Discriminação étnica ainda é forte na Bolívia

Por Elaine Tavares.

 

Dia 24 de maio as gentes saem às ruas contra o racismo

 

Alguém pode pensar que ser aymara, quéchua ou guarani, na Bolívia, não provoque nada demais, uma vez que eles juntos formam a esmagadora maioria da população daquele país. Apesar dos 500 anos de dominação, os invasores europeus não conseguiram dizimar a população autóctone, que não só manteve seus núcleos étnicos como mesclou com os brancos, produzindo o mestiço. Mas, saber a quantidade certa de indígenas na Bolívia não é coisa fácil. Como lembrou a socióloga Silvia Cusicanqui, durante as Jornadas Bolivarianas de 2011, em Florianópolis, o censo varia conforme os desejos de quem o faz. “Há momentos em que somos mais de 50%, outros em que somos 30%, e isso com diferença de um ano entre os números. Hoje, fala-se em 68%, mas, o certo é que da cifra exata ainda não temos noção”. Quem já teve a possibilidade de circular pelo país não tem dúvida alguma quanto ao rosto indígena da Bolívia. Mesmo nas regiões da “Media Luna”, onde os brancos atuam como velhos capitães de escravos, arrotando uma superioridade racial, os originários assomam como maioria.

Então, parece estranho falar de racismo e discriminação. Mas, isso é coisa que prolifera, herança do passado colonial. E tanto que o governo de Evo Morales teve bastante dificuldade de fazer passar na Assembleia Nacional uma lei contra o racismo e toda a forma de discriminação, em outubro do ano passado. A lei, além de criminalizar as manifestações de racismo, também colocava na berlinda os meios de comunicação, useiros e vezeiros em disseminar esse violento sentimento que leva à discriminação. E foi justamente a queda de braço com a mídia que arrastou a votação da lei por longos meses.

Apesar de toda a batalha contra por parte da elite branca, foi a partir de muita luta que o povo boliviano conseguiu fazer aprovar e valer essa lei, que tem no seu capítulo V, denominado “Delitos contra a dignidade do ser humano”, o seguinte artigo, de número 28: “A pessoa que, arbitraria e ilegalmente, restrinja, anule, menospreze ou impeça o exercício de direitos individuais ou coletivos por motivo de raça, origem nacional ou étnica, cor, descendência, pertencimento a nações e povos indígenas originários, camponeses ou ao povo afroboliviano, ou por uso de vestimenta e idioma próprio, será sancionado com pena de privação da liberdade de três a sete anos. A pena será agravada em um terço do mínimo e com a metade do máximo, quando:

a) O fato seja cometido por servidora ou servidor público.

b) O fato seja cometido por um particular em prestação de serviço público.

c) O fato seja cometido com violência”.

Pois foi justamente essa lei que o deputado do MAS (Movimento al Socialismo), Jorge Medina (primeiro deputado afroboliviano), foi buscar para referir-se ao que aconteceu na IX Marcha Indígena, promovida pelas comunidades da região do Parque Nacional, onde o governo quer abrir uma estrada. Segundo ele, os acontecimentos na cidade de San Ignacio, estado de Beni, podem ser enquadrados nessa lei e é necessário que se faça a denúncia. O que aconteceu foi que a marcha foi impedida de passar, por parte da população da cidade que instalou barricadas com paus e arames. O estado de Beni onde fica San Ignacio é conhecido pelo racismo e discriminação. Durante os conflitos que envolveram a região da meia-lua (parte leste da Bolívia), durante a formulação da nova Constituição, indígenas foram espancados e as cidades se cobriram de pichações racistas. Agora, de novo, os povos originários se viram envolvidos em protestos de caráter eminentemente racista, pois, além de terem a passagem interditada para dentro da cidade, quando passavam ao largo, recebiam xingamentos e insultos em velhas/novas humilhações.

Como as marchas e os protestos indígenas continuam, o deputado Medina, que foi um dos impulsionadores da lei antirracista, está chamando a população a refletir sobre esses atos de discriminação. Segundo ele, os povos em marcha têm todo o direito de se manifestar e devem ser recebidos com respeito, ainda que não se concorde com suas causas.

O mesmo deputado está convocando a população de todas as capitais das províncias a participarem da Marcha Nacional contra o Racismo que acontece agora, no dia 24 de maio, considerado lá na Bolívia como um dia de luta contra o racismo, em lembrança da profunda humilhação sofrida por 50 camponeses, na cidade de Sucre, em 2008, quando foram surrados em praça pública, também no âmbito da luta pela nova Constituição que refundou a república. “É preciso que venham todos os setores sociais, trabalhadores, lutadores. Na raiz desse abuso a gente chama a Marcha, para que coisas como essas nunca mais voltem a acontecer”.

Então, La Paz, assim como as demais capitais do país deverão se encher com as wipalas e bandeiras brancas, numa luta que ainda está muito longe de terminar. O racismo contra índios e negros, impregnado pela colonização predadora, é uma ação em constante reformulação e todos sabem que não é com uma lei que isso vai acabar. Há de passar muito tempo até que as pessoas consigam compreender que a escravidão negra e indígena não se deve a qualquer inferioridade nessas etnias, mas é uma exigência do sistema econômico capitalista que precisa de braços para fazer rodar a roda do lucro. No caso específico de “nuestra América” ou “Abya Yala”, os que garantiram a dominação eram brancos/europeus. E por aí seguiram impulsionando uma política de disseminação do racismo para que as etnias oprimidas passassem a se olhar como inimigas e não como companheiras capazes de virar o jogo e impulsionar um novo modo de organizar a vida, rebelando-se contra os opressores, sejam eles de qualquer cor. Afinal, o mal é o capitalismo.

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