Direito a ter direitos: o direito natural como solução para a crise dos refugiados

Por Tomás Pires Acioli.

A juridicidade dos princípios passa por três fases distintas: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista[1]. Na primeira, mais antiga e tradicional, os princípios ainda habitam a esfera da abstração e sua normatividade, ainda nula e duvidosa, contrasta com sua dimensão ética-valorativa de inspirador das hipóteses de justiça.

A corrente jusnaturalista concebe, portanto, os princípios gerais de direito na forma de “axiomas jurídicos”, como aponta Flórez-Valdés[2], normas estabelecidas pela reta razão. Afirma que são normas universais do bem-obrar, princípios constitutivos de um direito ideal e justo. Um conjunto de verdades objetivas derivadas da razão dos homens e dos céus. Com efeito, nada de certeza sabemos acerca do direito natural, mas de fato sentimos com segurança que ele está lá.

O problema aqui colocado transcende a ordem do direito positivo, o que o coloca na esfera do direito racional, ou, como será abordado, do direito natural no sentido estrito do termo.

Sabemos e observamos que o direito positivo se tornou muito frágil na sua função de fundamento absoluto dos direitos efetivos no plano subjetivo e comunitário, de modo que os próprios “direitos fundamentais” se sujeitam à complacência e vicissitudes da plural e dissonante natureza do homem hipercomplexo, de maneira que a referida fundamentação que se busca diante dos hard cases a serem examinados talvez seja subjacente a valores, princípios e postulados lógicos que se pretendem universais e naturalísticos e que permeiam grande parte dos ordenamentos jurídicos modernos.

Sua natureza informativa quanto aos dispositivos subordinados ao crivo do chamado procedimento traz consigo os múltiplos significados resultantes de interpretações e justificações em decisões judiciais, perfazendo a máxime fundamental de validade normativa e fonte do direito que chamamos de princípio da dignidade da pessoa humana.

 De tal sorte, o enunciado positivo do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, promana, ainda que de forma tautológica, que “todos os homens nascem iguais em dignidade e direitos”. Deixando de lado por um momento todos os méritos da acensão da dignidade da pessoa humana como valor e princípio interpretativo do direito moderno, fato é que nós não nascemos iguais.

Nós nos tornamos iguais por força de uma decisão calculada e sopesada por nós mesmos e nossos pares, de modo que essa mesma decisão é que vincula a coletividade aos chamados “direitos iguais”. De fato, Celso Lafer[3] parte do pressuposto de que a igualdade não é um dado, uma physis aferível empiricamente, ou sequer resulta de um absoluto transcendente estranho à sociedade política e à própria essência humana enquanto ontologia.

O próprio Lafer prossegue refutando a crença de que a igualdade é um valor intrínseco aos seres humanos e alheio aos fatores externos, algo inerente à condição humana, de sorte que não passaria de uma mera abstração destituída de realidade, o que é facilmente aferível, sobretudo nos hard cases dos refugiados e campos de concentração.

Como é sabido, embora as pretensões de universalidade e imutabilidade que caracterizaram a elaboração jusnaturalista tenham esbarrado em acidentes de contingência e historicidade, a afirmação de um direito universalmente válido e um conjunto de valores inatos teve importantes consequências para a teoria constitucional ao informar os esforços de codificação, correspondendo o jusnaturalismo moderno ao que Lafer chama de “saber lógico-demonstrativo”, ou a ponte de aprendizado entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico.

De fato, tudo isso é fonte de um problema diverso, mas que diz respeito em grande medida ao presente empreendimento: qual o perigo, portanto, de um valor universal como a igualdade ou dignidade da pessoa humana repousar sobre o mero acidente da contingência? Tal paradigma de reflexão metajurídica contrapõe dois referenciais teóricos específicos atinentes à origem da essência humana: a acepção justanaturalista racional, orgânica e imutável diante das realidades contingentes e variáveis da objetivação histórica.

Hannah Arendt cria uma terceira via: para ela, os direitos humanos não nascem do individualismo humano ou do comando de Deus.[4] São resultado da vita activa, da ação, já que, se assim não o fosse, seriam um fim em si mesmo, pois a própria ideia de condição humana pressupõe pluralidade. Em termos aristotélicos, amplia a significação de vita activa materializando as primeiras noções de igualdade na polis, antecedendo a própria ideia de família que culmina, por derradeiro, na vivência da experiência pública no seio da cidade para os Antigos.

Assentado nosso marco teórico, passemos ao problema em tela. O dilema enfrentado pelas displaced persons é produto de uma situação criada no bojo da própria sociedade ocidental. O aparente sucesso do positivismo parece estar ligado a um processo de adequação ao poder jurídico-político altamente maleável e ambíguo, característico da modernidade do Ocidente europeu. É desse ponto em diante, portanto, que a retórica e a tópica discursiva operam na função de arma ideológica em benefício das comunidades dominantes em face das periféricas. Os apátridas são forçados a viver em um mundo fora do comum, excluídos do repertório comunicativo da sociedade globalizada. Precisamente por estarem escondidos, alheios às nossas próprias consciências, se configura o que chamaremos aqui de “Virada Totalitária”. É como se as displaced persons sequer existissem, como se fossem irrelevantes.

Como observado, é fundamental demonstrar como os valores ocidentais são contestados no seu próprio bojo. O “valor-fonte” da dignidade humana na tradição ocidental se autodestrói, de sorte que as reflexões de Hannah Arendt ostentam a perplexidade que testemunhamos em gradual concreção quanto aos direitos humanos como meio e fim na Virada Totalitária.

