Direitos LGBT: do que os militares têm medo?

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Por Marcelo Pellegrini. 

A cada mês, de quatro a cinco militares denunciam abusos homofóbicos ao Instituto Ser de Direitos Humanos e da Natureza, cuja função é combater a homofobia nas Forças Armadas. A informação é do fundador do instituto, o ex-sargento do Exército Fernando Alcantara Figueiredo, que já sentiu na pele o preconceito da instituição.

Figueiredo ficou famoso após deixar o Exército, segundo ele, motivado pelo preconceito contra gays. Seu caso remonta a 2008, ano em que ele assumiu seu relacionamento gay com o também militar Laci Marinho de Araújo, posteriormente acusado de deserção e expulso da corporação. Os dois confirmaram o relacionamento meses antes do processo contra Laci e acreditam que suas saídas do Exército tenham sido motivadas por homofobia.

Mesmo fora das Forças Armadas, ambos foram condenados à prisão pela Justiça Militar com base em crimes de ofensa e deserção. Atualmente, aguardam em liberdade por terem recorrido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “É um absurdo sermos julgados por um código militar ultrapassado, que condena pessoas por sua orientação sexual”, relata o ex-sargento Figueiredo.

Desde então, as Forças Armadas têm negado posicionamentos homofóbicos e dito, em diversas ocasiões, que “não há discriminação por parte da força militar”. O discurso, contudo, caiu por terra na terça-feira 13, por meio de uma nota técnica assinada pela assessoria parlamentar do gabinete do comandante do Exército, Enzo Peri. Trata-se do mesmo oficial que mandou dificultar a disponibilização de documentos militares à Comissão da Verdade, em agosto de 2014.

No documento, o Exército se manifesta contrário à aprovação do projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que criminaliza a homofobia e crimes de ódio e intolerância contra grupos migrantes e religiosos. De acordo com a nota, a proposta traria, caso aprovada, “efeitos negativos” para as Forças Armadas e “reflexos indesejáveis” para o Exército devido a “imprecisões” e à subjetividade” contidas no documento.

O pronunciamento reavivou o debate sobre homossexuais nas Forças Armadas e indignou movimentos LGBT. “Esse posicionamento do Exército colabora para que crimes de homofobia continuem acontecendo no Brasil, que é campeão mundial em homicídios de homossexuais”, afirma Beto de Jesus, diretor da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). O “título” de campeão mundial em assassinatos de homossexuais é baseado em uma pesquisa do Grupo Gay da Bahia (GGB). Segundo o estudo, em 2013 um homossexual foi assassinado a cada 28 horas no Brasil. Em comparação com outros países, estima-se que a cada cinco gays ou transgêneros assassinados no mundo, quatro são brasileiros.

Para quem vivenciou a discriminação militar, a nota técnica é apenas reflexo de um problema institucional. “Ainda existe uma doutrinação ideológica que fomenta o preconceito nas Forças Armadas e é protegida pelo artigo 235 do Código Penal Militar”, conta o ex-sargento Fernando Figueiredo.

Criado em 1969, o artigo 235 condena a “prática de ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”.Em sua defesa, as Forças Armadas justificam que, implicitamente, a palavra “não” refere-se a heterossexuais, o que generaliza a regra. No entanto, se o intuito é criar uma legislação válida para todos os membros das Forças Armadas, independente da orientação sexual, o aposto “homossexual ou não” torna-se gramaticalmente dispensável. “O artigo 235 é a garantia legal da homofobia nas Forças Armadas e é amplamente utilizado para perseguir e expulsar gays”, afirma o ex-sargento.

Preconceito e baixo profissionalismo

O caso do casal Fernando e Laci gerou uma investigação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sobre homofobia nas Forças Armadas. Em depoimento à comissão, o general Raymundo Nonato de Cerqueira Filho disse, em 2010, que homossexuais não devem desempenhar atividades militares por não serem compatíveis com elas. “Talvez tenha outro ramo de atividade que ele possa desempenhar”, afirmou aos senadores. Para ele, militares homossexuais não teriam controle sobre a tropa em situações de conflito. Após seu depoimento, Raymundo Filho ainda assumiu o cargo de presidente do Supremo Tribunal Militar antes de se aposentar.

