Desigualdade

Por Flávio Fligenspan.

Se me pedissem para resumir a sociedade brasileira numa palavra, eu não teria nenhuma dúvida. A marca maior da nossa sociedade em todos os tempos é a desigualdade. E ela vale para quase tudo, renda, patrimônio, carga fiscal, condições de vida em geral, incluindo saúde e saneamento, acesso à educação etc. Por isso, o tema é tão vasto e politicamente tão delicado. E mexe com sentimentos arraigados e com paixões de grupos de diversos matizes.

Nossa grande experiência de crescimento econômico nos anos 1960/1970 foi baseada num processo bem marcado de redistribuição de renda em favor das classes médias e altas, tendo como referência o consumo de bens duráveis e a aquisição de imóveis. As camadas de baixo da pirâmide, sufocadas por salários baixos e inflação elevada, não tinham para quem se queixar em plena ditadura. A frase chavão, até hoje negada, mas que representava bem a lógica econômica daquele momento era “primeiro o bolo tem que crescer para depois ser distribuído”. Como se sabe, o bolo cresceu à média de 11% ao ano durante seis a sete anos e nunca chegou a hora da distribuição. Desde a metade dos anos 1970 passamos por várias crises de naturezas diversas e a taxa de crescimento nunca mais chegou nem perto da daquele momento. Por décadas o chamado “milagre econômico” foi nossa maior referência exitosa de crescimento.

O período de 2004 a 2011 se configurou como um outro ciclo de crescimento, bem mais modesto que o anterior em termos de taxas – pouco superior a 4% ao ano, em média – e com condições domésticas e internacionais bem diferentes. A grande novidade foi o fato de ele ser concomitante com um processo de redistribuição de renda em favor dos mais pobres. Mas foi além disso, porque não apenas se demonstrou que era possível ter crescimento com redistribuição, como se mostrou que a própria redistribuição era geradora de crescimento, através de dois efeitos: o efeito propensão a consumir, maior para os mais pobres, e o “efeito cesta”, pelo qual o consumo das camadas mais populares é direcionado para bens e serviços mais intensivos em mão de obra, o que realimenta o modelo. O fato político deste novo tipo de crescimento econômico é incontroverso, já que se evidenciou não ser necessário o bolo crescer primeiro para depois ser distribuído.

Neste último ciclo são inegáveis as contribuições de políticas públicas tais como o Programa Bolsa Família, a recuperação do valor real do salário mínimo, a expansão do crédito – incluindo a introdução do consignado – e os avanços na área da educação. O índice de Gini, quando medido para rendas do trabalho, mostrou com clareza um forte processo de redistribuição neste período recente, pelo menos desde 2001.

O problema é que o Gini está diminuindo cada vez menos desde 2011 e a PNAD de 2014, divulgada pelo IBGE na última sexta feira (13/11), confirma este movimento (lembre-se que quanto menor o índice de Gini, menor a desigualdade). E não é difícil encontrar explicações para o fenômeno. Por um lado, o Bolsa Família atingiu seu teto em termos de público-alvo, e por outro, o ritmo de crescimento mais lento da economia segura a expansão das demais variáveis. Observe-se que a pesquisa recém divulgada refere-se a 2014; logo, quando aparecerem os resultados de 2015, os números vão ser piores, seja pelos efeitos da inflação mais alta, seja pela aplicação de uma política econômica de intenção recessiva e o consequente aumento do desemprego.

Já há algum tempo os especialistas no tema têm discutido este assunto e têm apontado caminhos alternativos para dar seguimento ao processo de redistribuição. Mas não são caminhos fáceis, já que passam por mudanças estruturais, sempre muito difíceis no Brasil. A mais óbvia é a sempre adiada reforma tributária, através da qual se decidiria quem financia quem na sociedade brasileira. Como se sabe, a carga tributária no Brasil, além de alta, é fortemente regressiva, penalizando os mais pobres. Todos os estudos internacionais sobre distribuição de renda mostram inequivocamente como cai o índice de Gini quando se incorpora às estatísticas de base de seu cálculo a atuação do Estado, tanto pela via da tributação, quanto pela dos programas de transferência.

Deve-se considerar que existem outras formas de atuar a favor da redistribuição de renda: o combate às desigualdades de gênero – neste caso as notícias são boas, pois a PNAD mostra que diminuiu nos últimos anos o diferencial de salários médios entre homens e mulheres; o combate às desigualdades regionais; avançando no que se refere à educação – com mais ênfase em qualidade do que apenas na quantidade de matrículas; e a adoção de uma política industrial de apoio à pesquisa e à produção de bens voltados às camadas de baixa renda.

De qualquer forma, como o tema da redistribuição é sempre politicamente muito delicado e controverso, inclusive nos seus desdobramentos eleitorais, há quem ponha em dúvida a própria existência de um processo recente de redistribuição de renda no Brasil, através do questionamento da forma como ele é medido. Esta é uma discussão interessante que deixo para fazer na semana que vem.

Foto: Blog Rotineiras

Fonte: Sul 21

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