Dizer poemas em voz alta se torna ferramenta na luta das mulheres

Coletânea organizada por Mel Duarte com prefácio de Conceição Evaristo reafirma identidades e mostra mobilização feminina contra a opressão

Imagem: Reprodução

“A crescente produção feminina literária tem sido espantosa. Fico muito feliz de hoje poder indicar, se fosse possível, mais de 50 nomes. Esse é um livro que conseguiríamos fazer o volume 2, 3, 4. Espero que a gente consiga” Mel Duarte, poeta

Por Marcia Maria Cruz

Pode parecer pouco diante dos desafios para superar a desigualdade entre os gêneros no Brasil e no mundo, mas dizer poemas em voz alta é uma trincheira na luta das mulheres onde esse desequilíbrio tem sido superado. A poesia falada se tornou campo de formulação linguística e estética de muitas jovens e também espaço de encontros, reafirmação de identidades, mobilização para batalhas. Esse movimento tem nomes Luiza Romão, Ryane Leão, Anna Suav, entre outras que entram na coletânea organizada pela poeta Mel Duarte. Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta (Editora Planeta) chega às bancas com a força do prefácio escrito por Conceição Evaristo, símbolo da escrita de mulheres negras, nome que abre caminhos na literatura para muitas que estavam à margem. Integram a coletânea Anna Suav, Bell Puã, Bor Blue, Cristal Rocha, Dall Farra, Danielle Almeida, Laura Conceição, Letícia Brito, Luiza Romão, Luz Ribeiro, Mariana Felix, Meimei Bastos, Negafya, Roberta Estrela D’Alva e Ryane Leão. O movimento não busca aprovação do mercado estabelecido, mas cria formas distintas de produzir textos literários e de fazê-los circular, explica Mel Duarte, que conta também como foi o processo de organização do livro, em entrevista ao Pensar.

O livro já adianta: “Poemas para serem lidos em voz alta”. O que muda na composição do poema quando ele é escrito para ser falado?
Essa resposta para cada autora muda. Vou dizer do meu ponto de vista. Quando faço a composição para declamar um poema, escrevo lendo em voz alta. As palavras têm outro tom quando são emitidas. Às vezes, são coisas simples: o ‘para’ mudar para ‘prá”. Entre outras coisinhas que fluem melhor dentro da fala. Eu tento ainda quando escrevo manter um equilíbrio para que as pessoas compreendam quando estiverem fazendo a leitura. Muitas pessoas, que acompanham meu trabalho, dão esse retorno: quando estão lendo um texto meu, como já têm familiaridade com minha voz, elas leem interpretando do jeito que eu falo. Isso é muito legal. É uma marca registrada colocada na fala, que fica no subconsciente das pessoas, quando elas leem um texto seu.

Existe um desejo de dar visibilidade à poesia feminina negra e de periferia. A poesia se caracteriza por essa busca pela melhor palavra. Você considera que essas novas atrizes da poesia expandem as fronteiras do gênero?
O que é bacana na poesia é que ela pode ser muito fluída. Cada poeta encontra no seu jeito de escrever e falar algo que a caracterize, vem com palavras específicas que encontra no texto de certas autoras. Isso vem com a intenção da voz que cada uma delas dá. Isso acaba criando uma identidade. Isso é o que posso perceber ouvindo muitas poetas da periferia. Então, com certeza, elas acabam expandindo fronteiras e dando novos ares para a poesia. A poesia dessa nova geração é completamente diferente da poesia que a gente teve que estudar na escola. Vale dizer que esse livro não é só com poetas negras. São 15 autoras de cinco regiões. Temos pessoas negras, não negras, indígenas. Enfim, a gente conseguiu dar uma boa mistura. Temos mulheres heterossexuais, lésbicas. Abarcamos a diversidade dentro desse livro.

Como você caracteriza a poesia feita no poetry slam (competição com poesia falada ou recitada)? Está dentro do guarda-chuva da poesia marginal?
A poesia marginal se caracteriza, justamente, por ser feita por pessoas que estão à margem da sociedade. O slam é um movimento à margem da sociedade. Por isso ganhou grande destaque aqui no Brasil. As periferias entenderam esse suporte, que é o slam, para que os poemas e textos pudessem chegar mais longe. Com certeza, a poesia no slam é uma poesia marginal. Não tem como descolar isso. As duas coisas andam juntas.

Já podemos falar em cânones da poesia falada? Quem são eles?
Tenho questão com a palavra ‘cânone’, que sempre foi colocada para mim do lugar de não acesso, distanciamento. Hoje, pensando nesse recorte de poesia falada, a gente tem sim grandes referências. Esse livro já é um apanhado dessas referências. Essas 15 mulheres que estão no Querem nos calar são mulheres que nos seus estados, dentro das suas cidades, desenvolvem trabalho significativo pensando nesse recorte de poesia falada, pensando no movimento de slam, pensando em performance. Se vou falar da cidade de São Paulo não tem como não citar Luz Ribeiro, Mariana Félix, Luiza Romão, Roberta Estrela Dalva, mulheres que começaram esses processos. Roberta veio antes de nós. Ela que trouxe os slams. Quando comecei nesse movimento, que já faz mais de 10 anos, sempre me encontrei com essas figuras. Todas servem de referência umas para as outras.

