Democracia em desencanto

democracia em desencanto

Por Rafael Silva.

Diante do atual golpe de estado, o Brasil clama pela sua democracia furtada. Aparentemente, essa pecha parece ser a mais digna de ser empreendida diante do assalto oligárquico à “cracia do demos”, isto é, ao “governo do povo”. Entretanto, seria a democracia inquestionavelmente a nossa melhor opção? Sem essa resposta, nosso presente clamor corre o risco de ser um tiro no pé. Pior ainda, se a democracia com efeito não for a melhor forma de governo, outra coisa não estamos sendo senão massa de manobra a quem realmente esta forma de governo interessa, senão ao povo, que é a maioria, paradoxalmente às minorias.

Antes de atravessarmos esse aparente paradoxo envolvido na nossa democracia, vale relembrar que Aristóteles, na sua Política, disse que a democracia é, ao mesmo tempo, a pior das formas boas de governo, mas a melhor entre as más. Nossa contemporânea luta por ela parece se fixar somente nessa segunda definição. Agora, se atentássemos à primeira, é tácito que é uma burrice lutar por ela. A Aristóteles, portanto, a melhor pergunta que poderíamos fazer é: quais são então as boas formas de governo em relação às quais a democracia é a pior? Dessa resposta depende uma busca mais inteligente.

Para o filósofo grego, as boas formas de governo são a monarquia (o governo de um só em favor de todos); a aristocracia (o governo dos mais virtuosos em prol de todos); e a “politeia”, a parente virtuosa da democracia (o governo de muitos em benefício de todos). Já as más formas de governo, que na verdade são as degradações destas três, correspondem, respectivamente, a tirania (o governo de um só em função de interesses privados), a oligarquia (o governo de uns poucos em prol de si próprios) e a democracia propriamente dita (o governo do povo em função de si mesmo).

Com efeito, a democracia comparada com as duas outras formas degradadas de governo sustenta um verniz de virtude. Seu vício oculto, entretanto, é esclarecido por Aristóteles: a democracia “surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aplicando esse vício à realidade tupiniquim, se todos são absolutamente iguais entre si, e portanto todos merecedores de terem seus interesses contemplados, como conciliar, democrática e satisfatoriamente, um povo tão plural quanto antagônico, que em última e trágica instância, diante do golpe de estado, se separa em duas forças inconciliáveis, quais sejam: a liberal-oligárquica-fundamentalista, e a social-democrata-laica?

Não podemos deixar de considerar, portanto, que, democraticamente, uma pode, legitimamente, se impor contra a outra. E porventura não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil com a minoritária elite oligárquica-fundamentalista do “PMSDB” (o Frankenstein formado pelo PMDB e o PSDB), que afastou do poder os majoritários 54 milhões de votos legítimos do governo do petista, legados a esse partido por conta dos 12 anos de governo prévio à reeleição Dilma que revolucionaram o conceito de povo, fazendo participar dele não só os homens velhos brancos ricos, mas também as mulheres, os jovens, os negros, os pobres, os LGBT, em suma, os historicamente excluídos sociais em geral?

O atual caso brasileiro é a prova de que a democracia é o meio de uma minoria -novamente, os homens velhos brancos ricos- se impor sobre a maioria. Mas isso não é novidade, pois no seu berço grego a democracia já era exclusivista. Dela participavam apenas indivíduos livres (não-escravos) do sexo masculino. Dos 300.000 habitantes de Atenas, somente 30 mil desfrutavam da democracia. Algo como 10% da população.

Na sua versão moderna-representativa-burguesa, que ainda é a nossa contemporânea, a democracia outrossim é para pouquíssimos, embora minta muito bem que é para a maioria. Considerando que, infelizmente, é o capital que com efeito melhor garante direito de participação ativa no governo de uma sociedade, –vide os astronômicos e lucrativos investimentos empresariais nas campanhas políticas-, e sem deixar de fora o fato de que quem financeiramente comanda o mundo composto por sete bilhões de indivíduos são mais ou menos trinta milhões de pessoas consideradas ricas, algo menos que 0,005% da população mundial, temos que a modernidade transformou a já contraditória democracia da Grécia antiga em algo profundamente mais desigualitário.

É esse o sistema de governo que estamos defendemos com unhas e dentes no Brasil diante do golpe, a democracia, esse ambiente político onde qualquer barbaridade pode ser viabilizada, bastando que uma minoria com potencial financeiro ideologize a maioria em função de seus interesses? Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Adolf Hitler no poder! E porque, democraticamente, o genocida alemão ideologizou eficaz e estrategicamente sua nação inteira, o extermínio da raça judaica passou a ser um projeto racional. Pior ainda, “o” projeto perfeito para salvar a Alemanha. A democracia nas mãos da burguesia consegue ser catastroficamente pior do que nas mãos da antiga aristocracia grega.

Agora, se não é pela democracia que devemos lutar, uma vez que ela é a forma de governo que concretamente privilegia a minoria já privilegiada, em qual forma de governo devemos investir coletivamente? Ora, se o PMDB e o PSDB, ambos com a palavra democracia nos seus nomes – o questionável “D” que os antepenultimalizam-, tiraram do poder justamente o governo petista cujo mérito inegável foi ter aproximado mais do que qualquer outro a maioria da população brasileira não só do conceito de povo brasileiro, como também e principalmente do governo do Brasil, ser antidemocrático, nessa conjuntura, é lutar pelo interesse da maioria, do povo de verdade. Tarefa aparentemente paradoxal, contudo, uma vez que até mesmo o PT golpeado defende a democracia.

