Dos totens do nosso tempo

Por Elaine Tavares.

Um totem é um uma construção sagrada, feita pelas comunidades, para designar sua relação com o transcendente. Pode ser a figura de um animal, pode ser uma figura mítica, pode representar alguém. O fundamental de sua existência é justamente estar ali, para lembrar que existe algo profundo no humano, que se conecta com a beleza suprema do sagrado. Não é religião, é abertura reverente para o não-sabido.  São comuns nas comunidades originárias, que nunca caíram na armadilha do monoteísmo. Ou seja, gente que não é a escolhida de um deus, mas que é capaz de compartilhar o mundo com várias entidades consagradas.

No mundo moderno também vamos construindo nossos totens, sejam eles reais ou simbólicos. Troncos fincados no chão que existem para nos chamar, nos interpelar, nos carregar de volta para nosso lugar sagrado. Algumas pessoas reconhecem como totens, os xópins, por exemplo. São seus lugares de devoção. Outros elegem determinadas igrejas, onde descansam seus corpos na dura batalha da vida. Há os que constroem totens com dinheiro, acreditando que ali está a redenção para todas as dores. E há ainda aqueles que erguem totens a partir de pessoas e ideias.

Desde bem pequena escolhi o meu, construído ao longo da vida, com desenhos e rostos. Imagens de vida boa, gente sorrindo, Minha mãe, Che, Camilo, Farabundo Martí, Sandino, José Martí, Zumbi, João Cândido, Chiquinha Gonzaga, Fidel, Carlos Fonseca, Juana Azurduy, Bartolina Siza, Anita Garibaldi, Dandara. Pessoas que, de um jeito ou de outro deram sua vida por um mundo melhor.

Ontem, quando Fidel encantou, fui acarinhar seu rosto no desenho do meu totem, esse que fica à entrada de mim, sempre me lembrando de que a vida só tem sentido se for para todos viverem em abundância. Chorei. Não por ele, que teve vida tão plena e se foi como quis, sem nunca se dobrar. Chorei pelos que não entenderam até hoje o que foi e o que é a revolução cubana. A obra de um povo, não de um homem.  Realizei minhas rezas e cerimônias, imaginando o gigante chegando ao paraíso, encontrando com todos os que, com ele, realizaram essa obra de amor. Sim, eu creio no paraíso, esse lugar onde as almas descansam.

A revolução não é um jogo de contas de vidro. É a explosão violenta de um povo oprimido também por violência. É campo de morte, de dor, de decisões duras. Mas, é construção de caminhos que levam ao bem-viver. Crianças nas escolas, comida na mesa, saúde de qualidade, arte. Cometem-se erros. Mas, claro, as revoluções são feitas por homens e mulheres. Não por santos. O que vale é reconhecer, fazer  autocrítica e seguir.

As figuras que compõem meu totem são criaturas humanas, com seus claros e escuros. Não são heróis, são caminhos. Veredas abertas chamando para o grande meio-dia. Não os reverencio por santos, mas por sua dolorosa e pungente realidade. Não peço licença por isso. É o meu totem. É a minha entrada da alma.

Nesses tempos obscuros do novo século, diante da inexorável perda física de Fidel, começo a esculpir novas caras no meu tronco sagrado. Três deles ainda vivos. Mais na frente, com certeza, serão lembrados como os que mudaram o mundo. Snowden, Assenge e Bradley Manning. Cada um deles, a sua maneira, e com objetivos diferentes, colocaram à nu o império. Snowden e Assenge, exilados de suas pátrias, vivendo como fugitivos. Bradley encarcerado numa solitária, nu, quase enlouquecido, dentro do país que tanto ama, e pelo qual decidiu revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelos exércitos de ocupação. Ele pensava, na sua ingenuidade, que se o governo dos EUA soubesse o que acontecia  no Iraque, iria por um fim em tudo aquilo.  Não, deram fim foi nele.

Nenhum desses três é comunista sanguinário. Não. São pessoas que querem viver na verdade. Que também sonham com um mundo livre, de pessoas soberanas.

Tampouco eu sou sanguinária, ainda que comunista. Preencho-me de ternuras e amores, de sonhos de vida boa e sigo, acendendo meus incensos, dizendo minhas orações, reverenciando meu totem sagrado. É esse tronco esculpido de gentes, desejos, lágrimas e risos que pontifica à porta de mim. Ali estão todos os mortos que nunca morrem, os que guiam meus passos e enchem os meus cântaros da água mais pura: essa que verte do desejo mais doce da “eko porã”, a vida bonita, como dizem os Guarani.

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