Desigualdades, informalidade e a proteção previdenciária

Por Luís Fernando Silva*

Todos sabemos que o Brasil detém um dos piores índices de concentração de renda no mundo, em que os 1% mais ricos detêm cerca de 27% de toda a renda nacional, situação que piora quando ampliamos a faixa dos mais ricos para 5%, quando a concentração sobe para 44% da renda nacional.

Segundo um estudo inovador, realizado pelos pesquisadores Souza e Medeiros (2012), ao aplicar ao caso brasileiro a metodologia de mensuração de desigualdade tornada célebre pelos economistas Saez e Piketty, a conclusão é de que a concentração de renda no Brasil é tão expressiva e enraizada na estrutura do País que mesmo as fortes políticas de proteção social adotadas durante os Governos Lula e Dilma (que efetivamente conseguiram retirar da pobreza absoluta dezenas de milhões de brasileiros, fazendo com que outras dezenas de milhões fossem elevados aos padrões iniciais da classe média), não foram suficientes para sequer tangenciar a riqueza concentrada pelos mais ricos, riqueza esta que, ao contrário, subiu. Em outras palavras – e diferentemente do que parecem demonstrar os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD -, os 5% mais ricos não contribuíram para a redistribuição de renda que se verificou (entre 2003 e 2012) entre os restantes 95% da população brasileira.

Visto por outro ângulo, para os pesquisadores citados o poder econômico, político e social exercido pelos 5% mais ricos é tamanho, que conseguiu fazer com que a política econômica e social empreendida entre 2003 e 2012 também lhes beneficiasse, a ponto de haver permitido inclusive que ampliassem levemente a fatia que detêm da renda nacional, o que se explicaria pelo fato do conceito de renda guardar relação com a capacidade de consumo, mas também constituir indicador de poder e capacidade de comando sobre recursos públicos, aí incluído o poder de influenciar campanhas políticas, acionar conflitos judiciários, patrocinar decisões legislativas, etc.

Em outras palavras, se as políticas governamentais de redistribuição de renda fossem capazes de alcançar os 5% mais ricos da população (e vimos antes que até aqui não têm sido), sua eficácia seria muito mais expressiva que aquela decorrente da incidência desta política sobre o restante da população, o que deixa claro que os 5% mais ricos contribuem muito mais para o comportamento da desigualdade no Brasil do que os mais pobres.

A conclusão que podemos extrair destes estudos é que a adoção de políticas de proteção social (como o bolsa-família e o incremento no valor do salário-mínimo, por exemplo), têm o condão de promover distribuição de renda apenas entre aqueles que não estão entre os 5% mais ricos da população brasileira, não sendo suficientes para modificar a concentração de renda no topo da pirâmide, tarefa para a qual se mostra indispensável a adoção de políticas tributárias como a taxação de grandes fortunas; o aumento dos percentuais tributários incidentes sobre aqueles que vivem de especulação financeira e imobiliária; o aumento da tributação sobre transmissão de bens; dentre outras medidas desta índole.

Mostra-se imperioso o aprofundamento das políticas estatais de proteção previdenciária e de assistência social às camadas da população brasileira que a elas ainda não têm acesso, assim como a modificação dos reajustes operados sobre os benefícios em manutenção, de modo que estes cresçam mais que a inflação, distribuindo renda diretamente do Estado para as camadas menos favorecidas da sociedade.

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Mecanismo de transferência de renda às populações menos favorecidas

Neste ponto cumpre lembrar que não restam dúvidas acerca dos efeitos positivos gerados pelo pagamento de benefícios da Seguridade Social, em particular no que diz com os reflexos econômicos que estes são capazes de gerar sobre o consumo, o que acaba por trazer consequências positivas diretas sobre as economias dos municípios, em particular no interior do País e nas áreas mais pobres.

Para se ter uma ideia mais clara destes efeitos, um estudo realizado pela Anfip (2014) nos informa que em 2012 as despesas com os benefícios de prestação continuada da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) representaram algo em torno de 0,6% do PIB, mas cada Real gasto com o programa representou um incremento de R$1,54 no consumo das famílias beneficiadas, o que contribuiu com R$1,19 na formação do PIB; já as despesas com o Bolsa Família, conquanto hajam representado 0,4% do PIB, foram capazes de ampliar em R$2,40 o consumo das famílias beneficiadas, adicionando R$1,78 no PIB, dados que demonstram de forma inequívoca que expressiva parcela dos recursos públicos aplicados nestas áreas retorna ao Estado através dos tributos incidentes sobre bens e serviços utilizados pelos beneficiários destes programas, aspecto este que nem sempre é levado em conta pelos que criticam os gastos sociais.

O mesmo estudo, de outro lado, afirma que, entre 2002 e 2012, o Bolsa Família foi responsável por uma redução de 28% na extrema pobreza, fazendo com que a população que vivia com renda de até R$70,00 fosse reduzida de 4,9% para 3,6%.

