Democracia e Estado de Exceção

Estou pensando que não há como entender tudo o que está acontecendo no Brasil sem refletir a respeito dos seguintes pontos:

  • As práticas jurídicas e policiais totalitárias, punitivistas e de exceção que nunca deixaram de ser o cotidiano para as pessoas das classes/camadas baixas, média-baixas e miseráveis e dos grupos historicamente perseguidos no país, e em como elas vêm sendo aplicadas de forma universal e generalizada acentuadamente nos últimos anos (incluindo agora também pessoas de classes/camadas médias e média-altas e pessoas brancas dessas classes e camadas não baixas e não pobres) com os antigos métodos que as PMs e o Judiciário brasileiro usam sem interrupção com as pessoas pobres, marginalizadas e não-brancas desde a ditadura – ou desde sempre…
  • Os textos do juiz Sérgio Moro em defesa de operações jurídico-policialesco-midiáticas que deslegitimam e devassam os/as investigados/as, com mobilização da opinião pública e incitação ao punitivismo, ao moralismo-punitivista-inquisitório, à humilhação, à coerção, ao justiçamento medieval, à presunção de culpa, à acusação espetacularizada desprovida de contraditório/de defesa, à condenação pública midiática, às invasões residenciais, ao constrangimento público, à destruição simbólica e moral, à exposição vexatória, ao fim da presunção de inocência, entre outras atrocidades…
  • A operação Lava-Jato, que concretizou as ideias do juiz Sérgio Moro, já expressas em seus textos – mas não só neles, e nem somente nas ideias expressas por esse juiz – e nas relações tão “íntimas” e diretas que operadores do direito, responsáveis pelas arbitrariedades e abusos como o do caso do falecimento do Reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, têm com a operação Lava-Jato e com o ideário do juiz da república de Curitiba…
  • A participação direta, perversa e criminosa da mídia em todos esses processos de violações de direitos, contra toda e qualquer pessoa que esteja na mira das polícias e instituições jurídicas… na mídia como partícipe, cúmplice e “sócia na empreitada do estado de exceção”…
  • As alterações das leis e da constituição promovidas nos últimos anos (e, por mais que isso me doa, foram, sim, de governos petistas) que, sob o pretexto de “combater a corrupção” e “combater o terrorismo”, abriram uma série de brechas legais (!) que passaram a legitimar (ainda mais) a total violação de direitos e até mesmo a ausência de direitos (em panoramas de regimes de exceção e de totalitarismo) de qualquer pessoa que entrasse na mira das polícias e forças jurídicas…. em implantação de uma “ditadura da toga”, um regime de exceção jurídico-policialesco autoritário, totalitário e extrema e perversamente punitivista…
  • A universalização dos direitos x universalização do estado de exceção: como o jurista Pedro Serrano bem aponta, ao invés de estar havendo uma universalização de direitos/de direitos respeitados (com acesso e concretização de direitos para TODAS as pessoas do Brasil), o que está havendo é uma universalização da violação dos direitos e do estado de exceção (uma violação do acesso aos direitos e uma interdição e uma proibição total da concretização de direitos), em uma universalização do estado de exceção autoritário e fascista. Isso acontece muitas e muitas vezes (na verdade, em todas) com justificativas ultra-moralistas e ultra-punitivistas vindas de todos os lados, o que é assustador…
  • O ideário (simbólico, ativista e discursivo) moralista-punitivista-justiçador-dicotômico-maniqueísta contrário à (real) universalização dos direitos (em especial os direitos humanos) tão enraizado e hoje majoritário em toda a sociedade brasileira – inclusive nas esquerdas, em seus movimentos e grupos mais radicais, e também nos movimentos identitários. ou seja, um ideário que realmente impera em nosso país. um ideário que é estrutural, estruturante, normativo e normatizador em nosso País…
  • A luta pela democracia e pelos direitos (em especial os direitos humanos) como uma luta que só faz sentido se for realmente pensada como algo que vá ser para todas as pessoas, inclusive também para quem é de outros grupos humanos e políticos que não os nossos próprios, para quem discorda, diverge, tensiona, questiona, discute, debate e etc…
  • A luta pela vigência de valores democráticos como “valores que não valem só pra nós e pros/as nossos/as amigos/as, mas que são valores de todo o conjunto da sociedade”, no qual “você precisa dar ao/à outro/a [a TODAS as pessoas outras para além de si] a oportunidade de provar sua inocência e de proteger a sua reputação onde o/a outro/a só se torna publicamente condenado quando a justiça se manifesta, após uma longa investigação, após um trabalhado demorado e rigoroso de apuração, investigação e condenação, quando a chance de erros e potenciais violações de direitos é muito pequena”…
  • E por último, mas não menos importante (muito antes pelo contrário!), penso também na imensa e generalizada dificuldade que temos para lidar com suicídios e processos de adoecimento psíquico/psicológico/emocional. Em como realmente ainda tratamos esse sofrimento dentro das mesmas lógicas manicomiais – como tabu, com culpabilização, criminalização, estigmatização e exclusão. o Reitor Ollivo, assim como muitas ou todas as vítimas de suicídio e de processos de adoecimento psíquico/psicológico/emocional, foi e segue sendo desrespeitado por uma imensa maioria de pessoas de todos os espectros políticos e identidades mesmo depois de morto. Isso têm acontecido de forma perversa especificamente com relação ao seu suicídio, quando as pessoas:
    • desrespeitam um luto por uma morte provocada por suicídio (na lógica de que o suicídio seria uma morte menos ou não digna de luto);
    • desqualificam as motivações do suicídio, ou deslegitimam o próprio ato de suicídio cometido, ou colocam o suicídio e o intenso sofrimento psíquico que o causou sob suspeita ou descrédito total (apesar dos sinais suicidas que a vítima havia deixado, e a despeito de todas as condições do crime que atestavam o ato extremo);
    • ou associam sofrimento psíquico e suicídio à alguma falha de caráter ou assunção de culpa, negando o direito à presunção de inocência mesmo depois de morto – reforçando assim justamente o mesmo discurso jurídico-policialesco-acusatório-arbitrário que condena antes de concluídos quaisquer processos legais que estão no cerne do adoecimento que o levou ao suicídio;
    • ou tratam esse suicídio reproduzindo os piores estigmas e estereótipos historicamente imputados aos/às suicidas (que são a culpabilização, a responsabilização, a criminalização, a condenação, a exclusão e a punição post-mortem das vítimas de suicídio).
  • Isso tudo é de imensas e lamentáveis perversidade e crueldade, de total falta de alteridade e do mínimo de empatia, para com um severo processo de sofrimento psíquico (e para com a pessoa vitimada por esse processo). Não por acaso, aliás, as lógicas manicomiais são também extremamente punitivistas. E nada disso é exclusivo do caso do Reitor – muito antes pelo contrário, isso, infelizmente, é a regra tanto nos mais diversos casos de suicídio como também no (cruel) tratamento com o qual nossa sociedade (não) se relaciona com processos de adoecimento psíquico/emocional/psicológico e com as tantas e diversas pessoas que sofrem com esses processos. Também isso pede nossa urgente reflexão.

