Diálogos durante a madrugada e o resgate do mito do anel de Giges. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Deméter estava no quarto, com Roberto, observando sua filha dormir, a menina foi liberada pelo médico para viajar, pois já fazia seis meses que a cirurgia fora realizada e a recuperação foi bem sucedida. Era visível a felicidade da mãe, em um determinado momento, durante a madrugada, Roberto interrompeu o silêncio, nenhum dos dois conseguia dormir devido a ansiedade da viagem, por isso ele começou a falar:

Você sabia que os gregos antigos descreviam o conceito de amor de várias maneiras, entre as formas desse sentimento estava o fraterno, cuja palavra grega para designar era “agápe”?

Deméter – Não sabia que agora você era especialista sobre o amor, para mim isso é uma novidade!

Em seguida Deméter começou a rir e Roberto acanhado disse:

– Não sou especialista, apenas li um pouco sobre o conceito de amor no universo grego. É curioso que “agápe” tem como característica a não exigência de retribuição ou recompensa.

Deméter – Isso tem sua verdade, pois independente da minha filha falar, fazer ou até me decepcionar vou continuar sentindo amor por ela. Isso não quer dizer que não venha discordar das suas ações.

Roberto – Desse modo, o amor de mãe pode ser apresentado como uma forma incondicional, que nem sempre há reciprocidade entre a pessoa que ama e que é amada, embora possa desejar. Nesse sentido, uma mãe ama, independentemente de seu filho merecer ou retribuir.

Deméter – Eu não conhecia essa forma de perceber o amor dos gregos, apenas conhecia o conceito de amor de eros ou cupido.

Roberto – Vejo esse sentimento fraternal dominando o seu ser. Existe uma outra semelhança entre você e a antiguidade grega.

Deméter – Não demorou para dizer que sou muito mais velha do que você! Não se justifique, é que você fica bem com o vermelho no rosto! Mas, qual é a semelhança?

Roberto – Muito engraçado! Não estou vermelho e, também, não sou tão mais novo! Respondendo a sua pergunta, na mitologia grega aparecem duas personagens com o mesmo nome de vocês, que também são mãe e filha nos contos dos poetas gregos, com grande destaque para Homero e Hesíodo. 

Deméter – Isso é verdade, lembro que meu pai contava as histórias dos mitos gregos, ele adorava. Eu lembro que Deméter, na mitologia grega, representava uma divindade ligada a agricultura, a fertilidade e por consequência era condição para garantir aos seres humanos o alimento.

Roberto – Tem uma passagem que conta o dia que Hades, irmão de Deméter, que era o deus do mundo inferior, dos mortos, raptou Perséfone, fazendo com que a mãe saísse do Olimpo em busca da sua filha, ninguém sabia do seu paradeiro, apenas o deus Apolo, o deus do sol, que compadecido,  relatou o fato para a mãe desesperada.

Deméter – Para piorar, Hades deu para Perséfone se alimentar sementes de romã do mundo inferior, impossibilitando o seu retorno, pois quem se alimentasse no reino dos mortos não poderia retornar. Deméter, a deusa, caiu em uma grande desgraça, sua tristeza fora tão grande que não mais abençoou e fecundou as sementes, a agricultura. Os seres humanos passaram a ter dificuldades, a vida estava ameaçada. Por esse motivo, Zeus interferiu, fez um acordo com Hades para deixar Perséfone partir, mas ela teria que ficar no reino dos mortos por três meses. Dessa forma, os gregos explicavam a origem das estações, pois no inverno, a tristeza da deusa da agricultura levaria ao frio, a falta de vida, o que seria restabelecido com a volta da filha na primavera.

Roberto – Agora, vejo que é importante explorar os significados do mito.

Nesse momento Deméter interrompeu e disse:

Vamos na cozinha, para ela não acordar.

Roberto concordou e foram para a cozinha, onde se depararam com Ulisses, esse estava tomando café, surpreso, imediatamente ofereceu o café que acabara de ser passado, os três sentaram-se ao redor da mesa, Deméter disse para o irmão:

É por sua causa Ulisses que não dormimos mais, esse cheiro de café invadiu a casa. Agora, Roberto você pode continuar a fazer as suas divagações sobre os mitos!