Em outros termos, se quanto mais aceitos na forma de consenso na sociedade, maior será o grau de validade dos valores que fundamentam a condição humana, maior também vem a ser o problema enfrentado na modernidade; não seria estabelecer limites ou significados para os referidos “direitos do homem”, mas sim fundamentá-los e protegê-los, pragmaticamente falando. O caso dos apátridas é expressivo justamente em razão da atual configuração do tabuleiro do poder em escala internacional.

Veja-se que o chamado “acidente da contingência” é determinante nessa questão, de modo que as violações aos direitos humanos perpetradas pelos Estados no plano internacional ultrapassam a própria ideia de legalidade no sentido estrito da palavra, comprovando o já referenciado sucesso pragmático apenas aparente do direito positivo.

É nesse mesmo sentido que as cortes internacionais – sobretudo as europeias[5] – têm empreendido inovações semânticas na resolução dos hard cases, levando a cabo uma prática que tende a se tornar mais comum chamada “interpretação extensiva”, inclusive em matéria processual, mais técnica, aplicada ao caso dos apátridas, por exemplo. A complexidade inerente aos referidos casos é liquidada na medida em que o texto positivado traz à tona valores e ideias que subjazem e informam seus dispositivos, conforme o célebre ensaio do Ministro Luís Roberto Barroso acerca do tema.[6]

Em outras palavras, o emprego e atribuição de efetivo significado prático a um preceito lógico que orbita o ordenamento jurídico na forma de princípio se faz preponderante para que sejam supridos os déficits exegéticos do falho direito positivo internacional. Entretanto, não cabe no presente texto apontar se os direitos do homem ou o princípio da dignidade da pessoa humana se projetam como redutores de complexidade de ordem jusnaturalista (caberia falar em uma nova escola jusnaturalista pós-positivista, fosse esse o caso?), ou, como queria Dworkin, se são, efetivamente, regras de conduta que contém exigências de justiça e equidade. Caberá à jurisprudência e à política ditarem o rumo das coisas.

O fato é que partimos da ideia de cidadania como um fato e como um meio. Um meio para se alcançar a verdadeira vivência política, a ação da obra arendtiana. Isso porque a própria Hannah Arendt considera que a atividade de pensar será sempre possível, e sempre irá ocorrer mediante o gozo das plenas liberdades políticas.[7] Por derradeiro, apliquemos um raciocínio silogístico para se estabelecer um juízo de valor atinente à situação dos refugiados: se não há cidadania, então não há liberdade política; se não há liberdade política, não há pensamento, e o resultado disso tudo não passa de um futuro obscuro e ignorante.

Não há como registrar mais enfaticamente o fato de que o mundo – Ocidental, sobretudo – precisa ser de fato plural, como previra Hannah Arendt. É a condição da Condição Humana, por assim dizer. É necessário à própria subsistência do homem superar a Virada Totalitária e as restrições aos desprivilegiados de recorrerem aos direitos do homem, desde que devidamente tutelados por eles, o que sequer chega a configurar a situação dos apátridas.

As displaced persons não perdem direitos como o direito à vida, à liberdade, à felicidade ou igualdade perante a lei simplesmente pelo fato de não serem nacionais. Na verdade, seu drama não resulta de não serem iguais dentro de um determinado ordenamento jurídico positivo, mas sim de não haverem mais leis para eles, de estarem totalmente desvinculados da comunidade política a que um dia pertenceram e que os contemplava como sujeitos de direito, mesmo que não no sentido mais democrático do termo. São inocentes destituídos de um lugar no mundo perseguidos pelo próprio acaso.

A estranheza e a desconfiança ameaçam aquilo que o homem não pode mudar por sua própria vontade.

Claro que toda a complexidade da questão ultrapassa o debate meramente acadêmico no que diz respeito à simples aferição da validade dos postulados axiológicos ou de direito natural como alternativa ao desmantelamento das instituições modernas, especialmente as de incidência internacional.

Entretanto, o que de fato de se pretende apontar, além dos defeitos e falhas das referidas instituições, é o potencial de aplicabilidade aos hard cases do sistema de valores que vem se materializando no cenário pós-positivista, sobretudo aos fins da II Guerra Mundial, de sorte que é esse mesmo conjunto de valores que vai  informar o significado efetivo dos dispositivos imaginados pelo legislador dogmático moderno, perfazendo o que Alexy chama de “mandados de otimização” do próprio sistema jurídico[8], os quais serão aplicados em diferentes graus de acordo com critérios material e formalmente possíveis.

Isso exposto, a utilidade de um princípio tão abstrato como o da dignidade humana, seja ele entendido como direito natural ou como valor intrínseco que permeia o ordenamento jurídico como um todo, é de natureza interpretativa, informando direitos que não restam expressamente enumerados, mas que são reconhecidos como parte fundante das sociedades democráticas maduras.

O grande problema que daí se desdobra é exatamente o da superação do fator “contingência”, ou da relativização de tais valores nas periferias mundiais (entenda-se aqui as nações de origem dos apátridas), de maneira que as Cortes internacionais devem definir seu sentido nos casos concretos para que sejam descobertas lacunas e colisões entre direitos fundamentais que, apesar de não notadas pela maior parte da comunidade internacional, estão lá e não se resolverão autonomamente.

Nada mais natural no contexto de estruturação lógica da argumentação jurídica, que, nos casos mais complexos e decisivos, a identificação do significado imanente dos princípios e valores se afigurem essencialmente para fundamentar as escolhas dos juízes, as quais no cenário de hipercomplexidade da pós-modernidade, haverão de sobrepor a homogeneidade ética e linguística do Ocidente pelo próprio direito a ter direitos.

Fonte: Justificando.

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