Do picaresco ao fantástico

Por Clóvis Campêlo.

Um dos aspectos que caracterizam as obras de Gilvan Lemos é a presença do elemento picaresco. Surgido na Espanha medieval, o romance picaresco, cuja obra mais representativa entre nós é o “Dom Quixote”, de Cervantes, representou uma significativa transformação na literatura ocidental por deixar de lado a narração dos sentimentos “nobres” e os atos heróicos da aristocracia dominante, para mostrar as camadas mais marginalizadas da população atuando como protagonistas em suas lutas pela sobrevivência.

A grosso modo, do ponto de vista político e social, tal transformação indica uma fissura na estrutura do poder da época que culminaria com a queda da aristocracia e a ascensão burguesa.

Segundo os estudiosos do assunto, a participação dos pícaros na literatura espanhola medieval segue uma linha evolutiva que se inicia mostrando-os como vítimas e marginalizados, passando pela sua integração social, sempre através mentiras e artimanhas, até a sua completa ascensão ou a deliquência irrecuperável.

No romance “O Anjo do Quarto Dia”, de Gilvan Lemos, vamos encontrar estes três estágios caminhando paralelarmente: o primeiro, representado pela prostituta Piranha; o segundo, pelo contemplativo Codó; o terceiro, pelo poderoso Oricão.

No entanto, como a ascensão do pícaro à condição de dominador, na figura de Oricão, não significa a subversão da ordem estabelecida, encampando Oricão a estrutura do poder constituído, o autor apela para o fantástico enquanto força restauradora da justiça entre os homens.

É aí que surge o anjo do quarto dia para restabelecer uma condição de equilíbrio e igualdade.

Recife, 1993

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