Roberto – Para mim, o mito de Deméter e Perséfone retrata muitos aspectos da vida humana, pois fazemos parte do universo dos estranhos, não é um mundo desejável. Essa situação é concebida com várias formas de violências e de perdas. Do mesmo modo, a concepção de Perséfone, da mitologia grega, foi decorrente da violência de Zeus sobre Deméter, sua irmã, dando origem a uma criança linda e muito amada pela mãe. Em seguida, encontramos o rapto da menina por Hades, o qual Zeus fez vistas grossas, até que a humanidade passou sofrer com a falta de vida no campo.

Deméter – Além disso, vejo que, nessa história, temos um relato sobre a vida, sobre a finitude e o modo como encarramos tudo isso até a morte. Nesse processo, encontramos o desafio da nossa construção, do nosso subjetivo, do nosso ser, do eu, da nossa identidade, que é construída constantemente, havendo uma teia complexa no tempo em que vivemos independente das nossas vontades. Isso pelo motivo que na perda e nas conquistas temos um processo de amadurecimento, onde cada um de nós tem o desafio de tornar-se a si mesmo, o que é possível a partir do momento que consigamos trabalhar tanto com as relações e as situações que nos agradam, que são favoráveis ao nosso ser, mas também, com as circunstâncias que envolvem perdas, frustrações e com as nossas dores.

Ulisses – Vou me intrometer na conversa de vocês! Tem uma passagem desse mito que está ligada com a construção do nosso eu, mas atrelada com uma postura social. Os mitos traziam esse fundo moral, social e muitas vezes político.

Roberto – Você está falando do quê especificamente?

Ulisses – Nas histórias sobre Deméter, lembro que havia um templo dedicado a deusa da agricultura, da fertilidade, tratava-se de um bosque cheio de vida, de árvores e de animais. Um belo dia, alguns invasores chegaram destruindo tudo, arrancando árvores e expulsando as pessoas que estavam lá.  No meio dos lenhadores e invasores, estava o mandante, um nobre rico e poderoso, que gritava com todas as suas forças: saiam desse lugar! Ele fornecerá a madeira e os elementos necessários para meu novo palácio! O nome do rico era Eresictão. A deusa Deméter ficou furiosa e lançou uma maldição. Quando Eresictão chegou em casa estava faminto, pediu para seus servos trazerem comida, devorava tudo e nada o satisfazia, consumiu todos seus bens, chegou ao ponto de vender sua filha, para ter dinheiro e comprar mais comida, não tendo mais o que vender, começou a devorar a si mesmo.

Roberto- Essa parte do mito acho muito interessante, visto que trata sobre a ambição humana, do desejo de querer mais e mais, aniquilando a vida dos seres e a si mesmo, ignorando o tempo e a finitude, deixando de lado a importância de ser para ter, ignorando a importância da existência para parecer para os outros, para encher o ego.

Deméter – Infelizmente, o mito ainda traz algo de atual, pois o ser humano moderno está dominado pelo vazio, muitos tentam preencher com bens materiais, com o status, com o poder, mas falta o discernimento para perceber que temos como problema o ser, o desafio de conhecer a nós mesmos, perceber as limitações, falhas e não somente as qualidades. Para isso, temos a incumbência de dar a oportunidade de ver que não somos o que idealizamos, mas isso não quer dizer que o nosso ser não deva ser buscado, temos o desafio do autoconhecimento.

Roberto – Ademais, diante da busca de bens materiais consumimos a nós mesmos, não apenas o corpo, que passa sofrer com os juízos voltados para venda, como se fosse uma vitrine, o espírito humano sucumbe ao mercado. Nesse universo, quanto mais consumimos, mais insaciáveis nos tornamos, com isso findamos os laços filiais, as nossas interações sociais, passamos seguir e deixamos esvair a vida em nome do aparecer. 

Ulisses – A partir disso, vemos, também, o consumir da existência  e do ser nas redes sociais, pois o que importa é aparecer, temos uma busca insaciável de atenção no mundo virtual, mergulhamos em um universo de exposição e vaidade, com intenso desejo de ser visto, mas que não aceita algo contrário, um comentário diferente do arquétipo formado para nosso ego, nos colocamos no centro do mundo, mas ao mesmo tempo nos distanciamos de nós mesmos, vivemos para a vitrine, e nos tornamos cada vez mais estranhos, o mundo se transforma em uma mercadoria, em um produto exposto nas redes sociais, restando para o ser apenas o vazio. Já não importa mais a busca em ser justo ou bom, honesto ou correto, embora que tais conceitos são dinâmicos e não absolutos, são questionáveis, entretanto, o fato é que essa busca não importa mais, o que vale é ser visualizado e receber vários likes.

