“Debater não é tentar ter razão sobre alguém”. Por Hélène Chauveau

Foto: Via https://www.lexpress.fr/ROMAIN LAFABREGUE.

Por Hélène Chauveau, para Desacato. info.

Bonjour!

Eu sou Hélène Chauveau, sou pesquisadora, geógrafa, apaixonada por cultura e meio rural. Também sou francesa e fiz meu doutorado faz alguns anos na UFSC, em Florianópolis, com base em um trabalho de campo no Extremo Oeste, no Planalto Catarinense e no Centro Serra (RS). Por isso eu conheço um pouco dessa realidade e eu me preocupo muito com o Brasil, mesmo morando agora na França.

Hoje eu quero parabenizar Desacato e tentar mostrar porque, do meu ponto de vista, é tão importante a existência desse meio de comunicação. Um cara que a gente gosta no nosso país e se chama: Voltaire, falou uma vez: “Eu não concordo com o que você tem para falar, mas lutarei até o fim para você poder falar”. Além do fato que eu não concordo plenamente com essa frase e que sendo de Voltaire é contestável, para mim ela é reveladora de um estado de espírito importante. Debater não é tentar ter razão sobre alguém. Debater é tentar construir com outro ponto de vista, uma compreensão maior e mais complexa da realidade do que você tinha no início do debate.

Isso é algo que deveria ser mais presente nas mídias e na educação, e isso também é algo importante para quem trabalha com pesquisa e universidades. Também demostra que é bem diferente desejar a uma pessoa que possa se expressar e concordar com ela. Isso garante que quando será sua ou minha vez de encontrar alguém que não concorda com ela, eu ou você vamos poder se expressar. Porque estou falando disso e do Desacato? Pois eu vou defender aqui o trabalho feito pelo Portal, e isso independentemente do fato que eu concordo ou não com as posições dele.

As classes dominantes construíram uma sociedade onde os meios de expressão – que sejam as artes, as mídias, a própria fala e a língua acaba se tornando de maior dificuldade de acesso para os oprimidos especialmente. Isso é lógico, pois se pensarmos, dar a possibilidade de criticar o sistema às pessoas que não aproveitem dele é um perigo grande e a crítica, o contestamento não é bem aceito pelo sistema.

Mas os oprimidos sempre na história acharam um jeito de se expressar, usando maravilhosamente de artes, de marchas, manifestos, livros, discursos, mídias próprias etc, muitas vezes para falar que não concordam com as elites. Só que o povo é diverso e muitas vezes a força dos meios de expressões usados pelas elites é maior, convence melhor, e é acompanhada de uma multidão de outras obras que torna o povo favorável a dele. Mas para o debate ocorrer, para a sociedade poder avançar melhor, é necessário promover todos os meios de expressão, de todas as partes da população, se não, ele se revolta e se torna até violento, porque não foi ouvido quando usou os meios de expressão clássicos.

Por isso uma mídia como o Desacato é fundamental, porque ele é uma ferramenta de expressão para uma classe que tem toda legitimidade e razão de querer entrar em todos os debates. As elites políticas atuais, em todas as partes do mundo, inventarão que a “coisa política” não é para ser debatida com o povo, porque ele não pode entender todo o que esta em jogo nas decisões. Só que a política é coisa de todos os que moram na “polis”, ou seja, no mundo. Temos o dever, enquanto cidadãos de se preocupar com política e de procurar informações diversas e alternativas às mídias das elites.