Vocês convidam Conceição Evaristo para apresentar a antologia. De maneira muito generosa, ela se coloca de forma horizontal no diálogo com vocês. O que aproxima a poesia dos slams à poesia de Conceição?
A Conceição é precursora. Todas as mulheres que estão neste livro são grandes admiradoras do trabalho da Conceição. A Conceição conhece grande parte destas mulheres. Quando a chamamos para fazer parte desse livro havia a preocupação de ser alguém que tivesse representatividade no cenário nacional da literatura, mas que também tivesse proximidade com o movimento dos slams. A Conceição já me viu batalhando em grandes eventos da poesia falada. Sabia que seria pessoa que teria a delicadeza de entender o movimento e ser sincera no olhar. A poesia do slam está próxima à escrita da Conceição. Todas nós bebemos na fonte que é essa mulher.

O título Querem nos calar é bem sugestivo. Vocês estão se referindo a esse momento pelo qual passa o Brasil ou ao silenciamento histórico das mulheres?
O nome do livro é justamente uma provocação, é justamente para convidar o público a ler esses poemas e soltá-los para o mundo. Falar em voz alta. Ao fazer dessa forma, você vai absorver de um jeito diferente. O título do livro é um convite para que as pessoas se permitam experienciar essa sensação que é falar um texto em voz alta, já que esses textos também são feitos para esse lugar. Também é um lugar de fazer refletir sobre o momento histórico que a gente está passando e por tudo que já foi colocado. Parte do princípio de mulheres. Todas têm dentro da sua caminhada esse silenciamento. Todas, sem diminuir nenhuma delas. Nós nos referimos ao momento histórico que estamos passando e a esse tempo de silenciamento que tivemos antes. Na poesia que eu escrevi, que está na orelha do livro, coloco isso. Falo sobre essa questão que hoje eu sei que minha fala se propaga, equivale a 10 mulheres, que antes foram silenciadas. Sabemos que existe essa responsabilidade na nossa fala, no nosso corpo político. A partir do momento em que a gente resolve pegar o microfone e colocar os nossos pensamentos, nossas inquietações dentro de um espaço e gritar isso para que todas as pessoas ouçam.

Você disse que foi muito difícil escolher as poetas, por serem muitas. Estamos no momento mais potente da produção feminina? O que podemos dizer sobre a produção de vocês neste momento?
Com certeza foi difícil escolher essas poetas, justamente porque hoje temos muitas mulheres produzindo coisas muito boas. A crescente produção feminina literária tem sido espantosa. Fico muito feliz de hoje poder indicar, se fosse possível, mais de 50 nomes. Esse é um livro que conseguiríamos fazer o volume 2, 3, 4. Espero que a gente consiga. A partir do momento em que esse primeiro foi para o mundo, entender como está sendo recebido e, numa próxima oportunidade, poder abarcar mais mulheres, a partir de princípio de mulheres que já tenham caminhada nesse processo. De dois anos para cá, vimos um boom muito grande. Surgiram nomes, mas também quis para esse primeiro livro reconhecer essas mulheres que começaram há mais de cinco, seis anos. É importante dar esse espaço para quem já está nesse corre há muito tempo. Algumas dessas meninas nem tinham publicações lançadas ainda sozinhas. É de grande importância que elas possam ter esse trabalho registrado com a seriedade que esse livro tem, com a forma que esse livro pode ser distribuído para que chegue em mais espaços e, quem sabe, também consigam novas oportunidades para apresentar o trabalho delas. Estamos passando por momento muito positivo de produção feminina até por esse contexto histórico que a gente está vivendo e que as mulheres também estão entendendo o quão necessário é que tenham as falas expandidas. A geração que está chegando agora de escritoras vai pegar caminho um pouco mais ameno nesse sentido de espaço e reconhecimento. Foi difícil para mim e mais difícil ainda para as que me antecederam. Então é um processo também geracional. Muito importante. Cada uma cavar espaço para as próximas que virão.

 “Aqui estamos nós, donas de nossas próprias palavras, revolucionárias do cotidiano, regando a terra outrora batida por nossas antepassadas, firmando nossas pegadas, sabendo que hoje, cada vez que nossa fala se propaga, equivale a dez que antes foram silenciadas. (…) Não mais invisíveis, não mais mercadoria (…) Se querem nos privar, ocuparemos espaços! Se querem nos apagar, escreveremos livros! Se querem nos calar, vamos falar mais alto!” (Mel Duarte) 

“Todas as mulheres são pássaros que o patriarcado tenta aparar as asas em cada grito sufocado na vigilância às minissaias ou na proteção concedida ao brother canalha assim mesmo muitas e muitas asas aparadas levantam voo” (Bell Puã)

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QUEREM NOS CALAR 
Organização: Mel Duarte
Editora Planeta
224 páginas
R$ 39,90

 

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