Nesse momento, Inaiê chegou na cozinha, já era de manhã, a viagem iria começar, mas não se conteve, tinha ouvido os irmãos e Roberto conversarem, então disse:

Em relação a essa discussão eu traria o mito do anel de Giges, que Platão apresenta no livro II da República. Visto que muitas vezes temos o desejo de ter vantagens, de obter mais lucros, de alcançar poder a qualquer custo.

Ulisses – Só podia ser a irmã caçula para ficar bisbilhotando a conversa!

Os quatro começaram a rir, Deméter prosseguiu com a conversa:

– Esse mito ou alegoria não conheço. Poderia falar mais sobre ele?

Inaiê – A alegoria conta que havia um pastor que trabalhava para um rei da época, o rei Lídio. Em um determinado dia, durante uma tempestade, acompanhada de um terremoto, o solo se abriu no lugar onde o pastor cuidava do seu rebanho, ele foi verificar e achou um anel, que ele pegou para si e colocou no seu dedo, foi assistir à assembleia que era habitual dos pastores, durante o evento virou acidentalmente o engaste do anel para o interior da mão, para sua surpresa ficou invisível aos seus colegas, ficou assustado, mexeu no anel e colocou o engaste para fora e tornou-se visível. Dessa forma, descobrira que o anel era mágico, então aproveitou para ir até o palácio, entrou sem ser visto, em seguida seduziu a rainha e conspirou com ela a morte do rei e obteve seu lugar, poder e glória.

Roberto – Nesse sentido, muitos poderiam acreditar que o pastor teve uma vida feliz, que tal ação valeu muito apena, porquanto, não importa como se tenha o poder, mas que se alcance o que foi almejado. Contudo, para Platão, o pastor cometeu uma grave injustiça, para ele pode ser até prazeroso ganhar algo, conquistar, mas sem ter a ideia de justiça que oriente não vale apena, já que perdemos o ser, o que importa não são os bens materiais, as riquezas, a fama, o parecer, mas o modo como conduzimos a nossa vida. A pessoa mais rica é aquela que busca pelo senso de justiça e não apenas os bens. Para Platão, não basta parecer bom, mas é necessário ser!

Deméter – Essa alegoria é muito interessante, dado que leva a reflexão sobre o que faríamos se não fossemos vistos, se nossos atos seriam da mesma maneira. Assim, quando não há punição ou a consciência que não seremos pegos em um determinado ato e somos injustos, revela o que temos do nosso ser ou demonstra a perda de nós mesmos, porque colocamos a nossa individualidade e interesses pessoais acima de tudo, deixando os outros sofrerem. Para Platão, a justiça é uma ideia que está ligada a uma coletividade, se coloco apenas a minha individualidade, tenho um processo de estranhamento em relação a maioria das pessoas da minha cidade. Dessa forma, é impossível ser justo restringindo os nossos juízos e a nós mesmos, temos o desafio de aprender a dialogar sobre o bem da coletividade, embora Platão diga que a justiça esteja no mundo das ideias, para alcançarmos, o diálogo e o interesse em buscar o que é certo deve ser constante.

Ulisses – Essa alegoria de Platão pode ser relacionada com o mito de Deméter e Eresictão, dado que consumimos o nosso ser e o tempo da nossa finitude pelo desejo de poder e aparecer e deixamos de lado o ser. Por isso, vale ainda a pergunta, o que faríamos se tivéssemos o poder de ser invisíveis, de não sermos pegos? Muitos fariam tudo o que desse na telha, ignorando as demais pessoas, excluindo, violentando, entretanto, ao fazerem isso, estariam cada vez mais longe da sua humanidade, continuariam perdendo a si, promovendo o mundo do estranhamento e do não reconhecimento das pessoas que não podem ser enquadradas, nisso aparece uma ironia, isto é, o tempo passa,  tudo que temos no que corresponde ao poder e aos bens materiais se perde, desmancha, restando apenas o que foi possível construir para a morada do nosso ser, que nesse caso, haverá apenas a contemplação do vazio.

Após a fala de Ulisses, Perséfone chamou sua mãe para ajudá-la com a cadeira de rodas, sua velha companheira, enquanto isso, Roberto colocou para todos ouvirem a música o “teatro de vampiros”, da banda Legião Urbana, para começar a manhã de bem com a vida. Depois do café, todos embarcaram na ferrugem dos esperançosos, com o desejo de superar a estranheza do mundo dos viajantes e encontrar a humanidade refletida em dois corpos, duas faces, dois irmãos, que estavam no Sul do país.

_

Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.