Situação semelhante se dá em relação ao pagamento de benefícios previdenciários, que constitui verdadeiro mecanismo de transferência de renda às populações menos favorecidas, o que se reforça pela vinculação do piso previdenciário ao valor do salário-mínimo e pela política de aumento real deste último, empregada sobretudo a partir de 2003, consoante afirma o IPEA (2011) ao concluir que “a cobertura quase integral dos idosos por transferências da Previdência e da assistência social com benefícios de piso atrelado ao salário mínimo tornou-se, para eles e para os membros de seu grupo doméstico, um seguro contra a pobreza extrema, ou mesmo contra a pobreza”.

Para França (2011), se não fossem as transferências geradas pelo pagamento de benefícios previdenciários, no ano de 2009, ao invés de 29% de pobres (aqueles que possuem renda de até ½ salário-mínimo), o Brasil teria alcançado a cifra de 42% de sua população nesta faixa, diferença que representa algo em torno de 23 milhões de pessoas. O mesmo estudo demonstra que naquele mesmo ano de 2010, em 3.875 municípios brasileiro (ou cerca de 69,6% do total constante da base de dados do então Ministério da Previdência Social, que era de 5.566 municípios), a renda gerada pelo pagamento de benefícios previdenciários superou as receitas recebidas do FPM – Fundo de Participação dos Municípios.

Em outras palavras, conquanto se deva ter claro que o objetivo primordial de um regime previdenciário é a reposição de renda em casos de perda da capacidade laboral (seja pela idade avançada, o cumprimento de tempo de contribuição, invalidez, o falecimento ou outras razões previstas em lei), é evidente que a realização de despesas da magnitude daquelas a cargo do Regime Geral de Previdência Social geram efeitos que vão muito além destes objetivos principais, afetando diretamente os índices sociais e de distribuição de renda, com o que contribuem para a redução das desigualdades regionais, o que fica patente quando percebemos que o pagamento destes benefícios representa a maior fonte pública de renda em mais de 70% dos municípios brasileiros.

De outro lado, mesmo quando olhamos a proteção previdenciária apenas a partir do seu objetivo precípuo, ainda assim é de concluir pela sua importância para a garantia de sobrevivência minimamente digna de uma expressiva parcela da população brasileira, o que por si só já deveria ser suficiente para que as despesas assim realizadas fossem vistas com outros olhos por aqueles que teimam em considerá-la apenas uma despesa a ser contingenciada.

Mercado formal e inclusão na proteção previdenciária

Ainda do ponto de vista da cobertura previdenciária, é imperioso relembrar que no último ano do Governo Fernando Henrique Cardoso a População Economicamente Ativa – PEA era de 84,7 milhões de brasileiros, sendo que destes apenas 35,6 milhões encontravam-se na formalidade (e, portanto, gozando de proteção previdenciária), o que implicava dizer que apenas 42,03% da PEA fazia jus a tal proteção, enquanto os restantes 57,97% compunham um absurdo contingente de pessoas sem qualquer garantia previdenciária contra a velhice, a doença ou a invalidez, números estes que desnudam a política governamental então empregada, que seguia à risca a cartilha do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, e que tinha como um dos seus principais objetivos a formação de altos contingentes de desempregados ou de trabalhadores informais, de modo a reduzir a massa salarial e, em última análise, aumentar o lucro do empresariado.

Este alto número de trabalhadores informais, por outro lado, impactava negativamente sobre a arrecadação previdenciária e o equilíbrio atuarial do sistema, uma vez que a relação entre trabalhadores em atividade (formais) e o número de aposentados não conseguia ultrapassar o mínimo necessário para este equilíbrio, que em regime de repartição (como o nosso) situa-se em torno de 3 por 1 (são necessários 3 trabalhadores em atividade para gerar receita suficiente para o pagamento de 1 aposentado).

Estes números começam a mudar drasticamente a partir de 2003, com a adoção de políticas estatais de formalização das relações de trabalho, fazendo com que em 2012, quando a PEA chegou a 100,1 milhões de brasileiros, o número de contribuintes da Previdência (formalizados) alcançou 56,6 milhões, representando 56,54% da PEA.

Em outras palavras, enquanto a cobertura previdenciária era de 46,2%, em 2002, em 2012 representava 60,2% da população ocupada, como demonstra a Tabela, extraída do estudo da ANFIP (2013).

Não devem restar dúvidas, assim, de que as políticas de formalização da economia e das relações de trabalho contribuem para a inclusão de mais brasileiros na proteção previdenciária, o que gera reflexos não só sobre a proteção social direta, que ela resulta, como influi decisivamente na redução das desigualdades regionais e na concentração de renda, ainda que não seja suficiente para atingir (potencializando a redução desta concentração), a faixa dos 5% mais ricos.

*Advogado e assessor jurídico do Sindprevs/SC

Imagem tomada de: Ateus.net

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