Ditadura civil, jurídico-midiática instalada no Brasil

DITADURA 222

Por Ângelo Cirino.

Abstraio de análises dos governos Lula e Dilma, abstraio de análises de erros e acertos nos últimos quatorze anos. É certo que é muito importante fazer uma autocrítica, uma avaliação de todo esse período para corretamente compreender como chegamos ao golpe em 2016. Aqui me atenho ao golpe em si e nos seus desdobramentos.

A tendência é que a regressão política e social iniciada pelo golpe se aprofunde. Políticas liberais são, por definição, incompatíveis com a democracia. Golpes passados — no Chile, o suicídio de  Getúlio Vargas, Brasil em 1964, Venezuela de Chávez, Honduras, Paraguai, os ataques a Cristina Kirchner na Argentina, as “revoluções coloridas” na Europa do Leste — são  exemplos de como a implantação de políticas econômicas liberais, ou neoliberais, são absolutamente incompatíveis com a democracia.

A situação brasileira de agora não é diferente dos momentos por que passavam as outras nações, e também o Brasil no passado, quando os golpes aconteceram. Avanços sociais, ainda que tímidos, mudanças na distribuição de renda, aumento do investimento em programas sociais, formam o estopim para os golpes liberais. É a luta de classes convencional, nua e crua.

Esse é o centro de minha análise neste artigo. A elite brasileira tem pouco ou nenhum apreço pela democracia. Ao protagonizarem o novo tipo de golpe, não militar mas baseado na justiça parcial e na grande imprensa monopolizada, as elites demonstram que elas são incompatíveis com um projeto de Brasil grande, independente e socialmente justo, mesmo que sob a égide de tímidas políticas socialdemocratas como as executadas pelos governos capitaneados pelo PT.

A forma como o golpe se processa mostra que não há a quem, ou a qual instituição, recorrer. O Ministério Público, a partir do Procurador Geral da República, o Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, sem falar dos espetáculos absurdos e horrendos protagonizados pela Câmara e pelo Senado, são todos cúmplices, por ação ou omissão, compreendendo que em casos assim tão graves omitir-se é também acumpliciar-se. Nessa história toda, do lado dos golpistas, não há nenhum inocente e as instituições se tornaram todas apodrecidas.

É impressionante como antigos aliados do PT, como os ministros do PMDB nos governos Lula e Dilma (com as honrosas exceções de Kátia Abreu e de Armando Monteiro Neto) e os ministros do STF indicados por Lula e Dilma, todos se voltaram contra o PT. As traições foram generalizadas, resta-nos constatar que essa gente, depois de inserida nos núcleos do poder, se deixa deslumbrar e se vende por pequenos espaços e benesses na periferia da elite. Passam a se comportar e se expressar como a elite. Frequentam festas, eventos, conspiram, tudo em busca de uma duvidosa aceitação nos círculos das elites que, mal sabem eles, os odeiam e relutam em aceitá-los.

As práticas autoritárias de toda essa gente, com as acusações sem provas, a perseguição não somente aos protagonistas mas também às suas famílias, como no execrável caso da perseguição a José Dirceu que levou Moro a confiscar a casa da nonagenária mãe de Dirceu, as prisões arbitrárias usadas como instrumento de tortura psicológica para obter delações, as próprias delações premiadas que são um instrumento policial estranho à cultura jurídica do Brasil, os vazamentos ilegais, os constrangimentos às autoridades que, mesmo timidamente, se opuseram ao autoritarismo de todo esse processo, tudo isso demonstra que a democracia no Brasil é uma questão de conveniência para as elites. Vivemos, como em 64, uma encruzilhada histórica, com o fascismo de um lado e, do outro lado, a perspectiva de um país justo e progressista.

Assim, a tendência de retrocesso autoritário certamente resultará num golpe dentro do golpe. Michel Temer provavelmente será deposto por ação do Judiciário, seja a justiça comum seja a justiça eleitoral, em 2017 para configurar a eleição indireta pelo Congresso de um novo presidente. A disputa interna no consórcio PMDB/PSDB definirá se o novo presidente será Meireles ou um tucano de alta plumagem. O golpista Temer levará, ele próprio, um golpe e, provavelmente, será regiamente recompensado pelo papel que cumpriu, ainda que não venhamos a saber dos detalhes, pois tudo acontece nas sombras.

Noutra frente, o Congresso avança na reforma política antidemocrática, com a cláusula de barreira e outros instrumentos que golpeiam nossa democracia. Provavelmente essa reforma, após a posse de um presidente indiretamente eleito, será piorada com ainda mais restrições à democracia, com medidas como o voto distrital e o retorno do financiamento empresarial de campanhas.

Dificilmente haverá eleições presidenciais em 2018. Algum casuísmo ou uma reforma política regressiva resultará na ampliação do mandato presidencial golpista e, provavelmente, na alteração do calendário eleitoral e nas durações dos mandatos eletivos, de modo a unificar as eleições promovendo as eleições gerais. Eleições gerais, unificando numa única data a votação em todos os cargos eletivos, tendem a elevar os custos das campanhas, beneficiando, portanto, o abuso do poder econômico, aumentam a confusão entre os eleitores e dificultam, deliberadamente, o fundamental em qualquer processo eleitoral, que é o debate de ideias e de programas.

