Deslocados, desprivilegiados e descartáveis: a situação de migrantes e refugiados em Atenas

Por Bruna Kadletz, de Atenas (Grécia).
Publicado originalmente no Refugees Deeply, em inglês (clique aqui)

Assim que eu entrei no campo de refugiados no Parque Olímpico na capital grega, Atenas, eu pensei por um momento que estava na África do Sul.

Minha mente me levou de volta para os prédios abandonados e favelas em Johanesburgo, onde refugiados e imigrantes moram em condições desumanas. Eu levei um tempo para lembrar que estava na Europa. Meus olhos não podiam acreditar no que testemunhavam.

O complexo, que consiste do antigo aeroporto de Atenas, Ellinikon, e do parque que recebeu as Olimpíadas de 2004, abriga em torno de 4 mil solicitantes de asilo e refugiados, sendo a maioria do Afeganistão.

Centenas de barracas armadas nas calcadas, sob um calor insuportável, onde crianças brincam e adultos conversam ou fumam um cigarro. Lençóis e cobertores pendurados servem como cercas, separando barracas, protegendo os residentes do sol ou de olhos curiosos. Dentro do aeroporto, incontáveis barracas ocupam cada metro quadrado do prédio. Respirar fica difícil, imagina se mover.

Ironicamente, refugiados que tanto aspiram por se deslocar de forma segura agora se encontram presos no local que um dia serviu de decolagem para milhares de pessoas.

Apesar do cenário e contexto serem completamente diferentes, a impressão registrada em minha mente era a mesma. Refugiados, solicitantes de asilo e imigrantes, tanto em Johanesburgo ou Atenas, eram tratados como se suas vidas não importassem, como se eles pudessem ser descartados em um aterro de injustiça social e política.

Certamente, nós vivemos em tempos descartáveis. Montanhas de lixo acumulando nos arredores de Délhi, longas faixas de zonas mortas nos oceanos, perda alarmante de biodiversidade e o aumento de terras envenenadas pela indústria agropecuária – esses fenômenos acelerados simbolizam nossa abordagem descartável da vida.

Mas, estamos falhando em reconhecer que a resposta global para o deslocamento forçado também adota uma lógica similar para vidas humanas. Milhares de corpos humanos acumulados em campos de refugiados e fronteiras internacionais, enquanto que outros desaparecem no Mar Mediterrâneo. Até agora em 2016, mais de 3 mil pessoas desapareceram no oceano. Enquanto isso, o estabelecimento de restrições legais, que acarretam no aumento da exclusão social, ocasiona em futuros incertos para aqueles que buscam refúgio. Quando tais políticas públicas são implementadas, vidas são fragmentadas, o espírito humano é envenenado e comunidades inteiras são corroídas, deixando deslocados forçados sem uma gota de esperança.

O que nós podemos observar em tempos de deslocamento forçado extraordinário é que a lógica de vidas descartáveis não está mais restrita ao exército industrial de reserva, como era o caso na era da revolução industrial. O fenômeno de trabalhadores reserva foi identificado por Karl Marx, quando o pensador alemão articulou sobre a capacidade intrínseca do capitalismo em gerar populações reservas e, consequentemente, desperdiçar a vida de milhões de trabalhadores.

O intelectual e filósofo camaronês Achille Mbembe e o teórico cultural Henry Giroux, dos Estados Unidos, estenderam a teoria de Marx para incluir populações desprivilegiadas. Ao explorar a história de desumanização racial na África, Mbembe atribuiu a lógica das vidas descartáveis ao longo processo de desvalorização da vida humana, no qual determinados grupos raciais e populações vulneráveis são sistematicamente destituídos e expostos a violência e exclusão pois os mesmos tem suas vidas consideradas como descartáveis e com menos significado. As políticas públicas, como resultado, acabam exacerbando a condição daqueles que são considerados descartáveis.

