Disputa pelo falafel revela a essência racista de Israel

Falafel é um bolinho frito de grão-de-bico bem temperado, prato típico árabe / Reprodução
Falafel é um bolinho frito de grão-de-bico bem temperado, prato típico árabe / Reprodução

Por Igor Fuser.

Em um mundo dilacerado por disputas geopolíticas, pelo racismo e pelas mentiras midiáticas, até mesmo a simples divulgação de uma receita culinária pode esconder – e, para quem fizer a leitura certa, revelar – as estruturas ideológicas criadas para perpetuar as injustiças.

Pelos misteriosos caminhos do facebook, chegaram até a minha tela duas postagens recentes, que remetem ao mesmo assunto – pratos tradicionais da cozinha árabe, apresentados pelos porta-vozes do sionismo como produtos culturais israelenses.

No dia 30 de novembro, o site da Federação Israelita de São Paulo publicou uma nota que começava com a seguinte frase: “Aprenda a fazer falafel, esse bolinho frito de grão-de-bico, bem temperado e saboroso, que faz parte da culinária israelense.”

Pouco depois, no dia 4 de dezembro, a página do consulado de Israel em São Paulo apresentava o halawi, iguaria servida desde o início do século passado nas lanchonetes de comida árabe no Brasil, como um “típico doce israelense/árabe feito à base de gergelim”.

Só com muita má-fé, desonestidade mesmo, alguém pode apresentar esses dois quitutes como israelenses. O falafel é o prato mais popular em todo o mundo árabe. A origem do nome vem do verbo árabe falfala, que significa “tempero”. É consumido pelos árabes do Oriente Médio desde que eles se constituíram como povo, na época do profeta Maomé (Mohamed), no século 7, mas historiadores acreditam que já fazia parte da alimentação no Egito dos faraós, milênios antes da Era Cristã.

Quando os primeiros colonos judeus chegaram à Palestina, no final do século 19, vindos da Europa Oriental, eles não tinham o menor contato com a culinária árabe. Nunca tinham provado o falafel nem o halawi.

Aquela imigração se deu sob o impulso do sionismo, movimento político surgido na Europa, com o objetivo de construir na Palestina um país apenas para os judeus. Desde o início, os colonos sionistas formaram comunidades separadas na Palestina. Viviam à parte, sem se misturar com os árabes, aos quais desprezavam. Mas, espertos que eram, logo incorporaram o delicioso falafel à sua dieta cotidiana.

Pode parecer picuinha denunciar – como fazem intelectuais e ativistas árabes – a apropriação simbólica desses pratos pelos israelenses. Porém os palestinos, vale lembrar, são um povo árabe, e a preservação da sua cultura é parte inseparável da defesa do território.

Em 1948, os colonos judeus se apoderaram, pela força, de 80% das terras da Palestina, embora constituíssem menos de 30% da população, e lá instalaram o Estado de Israel. A maioria dos habitantes árabes foi expulsa e passou a viver, na condição de refugiados, em países vizinhos. Para “convencer” essas famílias a irem embora, as milícias sionistas invadiam aldeias palestinas e massacravam seus habitantes. Moradores do sexo masculino entre 10 e 50 anos de idade eram separados dos demais e executados, perante os olhos da comunidade. Os demais fugiam, apavorados.

Assim nasceu Israel. Os 20% do território palestino que ficaram de fora – a Cisjordânia e a Faixa de Gaza – foram ocupados depois pelos israelenses, por meio da guerra, em 1967, e até hoje mantidos sob seu controle. Lá vigora um regime de segregação racial semelhante aoapartheid da África do Sul.

Nos territórios ocupados, Israel instalou centenas de assentamentos judaicos, localizados nas terras mais férteis, no alto das colinas e ao redor dos mananciais de água, expulsando os moradores locais. Ligando esses assentamentos entre si e a Israel, construiu-se uma moderna rede de estradas, cercadas por arame eletrificado, por onde os palestinos são proibidos de trafegar.

O deslocamento dos moradores locais se dá de forma precária, condicionado à passagem por centenas de postos de controle do exército israelense. Lá os palestinos são humilhados diariamente, submetidos a longas esperas ou à proibição da passagem. Doentes morrem nas ambulâncias bloqueadas nesses check points, gestantes dão à luz e jovens veem frustrado o seu direito à educação por não conseguirem manter a frequência às aulas.

Em Israel propriamente dito, os palestinos constituem uma minoria subalterna. São moradores não judeus no único país do mundo que define a cidadania por um critério religioso. Na escola, as crianças palestinas são forçadas estudar uma versão deformada da “história” dos judeus, que glorifica a ocupação sionista da Palestina, ignorando a cultura islâmica e a riquíssima tradição histórica dos povos árabes.

O curioso é que, ao mesmo tempo que massacram e marginalizam os árabes (N. da R.: palestinos), apoderando-se das suas terras, os israelenses também se apropriam, sistematicamente, do precioso legado cultural e material que encontraram na Palestina.

O símbolo visual de Israel, presente nos cartões postais, nos cartazes e nas camisetas vendidas aos turistas, não é nada que os sionistas tenham construído nos cem anos de usurpação. É a imagem do Domo da Pedra, um lindíssimo templo religioso muçulmano, situado no coração de Jerusalém, uma cidade anexada, ilegalmente, por Israel.

Em Tel Aviv, a maior cidade israelense, o bairro de maior interesse, repleto de ateliês de artistas, butiques descoladas e charmosos cafés, é Al Jaffa, com suas construções pintadas de branco e as vielas labirínticas no estilo dos típicos centros urbanos árabes. Os antigos moradores foram todos expulsos em 1948, sem indenização, sem nada.

Eu percorri aquelas ruas em 1991, na única vez que visitei Israel, como jornalista. Fazia parte de um grupo convidado pelo governo de lá, recepcionado por judeus brasileiros que haviam imigrado e se tornado cidadãos israelenses. Num dos vários passeios a que eles nos levaram, sempre muito gentis, percorremos a cidade velha de Jerusalém, com suas lojinhas de lembranças e badulaques para turistas. Os donos, comerciantes árabes, nos abordavam na rua, oferecendo seus produtos nos mais variados idiomas.

Nosso guia, um brasileiro-israelense, ficou muito irritado com a cena e tentou nos persuadir a boicotar aqueles humildes vendedores. “Não, não comprem nada desses árabes”, dizia ele. “Amanhã vamos visitar a parte judaica de Jerusalém e vocês poderão comprar as mesmas coisas por lá”.

Por aí se vê que a polêmica em torno do falafel e do halawi, como tudo o que diz respeito ao conflito palestino-israelense, nada tem de inocente.

Fonte: Brasil de Fato.

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