Leis serão criadas ou alteradas para criminalizar os movimentos sociais. Manifestações populares e a oposição ao golpe serão ainda mais reprimidas e criminalizadas. A imprensa exercitará com mais desenvoltura o jornalismo opressivo e partidário. Não só a grande imprensa usará o jornalismo opressivo a nível nacional, mas a imprensa local se sentirá liberada e será, até mesmo, instruída a repetir localmente, nos estados e nos municípios, os ataques e as perseguições às forças progressistas e democráticas.

O Judiciário e o Ministério Público serão ainda mais arbitrários, autoritários e persecutórios. Prisões arbitrárias e condenações sem provas se multiplicarão. A judicialização da política será generalizada e usada contra os democratas. Também a interferência do Judiciário nas administrações públicas será intensificada, cada prefeito e governador estará sempre sob a espada de Dâmocles do MP, do Judiciário e dos tribunais de contas.

Mas não só isso. Membros do MP tem dado demonstrações de messianismo político incompatível com a democracia e mesmo com a instituição da qual fazem parte. Esse fenômeno é de tal ordem que se liga ao messianismo religioso, dando margem para as práticas mais odiosas de discriminações, preconceitos e ataques às liberdades individuais. Veja, por exemplo, as declarações do procurador pentecostal que demonstra não discernir entre as funções do agente público no estado e as convicções religiosas de um pregador religioso, nesta entrevista de Dallagnol a um site de uma “igreja” pentecostal. Com o golpe até mesmo o estado laico está sob ataque.

O golpe também visa a economia brasileira e a destruição de suas grandes empresas, públicas ou privadas. Há quem diga ser teoria conspiratória associar o PGR Rodrigo Janot, o juiz Sérgio Moro e sua turma de procuradores da república de Curitiba com ordenamentos emanados de Washington. O fato é que todos eles foram treinados nos EUA pelo FBI e pelo Departamento de Justiça (ministério da justiça deles). Após o treinamento eles celeremente colaboraram com as justiças dos EUA e da Inglaterra em processos e procedimentos contra a Petrobras e as empreiteiras brasileiras. Eles forneceram aos EUA e à Inglaterra documentos e informações sigilosas dessas empresas para que fossem, lá nos EUA e na Europa, investigadas e processadas.

Empossado, uma das primeiras medidas anunciadas por Temer é o retorno das privatizações selvagens e desnacionalizantes. A Petrobras começou por vender à estatal norueguesa importante campo do pré-sal, por 10% do seu valor real. Aeroportos, rodovias, portos, gasodutos, oleodutos, empresas e infraestrutura do Governo Federal já foram anunciados como alvos imediatos da privatização. As concessões serão revistas para onerar ainda mais o povo, com elevação das tarifas. Pretende-se privatizar até mesmo a saúde pública, com a instituição de um plano de saúde “popular” em substituição ao SUS.

Ou seja, o golpe, a infame operação Lava Jato e o conluio da grande imprensa com o Judiciário visam não somente a tirar o PT do poder, mas, também e principalmente, a entregar o país ao capital estrangeiro e destruir qualquer possibilidade de construção de um Brasil moderno independente. O golpe é contra o país, contra o povo e contra o nosso futuro.

O golpe é também contra as conquistas sociais e os direitos trabalhistas. A aberração da jornada de trabalho de 12 horas diárias fez Temer desdizer o seu ministro do trabalho, mas o site do ministério insiste em manter material didático tentando deixar palatável o inadmissível. O golpe visa ao fim da CLT, ao aumento da precarização do trabalho e à retirada de direitos trabalhistas.

Mas o golpe só será realmente vitorioso se não houver reação popular. Os recuos, pelo menos retóricos, de Temer demonstram que a pressão e a mobilização popular funcionam. A única, repito, a única saída que temos é a mais ampla e radical mobilização popular. Milhões nas ruas, sob a palavra de ordem “Nenhum direito a menos”, é a única alternativa que os golpistas nos deixaram. Assim sendo, como única alternativa, é necessário dedicarmos todas as nossas forças na mobilização, com amplitude política e sem sectarismo. Este é o momento para todos os democratas e o povo se unirem numa só bandeira em defesa da democracia, dos direitos sociais e trabalhistas e do futuro do país. É o momento para unidade tática das esquerdas com os democratas e com o centro nacionalista. É o momento do movimento sindical retomar sua ação política e realizar uma greve geral. Com a bandeira do nenhum direito a menos e a defesa da democracia será possível reverter o golpe para, depois, iniciar o passo seguinte, de aprofundamento da nossa democracia e de seguir adiante com as conquistas sociais.

Fonte: http://angelo.blog.br/2016/09/15/ditadura-civil-no-brasil/

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