Giroux, por outro lado, foca no contexto americano. Argumenta que modos contemporâneos de exercício de poder sobre populações implementam métodos brutais e punitivos, o que tem intensificado a produção de vidas descartáveis. A manifestação física desse exercício de poder pode ser vista na forma como determinadas minorias e imigrantes caem em zonas de exclusão e abandono, já que são considerados o excesso da sociedade.

Essa abordagem descartável para o problema do deslocamento forçado está desperdiçando o futuro de milhões de crianças, profissionais qualificados e artistas talentosos, parte dos quais se encontra em solo europeu. Tal abordagem é mais palpável nos assentamentos informais em Atenas, onde os arredores físicos nos informam visualmente sobre a política deliberada que produz populações desprivilegiadas e, consequentemente, descartáveis.
Por exemplo, nos assentamentos do Parque Olímpico, privacidade e espaço pessoal são impossíveis de serem alcançados. Como não há segurança no local, mulheres e crianças desacompanhadas tornam-se alvos para exploração sexual ou tráfico humano.

O Parque Olímpico está sob a tutela do ACNUR (Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados) e a entrada só é permitida com passes de identificação. Os policias gregos, conhecidos pela sua atitude violenta e hostil, monitoram os portões de entrada, garantindo que ninguém tire fotos ou faça perguntas. Contudo, não é claro se alguma organização internacional está responsável pela área vizinha, o aeroporto onde barracas continuam a proliferar. Não existe nenhum sinal da presença do ACNUR, UNICEF, OXFAM, Médicos sem Fronteiras ou outras ONGs internacionais.

A única presença organizacional que pude notar foi uma empresa privada de distribuição de comida. O gerente da empresa alimentícia me contou que o governo grego contratou os serviços da empresa para provisão de três refeições ao dia para os refugiados que residem o campo. Os residentes enfrentam longas filas duas vezes ao dia, debaixo de um sol escaldante e com seus documentos de registro em mãos, para que possam coletar seus pacotes de comida pronta. O pacote coletado no jantar também inclui o café-da-manhã do dia seguinte.

A fortaleza europeia trata refugiados como não desejados. Com o aumento da restrição de movimento, refugiados são jogados fora ou em campos isolados em regiões remotas ou nas margens urbanas. As narrativas políticas ainda retratam refugiados como um peso econômico para o estado ou como ameaças para a sociedade. Como resultado, aqueles que fogem zonas de guerra estão fadados a ocupar zonas de invisibilidade, controle e confinamento. Por falta de recursos e vias legais, refugiados acabam sendo submetidos a exploração e opressão – tantos por sistemas políticos, traficantes empregadores e organizações radicais.

Esta realidade deveria nos encorajar a questionar como, no continente que deu vida aos direitos humanos e afiançou proteção aos refugiados, pessoas ainda são desumanizadas e tratadas como o lixo da sociedade.

Durante o desenrolar desta série de artigos, vou buscar retratar a conhecida “crise dos refugiados” através da lógica das vidas descartáveis. Os textos refletem minha experiência e observações em diferentes contextos – de comunidades de migrantes e refugiados na Turquia, África do Sul e Brasil aos assentamentos informais montados na Grécia e França.

Assim como a viagem continua, eu espero conseguir encaminhar o do leitor ao longo da série para a intenção que motiva essa exploração – um chamado para uma abordagem baseada em uma consciência coletiva que reconheça a importância de reconhecer valor em todas as vidas humanas.

Essencialmente, nós precisamos encontrar humanidade no centro da crise mundial dos refugiados para que assim possamos amenizar a crescente violência no mundo, conflitos armados e deslocamento forçado. Conflitos desestabilizam comunidades e nações e, ainda que comunidades possam ser fragmentadas, há a necessidade de reconhecer a essência da interdependência e interconexão da nossa existência como humanidade.

Foto: Reprodução/MigraMundo

Fonte: MigraMundo

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