescimento de postos, devido ao polo catarinense, além de atuar no setor de P&G, principal segmento atingido pela crise, também produz rebocadores e navios de apoio marítimo.

O Rio Grande do Sul, acompanhando a tendência brasileira, apresentou uma queda profunda do número de postos de trabalho, diminuindo em 54,52% o número de vagas no período de 2014 a junho de 2018. O desenvolvimento do polo naval gaúcho foi estruturado através da política de Arranjos Produtivos Locais (APLs), que fundou o APL Petróleo, Gás, Naval e Offshore de Rio Grande e o APL Polo Naval do Jacuí. O polo Naval de Jacuí, situado no município de Charqueadas, foi criado em 2012, através de um contrato da Iesa Óleo e Gás com a Petrobrás para fornecimento de 24 módulos para seis plataformas de exploração de petróleo no pré-sal (PELLEGRIN, ET AL, 2017). No entanto, a empresa, que foi desativada por envolvimento na operação Lava Jato, entrou em recuperação judicial e as operações foram transferidas para a China.

Os principais municípios em operações e número de trabalhadores são Rio Grande e São José do Norte, localizados na região Sul do estado. Em 2014 o município de Rio Grande possuía 7.483 trabalhadores, passando a 3.386 em 2018. São José do Norte contava em 2014, com 817 trabalhadores, caindo para 389. A região possui três principais estaleiros, dois localizados no município de Rio Grande, o Estaleiro Rio Grande (Ecovix) e o complexo QGI, e o Estaleiro Brasil, localizado no município de São José do Norte. Em junho deste ano, foi aprovado o plano de recuperação da Ecovix, no valor de R$ 7 bilhões, prevendo o alongamento da dívida por 20 anos, com desconto de 76% nos créditos de credores sem garantia, A empresa procura investidores para concluir a plataforma P-71 e a criação de uma unidade produtiva isolada (UPI), responsável por movimentações de cargas, processamento de cargas para a indústria metalmecânica e reparos nas plataformas petrolíferas e embarcações.

A possível sobrevida do estaleiro Ecovix, no entanto, não garantirá a permanência do desenvolvimento da região, já que a regra, é que cada vez mais plataformas e equipamentos do pré-sal sejam transferidas para China, Noruega, Holanda entre outros. Recentemente, além da transferência de plataformas que seriam construídas no Brasil para a China, novas unidades tem sido afretadas do exterior para realizar a produção de petróleo no país. Em janeiro de 2018, por exemplo, a Queiroz Galvão – operadora do campo de Atlanta na Bacia de Santos – contratou um sonda construída no estaleiro holandês Damen Shiprepair para desenvolver atividades de exploração desse campo. Isso evidentemente significa uma transferência direta de emprego e atividade produtiva do Brasil para o exterior.

Retomando o caso da região Sul, descontados os os vínculos no segmento naval, entre 2015 e 2017, já tinham sido eliminados mais de 4.500 postos de trabalho, saindo de 47.251 para 43.866 trabalhadores, uma queda de 7,2% em dois anos e meio, com forte impacto nos setores da construção civil (-17,5%), comércio (-12%) e serviços (-5,9%). Esse é apenas mais um exemplo de que a destruição do parque produtivo nacional atrelado à Petrobras, ao contrário do amplamente divulgado, significa a migração de emprego, renda e tecnologia para o exterior. Nesse roteiro, enquanto as empresas estrangeiras assistem ao crescimento da sua produção e emprego, as brasileiras quebram e a taxa de desemprego sobe dia após dia. A sua continuação só pode levar a um fim trágico para o país e, principalmente, para a classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

CARDOSO A.; SERRAO, R. Diagnóstico da indústria de construção naval. In: Cardoso A. As faces da indústria metalúrgica no Brasil: uma contribuição à luta sindical. São Bernardo do Campo: CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS METALÚRGICOS – CNM; DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTUDOS SOCIECONÔMICOS – DIEESE., 2015.

LEÃO, R. P. F.; VILAIN, C. S. A substituição da Política de Conteúdo Local pelo conteúdo internacional. GGN Política Industrial/JornalGGN. São Paulo: 22 de agosto de 2017.

PELLEGRIN, I., JÚNIOR, J., COESTER M. A política industrial e o desenvolvimento da indústria oceânica e polo naval no Rio Grande do Sul In: ANTUNES JR. J. , HORN C. H.; PELEGRIN I.; VAZ E. E.E A. Remando contra a maré: política industrial e desenvolvimento econômico no Rio Grande do Sul (2011 – 2014). Porto Alegre: Bookman, 2017

 

Rodrigo Leão é mestre em desenvolvimento econômico (IE/UNICAMP). Atualmente, é diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (INEEP) e pesquisador visitante do NEC-UFBA. É integrante do Movimento Economia Pró-Gente.
Cristina Pereira Vieceli

Cristina Pereira Vieceli é  doutoranda em economia (UFRGS), técnica do Dieese e integrante do Movimento Economia Pró-Gente.

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