Penso que olhar pra qual direção estamos apontando é crucial nesse momento. É crucial nos perguntarmos se apontamos para a universalização dos direitos (e do acesso a eles e de sua concretização), ou se apontamos para a universalização da violação de direitos e da ausência de direitos – ou seja, por mais que a gente não queira e não se dê conta disso, se apontamos para o avanço e ampliação do estado de exceção (de violação e ausência de direitos, inclusive na reprodução de uma lógica que muitas/os de nós dizem combater/querer combater.

Nesse caso do Reitor, isso têm saltado nas discussões como uma polarização dramática (e, para mim, extremamente perigosa, porque fascista) – e ironicamente, muitas vezes em defesa da violação dos direitos, da arbitrariedade, de ações totalitárias, das ações de exceção.

Ao invés de estar havendo uma universalização de direitos/de respeito e cumprimento de direitos (com acesso e concretização de direitos para TODAS as pessoas do Brasil, ou seja, universal), o que está havendo é uma universalização da violação dos direitos (uma violação ao acesso aos direitos e uma interdição e uma proibição total da concretização de direitos). O que está havendo é uma universalização do estado de exceção autoritário e fascista, e isso têm acontecido com justificações ultra-moralistas e ultra-punitivistas vindas de todos os espectros políticos. É assustador…

Laerte

É sempre importante lembrar que quem defende privação, violação, agressão, exclusão, extermínio e ausência de direitos e sujeitos (e de sujeitos de direitos) são os totalitarismos, sejam eles de esquerda ou de direita.

A autora preferiu manter o texto anônimo. As imagens nos foram concedidas por ela. 

Fonte: Casa da mãe Joanna

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