Para o historiador militar Márcio Scalercio, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, declarações como a do general Cerqueira Filho e a nota técnica do gabinete do comandante do Exército, Enzo Peri, demonstram um forte conservadorismo e uma política administrativa muito dura em relação aos homossexuais dentro das Forças Armadas. “O Exército alega que, se homossexuais forem permitidos pode, hipoteticamente, ocorrer uma confusão se um militar assumidamente gay ficar em um alojamento com outros 40 soldados”, conta Scalercio. “O que as Forças Armadas se esquecem é que toda a sua filosofia é fundamentada em uma forte hierarquia e disciplina, que impediriam abusos caso oficiais gays venham a ser aceitos”, completa.

Scalercio, no entanto, ressalta que a aceitação de homossexuais não basta para acabar com o preconceito dentro da instituição. “O ambiente militar, mesmo nos países que aceitam homossexuais, segue sendo muito conservador. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde as Forças Armadas aceitam gays e mulheres, há casos gravíssimos de estupros contra oficiais do sexo feminino e gays que são omitidos”.

Por outro lado, o ex-sargento Figueiredo culpa a baixa profissionalização nas Forças Armadas como um dos causadores da homofobia. “O Exército tem uma mentalidade retrógrada e uma hierarquia que não valoriza o indivíduo, independentemente de sua orientação sexual, como um profissional com uma vocação”, diz. “Hoje, a Justiça Militar utiliza-se de organismos retrógrados e obscuros para camuflar abusos e expulsar profissionais homossexuais competentes em prol de uma imagem ultrapassada de Forças Armadas”, completa.

Scalercio concorda com a avaliação de Figueiredo. “O contingente do Exército brasileiro é formado, em sua maioria, por soldados conscritos, geralmente de baixa renda e escolaridade e não profissionalizados”, afirma. A baixa escolaridade dos soldados, segundo o professor, também contribui para a disseminação do preconceito nos quartéis.

Disputa no Congresso

O projeto de lei criticado pelo Exército é o PL 7582/2014, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), quecriminaliza crimes de ódio e intolerância contra minorias e grupos religiosos e migrantes, tendo como ponto principal a homofobia.De acordo com o texto, constitui crime de ódio o “impedimento do acesso de pessoas a cargo ou emprego público, ou sua promoção funcional sem justificativa nos parâmetro legalmente estabelecidos, constituindo discriminação”.

Foi este trecho que, segundo a nota, teria “reflexo nas Forças Armadas, inclusive no que tange critérios estabelecidos para ingresso e permanência”. Os reflexos, no entanto, não foram explicados ou exemplificados. De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, o Palácio do Planalto orientou o relator da proposta, Luiz Couto (PT-PB), a não considerar o pronunciamento do Exército. A atitude do governo é defendida pela autora do PL. “Eu penso que a posição do Exército é periférica no governo”, afirma Maria do Rosário.

O receio, agora, é que o lobby do Exército ganhe espaço em setores conservadores do Congresso, como a bancada da bala e a bancada evangélica, e consiga derrubar o projeto. “O projeto é voltado para enfrentar o ódio e é de se esperar que ele próprio possa enfrentá-lo para ser aprovado”, avalia a deputada federal. Um projeto semelhante, que também visava a criminalização da homofobia, foi derrubado na semana passada pelo Senado.

Para Maria do Rosário, o argumento usado pelo Senado para justificar o veto não pode ser aplicado ao seu projeto. “O projeto que tramitava no Senado buscava tornar a homofobia crime e, assim, alterar o Código Penal”, explica. “O meu projeto não busca alterar nada, mas sim criar um agravante de ódio e intolerância contra crimes já previstos no Código Penal, responsabilizando e aumentando a pena de quem incidir nesses agravantes”, completa. Além disso, a deputada também conta com diversos setores da sociedade civil que apoiam a proposta desde as eleições.

Atualmente, o alistamento de homossexuais é permitido em 27 países. Entre eles estão potências militares como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Israel e Espanha. No Brasil, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em 2012, revelou que 63,7% dos brasileiros não veem problema em homossexuais de farda.

Foto: Reprodução/Carta Capital

Fonte: Carta Capital

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