Massacre palestino: desinformação e manipulação ideológica

Foto @ palestina

“Ao procurar informação no seu principal veículo, o distinto telespectador vai encontrar um pacote pronto de (des) informação, embalado por um luminoso halo de manipulação ideológica, sem mais delongas”

Por Samuel Lima.*

A televisão aberta continua sendo a principal fonte de informação da sociedade brasileira. A conclusão, naquela linha do “oculto que teria sido óbvio”, é de um estudo sobre hábito e consumo de mídia da população e revela: “cerca de 65% dos brasileiros assistem TV diariamente e 97% ao menos uma vez por semana. Na média, são 3:29 horas de TV por dia” (leia análise completa aqui: http://migre.me/kyWUi). A pesquisa foi realizada pelo IBOPE Inteligência, a pedido da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Os dados, recolhidos entre os dias 12 de outubro e 6 de novembro de 2013, representam 18,3 mil entrevistados em 848 municípios, nacionalmente.

Essa referência reforça, sobremaneira, o peso e importância política e ideológica da TV aberta como instrumento de informação ou deformação da opinião pública. Tomo como objeto esse massacre do povo palestino, dentro de um genocídio planejado, como expressa o historiador israelense Ilan Pappé. Foi preciso o número de mortos chegar a 500 pessoas na Faixa de Gaza (70% crianças, mulheres e idosos palestinos) para que o inerte Conselho de Segurança (CS) da ONU pedisse a “imediata cessação de hostilidades” na região. Sem citar Israel, o presidente rotativo do CS, o ruandês Eugene Gasana, expressou sua “séria preocupação” com a escalada da violência. Do lado de Israel, 20 mortes (18 soldados).

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Ao procurar informação no seu principal veículo, o distinto telespectador vai encontrar um pacote pronto de (des) informação, embalado por um luminoso halo de manipulação ideológica, sem mais delongas. Desde o começo do genocídio, há quase duas semanas, venho acompanhando o trabalho de correspondentes brasileiros na região de Gaza e territórios ocupados. Alguns militantes de organizações independentes também me passaram imagens e textos, que estou usando aqui. Contudo, vou me concentrar no trabalho dos correspondentes da TV Globo, Rodrigo Alvarez e Jeremy Portnoi, em Jerusalém.

Para começar, Alvarez não tem a honestidade de informar ao distinto público, que faz suas reportagens como “Embedded Journalist” (ou “jornalista embutido” em tradução literal). Ou seja, capta imagens e faz seu trabalho sob rigorosa censura do Exército de Israel. O resultado final do seu trabalho, como é óbvio e ululante pensar, é afetado por esse viés de origem. Na edição do último sábado (19/07/2014), do Jornal Nacional, isso fica claríssimo na abertura do seu texto: “O enterro de oito integrantes de uma mesma família palestina era o retrato do desespero que tomou conta de Gaza. A população que não pega em armas fica cada vez mais espremida entre o Hamas e as tropas israelenses. Ainda era de manhã e mais de 40 palestinos já tinham morrido. Imagens divulgadas por Israel mostram as tropas marchando e vasculhando casas” (assista aqui: http://migre.me/kyXIq). Suas fontes são sempre unilaterais: os palestinos não têm dirigentes, nem porta-vozes, nem voz em suas reportagens. Ele ignora que o Hamas representa, democraticamente, a população palestina.

No dia anterior (ed. JN, 18/07/2014), esse viés já se anunciara na chamada do apresentador William Bonner: “A ofensiva terrestre israelense à Faixa de Gaza marcou o início de uma nova etapa do conflito com os militantes do grupo radical Hamas. Já são quase 300 mortos” (acesse a íntegra aqui: http://migre.me/kz0n6). A guerra entre desiguais (de um lado, as forças e milícias palestinas contra um dos exércitos mais poderosos do mundo) é retratada como simples “conflito”; o Hamas (que não é Estado) recebe o selo de “radical” (do outro lado, dirigentes “sensatos e pacíficos” de Israel) e por fim os “quase 300 mortos”. Quem são os mortos? Esse dado, aliás, aparece na última hierarquia, no fim da reportagem: “Em 11 dias de guerra, já são 291 palestinos mortos, quase 80% mulheres, idosos e crianças. Entre os israelenses, dois civis e um soldado morreram”, contabiliza Alvarez.