Entretanto, retomando Aristóteles, e concebendo a democracia enquanto a pior das melhores formas de governo, e isso comparativamente à monarquia e à aristocracia, seria investir em uma dessas duas a coisa mais racional a se fazer no Brasil? O problema é esses conceitos estão viciadíssimos. A monarquia jaz atrelada à moderna ideia de um rei absolutista que prefere construir palácios espetaculares para si mesmo em vez de pensar no bem de seus súditos. E isso porque a confundimos com a tirania. E a aristocracia, o governo dos melhores, soa como se esses “melhores” se referisse à qualidades naturais de certos indivíduos. Outrossim a confundimos com a oligarquia (o governo de poucos). Não sabemos mais diferenciar as formas de governo em suas expressões virtuosas e viciosas.

O governo petista, cujos vícios políticos e econômicos são evidentes, ao menos tem a notória virtude de ter feito o melhor governo desse país, afinal, nenhum outro tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, 42 milhões da pobreza dita “normal”, levou saúde a 50 milhões que não a tinham, 7 milhões às universidades, só para citar as mais objetivas inclusões sociais dos últimos 14 anos, se não é democrático, sem a menor sombra de dúvida é aristocrático no que esse conceito tem de mais probo. Não, obviamente, que os “indivíduos petistas” sejam melhores que os dos outros partidos. Inegavelmente melhores, entretanto, são os resultados sociais dos governos do PT. Aí é que entra a virtude do conceito de aristocracia: o governo de um grupo cuja excelência é alcançar o melhor, não para si mesmos, obviamente, mas, senão para todos, ao menos para a maioria absoluta.

No sentido de encontrarmos algo melhor que a democracia que vive na boca da elite golpista brazuka, resta, das boas formas de governo aristotélicas, a monarquia. Lula, por sua vez, não seria o bom governo encarnado em uma única pessoa, uma vez que fez mais e melhor por todos se o compararmos a todos os presidentes que oi precederam? Podemos dizer que sim na medida que tirano ele não foi, isto é, não governou para interesses privados. Afora os assaz classe média tríplex de Guarujá e sítio de Atibaia, que dizem ser as suas “conquistas” pessoais indevidas, mas que até aqui não há prova de que sejam de fato seus, Lula não governou para enriquecer-se, como a maioria dos representantes declaradamente democratas que deram o golpe no Brasil.

Tudo isso para dizer que, baseados, de um lado, nas formas mais virtuosas de governo identificadas por Aristóteles há mais de vinte séculos, e, de outro, na atual conjuntura brasileira, na qual partidos democratas roubaram o poder para si, há formas de governo melhores pelas quais lutar nesse momento crísico que não a democracia. Seja o governo de alguns melhores, uma aristocracia, seja o de um homem só, a monarquia, todavia em suas saúdes aristotélicas plenas, isto é, não corrompidas em tirania e oligarquia, respectivamente, se servirem de fato à maioria, quiçá a todos, são muito mais dignos de serem buscados por nós, o povo, do que a democracia, que, se literalmente significa “governo do povo”, pragmaticamente tem significado o contrário.

Seja na Grécia antiga, naquela democracia direta-oligárquica, seja hoje em dia, na nossa democracia representativa-burguesa, em ambos os casos temos que esta forma de governo é feita para poucos governarem a maioria em função de seus interesses privados. 10% antigamente, 0,005% atualmente, são as parcelas da população beneficiadas pela democracia ao longo do tempo. E se hoje compramos massivamente a pecha da “restauração da democracia brasileira”, outra coisa não estamos fazendo que lutar por uma forma de governo que, historicamente, vem reduzindo a centralidade dessa mesma massa, isto é, do povo, na governança que deveria ser para todos, mas que apenas mentirosamente sobrevive na palavra democracia.

Se, conforme Aristóteles, das melhores formas de governo a democracia é a pior, ainda que das piores seja a melhor, seguir batendo nessa tecla democrática -tecla com a qual aliás a minoria mais bate na maioria do que o contrário-, é ou burrice, ou masoquismo. Inteligência seria lutarmos pelas formas mais virtuosas definidas pelo maior gênio da história da humanidade: a aristocracia ou a monarquia; seja em forma de partidos políticos socialistas, seja em forma de um rei político e carismático ao bom estilo Lula, pois mediante tais governanças certamente o “todos” ao qual as virtuoses políticas aristotélicas necessariamente se referem não será alienado em função de poucos ou de um só.

Para tanto, precisamos desencantar a democracia, superá-la, e finalmente aceitarmos o que a filosofia política de Aristóteles diz há mais de vinte séculos. Senão para nos livrarmos da ambiência próxima da tirania e da oligarquia e nos aproximarmos de formas mais virtuosas tais como a aristocracia e a monarquia, o que já seria um avanço, ao menos, e com sorte, para introduzirmos no presente a velha, porém alienígena para nós, “politeia” grega, a melhor das melhores formas de todos serem governados.

Fonte: Laboratório Filosófico.

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