E passando pela cozinha, temos Clarice Lispector

Por Francieli Borges, de Porto Alegre, para Desacato.info.

            A frase-título que não deveria existir desse texto que era melhor que não fosse escrito saiu da boca de um professor de uma universidade pública que se lambuza em alardear sua excelência açucarada. Essa chamada é chocante porque ninguém imagina que tal entendimento de funções inerentes aos seres humanos, carregadas de um desprestígio equivocado e historicamente construído, seja abertamente pronunciada em pleno 2016, em um espaço que se pretende democrático e é mantido com os esforços do contribuinte – inclusive de muitas mulheres. Acontece e com frequência surpreendente. O assunto era a historiografia literária brasileira e ouvíamos, nós, os alunos, as frases sonolentas de sustentação do cânone. Quando a década de 1940 era explorada, no esquema impossível do quadro, tal sentença, inacreditável, explodiu. De repente, a questão: o conhecimento depende das determinações do interesse em causa.

            Há algumas semanas aconteceu a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que muito sintomaticamente, apesar de evidenciar Ana Cristina César, colocou a escritora em segundo – ou em terceiro, ou quarto – lugar nas discussões. Parece que até mesmofoi debatida a beleza da poeta e tradutora em detrimento do valor de suas obras.

            O que essas situações têm em comum, entre muitos tortuosos caminhos que poderiam ser postos, é a concepção autoritária e fortemente idealista das prioridades de temas nas discussões das humanidades e, se seguirmos, nofalseamento dos mecanismos de opressão, mantidos por ideologias francamente conservadoras. Idealistas porque inúmeras vezes há a recusa deliberada de aproximar investigação literária e conflitos sociais, estabelecendo, consequentemente, normativas políticas e morais problemáticas. Isso nivela as condições de existência, como se estas fossem as mesmas para mulheres e homens, negros e brancos, heterossexuais e homossexuais, empregados e chefes, assim por diante. E são tão falsas que no primeiro momento em que há a chance da impunidade, o sistema repressivo funciona, tanta vezes no formato de chacota sem graça semelhante a que deu título a esse texto, marcadores escrachados de uma suposta superioridade.

            Nas investigações artísticas é muito frequente, além dos argumentos truncados e confusos para reclamar respeito, a utilização de expressões como “experiência universal e verdades comuns a todos”, sendo os outros temas “menores” – essa é a estratégia recorrente de muitos segmentos das áreas de Letras, Artes e Ciências Humanas. Se houver o interesse de pesquisa dos temas desprestigiados, atentos à presença da barbárie à sua volta, é só esperar que logo haverá a acusação de “trampolim político”. O propósito é tornar irreconhecíveis os conflitos humanos, como se não afetassem e não fossem afetados pelas condições de produção e recepção, como se fossem imanentes no mundo. Enganam-se.

            Em qual lugar é possível que a compreensão do mundo seja a mesma entre um herdeiro das oligarquias rurais e uma mulher negra moradora da periferia? Que ciência é essa que não se preocupa em ignorar as diferenças gritantes de qualidade de vida, de referências, de oportunidades? Quem quer a ilusão de um mundo conciliado? Que perda de privilégios envolve fazer falar quem historicamente não teve direito à manifestação?

            Semelhantes comentários, como esse que inicia a leitura aqui proposta, não podem passar impunes, sem necessária reflexão, porque já não se esconderão sob o manto da ingenuidade de deslizes, de uma boa-fé ao grande humanista que se diz aquele professor que acusa autoritarismos mas que é o mais legítimo pensador autoritário. Uma frase solta assim, gratuitamente, grita muitas concepções e tranquilamente coloca em dúvida opiniões frequentemente tidas como inequívocas. A rejeição intencional à discussão dos problemas sociais não tem mais lugar.

*Clarice Lispector continua a atrair gerações de leitores. Nos romances e contos da autora, a complexidade insinuada nas entrelinhas agarra quem as lê. O que alguns críticos chamaram de inflexão intimista talvez seja um salto de compreensão e desafio da realidade.

**Ana Cristina César foi tradutora, ensaísta e poeta. Seus textos e sua visão poética do mundo nunca param de nos dizer.

***As questões aqui abordadas também são fruto da leitura da obraCrítica em Tempos de Violência, de Jaime Guinzburg, trabalho de fôlego e honestidade intelectual louváveis.

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