Do luto à luta: pelo fim do transfeminícidio

Por Berenice Bento.

Deixem-nos respirar. Deem-nos tempo, um mínimo, para elaborar nossos lutos, chorar nossos mortos. Ainda quando estávamos estarrecidos, nos perguntando até quando Dandaras continuarão a ser assassinadas, temos que nos debruçar sobre outro corpo. Camila, a Camilinha, uma jovem transexual de Salvador, teve seu corpo perfurado por 15 balas. Seu corpo foi encontrado abandonado em uma BR. Uma bala não bastaria para matá-la? O que esta fúria materializada em balas significa?

Até quando teremos que continuar perguntando “até quando”? Eu me lembro de quando explodi em choro, tristeza, angústia, ao ler a notícia que uma transexual brasileira, Gisberta, tinha sido assassinada em Portugal por 15 jovens e me fiz esta pergunta: até quando? Naquele dia, escrevi um artigo publicado em algum jornal. Era o mês de março, o mês do “fim do caminho, do pau, da pedra, fechando o caminho”. Cito:

“Quem a matou? Um homem? Dois homens? Não. Quinze adolescentes a torturaram durante horas, abusaram de seu corpo de todas as formas e, depois, a jogaram num poço. O laudo pericial apontou como causa da morte: afogamento. Ou seja, ela ainda tinha vida quando foi atirada no poço. Por que a morte de Gisberta não repercutiu no Brasil? Por que o silêncio? Por que tanto ódio?” (Um minuto de silêncio, em março/2006)

Gisberta, Dandara, Camila… O que está por trás do dado assustador que coloca o Brasil como o país campeão em assassinatos de pessoas trans e travestis? Se o seu estômago está conectado com seu coração tente ler as descrições dos assassinatos das pessoas trans e travestis no Brasil. Você talvez reconheça, como eu, que muitas vezes as palavras sucumbem e o que surge é uma reação física, inesperada e incontrolável: desejo de vômito, misturado com choro e dor no peito. Dandara, carregada no carrinho para entulhos, para lixo. Dandara, aquilo que ninguém quer e que deve ser destruída. Um corpo-lixo.

Para substituir o vômito, idioma corporal que surge quando não há palavras, eu tentei e ainda tento entender o que leva uma criatura a matar, em plena luz do dia e do luar, outra pessoa. Os assassinos de Dandara agiam sem timidez. Cada um queria provar que era capaz de proferir o melhor golpe. Eles não reconheciam nenhum ponto de conexão, ou de identificação, com a pessoa que suplicava para não morrer. Pareciam, diria, até orgulhosos por seu trabalho impecável de legítimos contribuidores da limpeza do mundo daquela merda, um “viado feio”. Faziam um trabalho de saneamento básico e Dandara era o resto que deveria ser levado e despejado em algum lixão.

Este projeto de limpeza tem cúmplices, tem nomes. Vocês, professores/as, deputados/as, juízes, mães/pais que acham que seu mundo é a medida da verdade, são cúmplices dos assassinos de Dandara. Vocês não querem mudar nada, nada. Escola sem gênero, negação de todo direito humano às pessoas trans e às travestis. Quem lhes deu este direito? Deus? Parem de transformar Deus em assassino. Ele deve estar cuspindo, vomitando todas as suas preces que justificam os assassinatos. Como Lady Macbeth, o sangue das Dandaras, Camilas e Gisbertas já migrou, não está mais aparente. Não está mais visível. Desejo-lhes pesadelos piores que os da rainha assassina da Escócia.

Nos últimos quase 20 anos tenho discutido gênero com professores/as, advogados/as, políticos/as… Nestas quase duas décadas o discurso se repete: “O que fazemos quando um aluno pede para ser chamado por nome feminino?”; “ah, mas a biologia diz que…”; “não estamos preparados/as para esta discussão…”… e por aí vai. Comecei a desconfiar que todos estes argumentos são, em boa medida, desculpas retóricas para não proteger, por exemplo, os/as estudantes que sofrem perseguição por não terem comportamentos “adequados” para seus gêneros Ora, você precisa de curso de altos estudos para entender que um ser humano está sendo assassinado? Você precisa de um diploma de doutor/a em estudos de gênero para entender que o seu papel como professor/a é não permitir nenhum tipo de violência contra os/as estudantes? A nossa sociedade está plena daquilo que Clarisse Lispector chamou de “sonsos essenciais”.

O que faz com que a minha “humanidade” não me ligue, me conecte com outro ser que tem olhos, boca, fala, pele, rosto e a mesma corporalidade que a minha? Por que ele/ela não pode ser digna de viver? Para termos direito a viver devemos agir de acordo com as expectativas sociais ditadas pela nossa genitália? A genitalização da humanidade nos diz que nada pode existir fora desta estrutura binária: mulher = vagina, homem = pênis. O que fez Dandara? Ousou contra a lei que funda a noção de humanidade: a diferença sexual.

“Mas as mulheres trans e as travestis não têm vagina”, foi um dos comentários que li na reportagem sobre o caso Dandara publicado no New York Times. Então, posso deduzir, que ter uma vagina assegura as mulheres não trans a certeza de que não sofrerão violência? Mas elas também são brutalmente assassinadas. Tanto as mulheres trans, as transexuais, as travestias e outras corporalidades sofrem vários níveis de violência de gênero. Por quê? Há um ponto de unidade fundamental entre as múltiplas feminilidades (e incluo neste campo as bichas): os femininos estão condenados a padecer no paraíso. Está na bíblia, no livro Gênesis. Parir, sofrer as dores do parto é uma metáfora que unifica as múltiplas corporalidades e performances femininas.

Talvez não tenhamos nos dado conta que há uma sinistra coincidência: países onde há elevado índice de feminicídio lá também as mulheres trans e as travestis são corriqueiramente assassinados. É o caso do Brasil e do México. Há, portanto, pontos de unidade entre o feminícidio e o transfeminicídio que revelam, nos empurram, para uma conclusão óbvia. A motivação dos assassinatos das mulheres trans e das travestis é por performatizarem o gênero feminino.

Qual o desdobramento político desta formulação? Todas as políticas públicas com as marcas de gênero devem ser acionadas pelas pessoas trans e travestis. Todos os crimes devem ser entendidos como motivados por questões de gênero. Mas ainda é pouco. Não me digam que não devemos discutir gênero nas escolas. Contra os sonsos essenciais, a desobediência. Vamos continuar debatendo e lutando por políticas educacionais de respeito radical às diferenças e, simultaneamente, lutando pela aprovação da Lei de identidade de Gênero João Nery que assegura às pessoas trans e travestis os direitos humanos fundamentais: a autodeterminação de gênero.

Fonte: Outras Palavras.

 

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