Nesta mesma reportagem, o “jornalista embutido” abre seu microfone para o coronel Peter Lerner, porta-voz israelense, reforçar a mentira que nem chega ao grau de meia-verdade: “Crianças têm morrido todos os dias. Vocês estão errando o alvo?”. “É uma tragédia”, ele diz (Lerner). “Mas é uma tragédia que foi trazida a nós por uma organização que intencionalmente sacrifica a sua população. O Hamas esconde foguetes em mesquitas e até em um prédio da ONU, esse é o tipo de gente com quem estamos lidando”. Se você ficou esperando o “outro lado”, esqueça. A Autoridade Palestina tem reconhecidos porta-vozes internacionais; o Hamas é uma força política eleita, de forma legítima, desde 2006, em uma das primeiras eleições abertas na região. A falta do “outro lado” ou ainda de outras vozes (analistas intelectualmente honestos) é flagrante na cobertura da televisão aberta, no geral, porém fortemente evidenciada aqui no particular.

Encontrar algo equilibrado somente na TV por assinatura, em raros espaços de debate como o Globo News Painel (ed. 20/07/2014, ainda não disponível no site), que reuniu estudiosos da USP, Faculdades Rio Branco e FGV São Paulo. Salem Hikmat Nasser (FGV/SP), com olhar pró-Palestina e Samuel Feldberg, do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, pró-Israel, realmente permitiram um debate raro e de qualidade exemplar.

O padrão enviesado de cobertura do conflito que chamo de genocídio, se formos puxar reportagens anteriores, se repete. Em termos gerais, a cobertura pró-Israel sempre foi uma praxe na mídia tradicional brasileira. O empresariado judeu sionista domina espaços significativos da mídia e na política, em escala mundial e tem suas conexões no Brasil. Isso explica uma parte do problema. O que chama nossa atenção é a absoluta falta de pudor da cobertura atual: nem mesmo o esforço para parecer honesto e “imparcial”, atributos sempre reiterados no discurso da mídia corporativa, se faz presente.

A pesquisadora Malena Contrera (da Universidade Paulista, UNIP) reflete sobre esse tipo de viés, naquilo que ela caracteriza como “crise de representação do real e a construção simbólica da realidade” – na obra “Jornalismo e realidade” (Ed. Mackenzie, 2004). Malena afirma e indaga a um só tempo: “Afinal, morta (ainda que tardiamente) a ilusão da neutralidade jornalística, até mesmo porque os estudos linguísticos e semióticos se ocuparam de demonstrar que toda linguagem é um trabalho de representação com alto grau de subjetividade, qual o critério possível para o novo e exaustivo trabalho de seleção da informação que deve ocupar as atenções e os espaços dos noticiários?”.

No dia 15 de julho, o Movimento Palestina para Tod@s (MOP@T), que representa várias organizações que lutam pela paz na região, realizou a “Vigília por Gaza”, em São Paulo. O ato foi uma “homenagem às pessoas mortas durante esta última ofensiva militar de Israel na Palestina”. O portal Viomundo cobriu o evento: “Não houve discurso. Apenas uma fala quebrou o protocolo, a de Débora Maria da Silvada, coordenadora do Movimento Mães de Maio (da Argentina): ‘Dor de mãe é a mesma em qualquer lugar. Eu estou aqui solidária às mães da Palestina. Quem matou meu filho usava farda e quem mata os filhos das mães palestinas também usa farda. Não vão me calar, porque a dor mais forte que eu poderia sentir eu já senti, que foi a perda do meu filho’” (veja a íntegra aqui: http://migre.me/kz3m6).

Pensando verticalmente sobre o caso da cobertura do genocídio palestino, recorro às reflexões de Malena Contrera para tentar uma resposta provisória: “O Jornalismo praticado em nossa época confunde o elemento novo que a informação deve portar com a atual absolutização do valor de novidade da notícia (mais mercadológico do que conteudístico). Em um universo em que nada mais é sentido como novidade, até mesmo pela aceleração dos tempos informativos que fundem tudo num aqui e agora contínuo e indiferenciado, a informação nova é trocada pelo inusitado. É preciso muito show de horror para nos tirar do estado anestésico da saturação” (cit.).

No caso em tela, não penso em reportagens de contexto histórico, a cada edição diária. Isso caberia aos debates e painéis que inexistem na TV aberta. O que Sua Excia., o distinto público telespectador, espera seria um mínimo de honestidade de princípios e propósitos. Quando o objetivo central não é informar e esclarecer, jogar a luz da informação sobre o real para permitir alguma leitura mais incensada dos fatos, sobra apenas esse mix abjeto de desinformação e manipulação ideológica.

(*) É jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) e pesquisador do Núcleo de Transformações sobre o Mundo do Trabalho (TMT) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC).

Foto: @Palestina

Fonte: Manuel Dutra Blog

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