Vou dar o exemplo da França, para mostrar que isso também não é só o problema do Brasil de Bolsonaro, mas da nossa sociedade do século XXI em geral. De novembro de 2018 até maio desse ano (mais ou menos, porque o movimento continua mesmo sendo mais quieto) teve na França o movimento popular dos “Gilets jaunes” (poderíamos traduzir por Casacos Amarelos, vem dos casacos de sinalização usados em acidentes de carros e que todo mundo tem no seu carro aqui e que virou o símbolo dessa luta). Milhões de pessoas desceram nas ruas em todas as cidades, mesmo pequenas, todos os sábados para reclamar mais justiça fiscal e justiça social. Tiveram incêndios, lojas e monumentos quebrados, muitos foram feridos pela repressão policial. Teve uma forte “convergência das lutas” entre diferentes segmentos das classes populares que não se falavam mais e que não lutavam juntas (zonas rurais e urbanas, movimentos feministas e operários, sindicatos e associações, pessoas que se identificam com a direita porque o medo da imigração foi instrumentalizado e pessoas vindo da imigração).

As mídias exageraram e focaram sobre as violências dos “Gilets jaunes” (que foram principalmente materiais) e falaram pouco das reivindicações do movimento (porque era difícil entender porque ele não é estruturado), e pouco das violências policias graves (mesmo não chegando ao nível de alguns outros países, claro). Nessa onda toda, tivemos a sorte de ter muitas mídias autônomas para relatar o que aconteceu. Claro tem tentativas de calar eles, é difícil o equilíbrio econômico deles para continuar existindo e a maioria das pessoas não se informa com eles. Mas felizmente eles existem e tem possibilidade de ler essa outra mídia, e isso permite o debate público. Eu desejo isso a todos os países, e por isso temos que ser capazes de apoiar a liberdade de expressão mesmo dos quais com quem vocês talvez não concordem.

Isso finalmente esta me levando a falar dos cortes nas pesquisas atualmente no Brasil. Provavelmente não precisa de mais uma carta sobre a necessidade de manter uma pesquisa livre e forte num país tão complexo como o Brasil. Mas eu queria mesmo assim apoiar o fato que é tão importante ter uma mídia como Desacato como uma pesquisa brasileira forte. Os norte-americanos e os europeus são os mestres até hoje no mundo da pesquisa, porque temos orçamento para isso, somos apoiados para pesquisar, até sobre outros países, como eu fiz. Eu adorei pesquisar sobre juventude rural no Brasil, com certeza eu trouxe um olhar diferente de que teria trazido um pesquisador brasileiro, e foi muito rico também para mim e minha universidade francesa onde eu levei de volta do Brasil muitos conceitos e realidade que a gente não tinha ideia lá. Mas isso também é um perigo. E muito necessário apoiar a pesquisa dos brasileiros sobre o Brasil e a pesquisa dos brasileiros sobre o mundo. É uma riqueza que o mundo não pode perder, nem o Brasil, nem nenhum brasileiro/a. Os/as brasileiros/as precisam pesquisar sobre sua própria realidade porque um olhar de fora nunca entenderá completamente uma realidade e nunca será legitimo para falar “de dentro”. Isso faz parte da emancipação dos povos, da reapropriação do debate público e dos meios de expressão.

Por isso eu me preocupo muito e eu parabenizo todos e todas que lutam para defender os que não têm outro jeito de se informar. Vocês são uma fonte de inspiração inesgotável em todos os movimentos sociais do mundo. Esse inverno, quando estávamos nas ruas com os Gilets jaunes, abaixo de gazes e dos socos da polícia lembrei muito dos militantes que eu tinha encontrado no Brasil. Eu pensei que para eles, para o que eles estão passando nesse governo, nos também não tínhamos direito de desistir, nos também tínhamos dever de continuar nossas lutas, mesmo sendo bem diferentes, num outro continente e outra realidade.

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Hélène Chauveau nasceu em 1989 numa zona rural do oeste da França e foi estudar geografia rural em Lyon. Em 2014 ela initiou um trabalho de pesquisa sobre cultura e juventudes rurais e camponesas no Brasil e na França. Ela defendeu seu doutorado na UFSC e na Université Lumière Lyon 2 em 2017. Desde entao ela continua pesquisando com estudos rurais e tambem trabalha em movimentos de educacao popular franceses.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

#Desacato12Anos

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