De Campo Maior ao Belo Monte: 120 anos depois, Canudos resiste

Prisão de jagunços pela cavalaria do Exército brasileiro (Foto: Flavio de Barros/Museu da República)

Ali próximo, na igreja matriz de Santo Antônio, de cujo padroeiro o menino ganhara o nome, poucos anos antes do seu nascimento pregava Gonçalo Ignácio de Loiola Albuquerque e Mello, o famoso padre Mororó, secretário do governo revolucionário na Confederação do Equador e redator do primeiro jornal da província. No mesmo entorno, na Casa da Câmara da então vila de Campo Maior, Mororó redigira, em 1824, a célebre Ata do Quixeramobim, na qual se proclamava a República, era declarado deposto o imperador Pedro I e decaída no Brasil a dinastia dos Bragança e Bourbon. Aquela idealista ousadia do padre Gonçalo seria punida com o fuzilamento, em abril do ano seguinte, no Campo da Pólvora, atual Passeio Público de Fortaleza.

O menino Antônio nasceu e cresceu numa província conflagrada, que viveria naquele século poucos momentos de paz, em permanente ebulição política ou mergulhada em sangrentas guerras familiares. As tragédias pessoais o acompanharam desde a infância. A mãe morreu quando o menino Antônio contava apenas seis anos, e registros dão conta dos maus tratos a que foi submetido pela madrasta. Na infância e na adolescência viu os Maciéis tombarem enfileirados nas lutas contra os Araújos, nas rixas familiares tão correntes. Após a morte do pai, às voltas com dívidas impagáveis, Antônio peregrinou pelo Ceará. Notícias, ainda que muitas vezes desencontradas, dão conta de que foi caixeiro em Sobral, escrivão em Campo Grande (atual Guaraciaba do Norte), rábula no Ipu, professor no Crato. Peregrino, construindo e reformando igrejas e cemitérios, seguia os passos e os ensinamentos do padre mestre Ibiapina.

Instalação no Memorial Antônio Conselheiro (Foto: Reprodução)

É necessário uma pausa para se conhecer um pouco a figura de Ibiapina, que tanto influenciaria o Conselheiro. José Antônio de Maria Pereira Ibiapina era filho de Francisco Miguel Pereira Ibiapina, um dos fuzilados na Confederação do Equador ao lado daquele mesmo padre Mororó de quem falamos anteriormente. Ibiapina, nascido em Sobral, formara-se em direito e fora juiz e deputado provincial. Somente já próximo aos cinquenta anos de idade é que ordenou-se, no Seminário de Olinda, e peregrinou pelos sertões, criando as suas famosas Casas de Caridade, até morrer no sertão da Paraíba, em 1883. Padre Ibiapina é considerado a matriz do catolicismo popular, uma espécie de precursor da Teologia da Libertação, com sua opção pelos pobres. As prédicas de Ibiapina influenciaram Conselheiro, o Padre Cícero e o beato José Lourenço, dentre outros.

Conselheiro deve ter tomado contato com as ideias do padre mestre quando morou em Sobral e região, ou quando foi para o Crato, onde Ibiapina havia fundado uma das suas principais Casas de Caridade e era então figura muito influente. Do Crato, Conselheiro vai mergulhar nos sertões e só reaparecer como líder religioso a caminho do Vaza Barris. Foram mais de duas décadas de peregrinação por Ceará, Pernambuco, Bahia, até fixar-se no lugar ao qual deu o nome de arraial do Belo Monte.

Em Canudos, Conselheiro organizou a mais bem sucedida experiência de vida comunitária de que se tivera notícia até aquela data. Quando da sua destruição, Canudos contava com uma população de mais de vinte mil almas.

Para o arraial, atraídos pela prédica libertária de Antônio, acorreu uma legião de miseráveis, trabalhadores pobres, escravos recém-libertos sem terra e sem trabalho, caboclos, índios, jagunços sertanejos, homens e mulheres sem eira e nem beira, para quem Canudos se afigurava como a terra da promissão. A reação não tardou. Latifundiários, incomodados com a perda da mão de obra em suas extensões de terra, já que os deserdados preferiam a liberdade do arraial e a sua perspectiva de paraíso terreno à miséria semiescrava do latifúndio, deram logo o alerta. A igreja, rica, opulenta, romana, fustigada pela prédica daquele catolicismo popular, catolicismo caboclo, fez coro aos que pediam a destruição daquela experiência subversiva e tão perigosa. Canudos, com sua vida comunitária sem patrões e sem senhores, naquelas circunstâncias e naquele tempo, já nascera condenado à destruição total.

A República, jovem ainda, que só se fazia presente naqueles ermos através da cobrança de impostos e da repressão, viu-se ameaçada. Era identificada por aqueles homens e mulheres como o anticristo, que separara a igreja do Estado, que derrubara o imperador. A República virara uma inimiga. Por sua vez, a República também viu ali um inimigo perigoso. Em 1896, em seu afã de se afirmar, decretou a destruição total de Canudos. A tarefa não seria, contudo, tão fácil quanto se imaginara a princípio. Os cabos de guerra do Conselheiro, sertanejos experimentados, conhecedores da caatinga, impuseram derrota após derrota às tropas do exército que atacaram o arraial. A guerra durou um ano e foram necessárias quatro campanhas para destruir o povoado.

Oficiais experimentados como Febrônio de Brito foram derrotados pelos sertanejos do Conselheiro. Na terceira campanha, o coronel Moreira César, de má fama, conhecido como “Corta-cabeças”, deixou a vida na caatinga, alvejado de longe por um caboclo de mira certeira, a compensar a pouca precisão das velhas armas. A força policial virou motivo de chacota. “Avança, avança, fraqueza do governo”, galhofavam os canudenses. Por sua vez, cresciam em prestígio os homens do arraial, temidos pelos soldados que os enfrentavam. Homens sem formação militar, que foram forçados a se transformar em estrategistas e que se avultaram em astúcia e valentia.

A memória do povo perpetuou o nome de muitos desses combatentes. Pajeú e Macambira despontaram como principais, seguidos por José Venâncio, Lalau, Chiquinho e João da Mota, Pedrão, Estêvão, Joaquim Tranca-pés, Major Sariema, Raimundo Boca-torta, Chico Ema, Norberto, Quinquim, Antônio Fogueteiro, José Gamo, Fabrício, tantos, tantos. A memória guardou o nome do Vila Nova, que lutaria depois na sedição de 14 no Juazeiro do Norte. Guardou a astúcia das tocaias do velho Macambira. Grande entre os grandes, agigantou-se João Abade, comandante da praça, chefe do povo. A memória do povo guardou o nome desses sertanejos valentes que derrotaram a “fraqueza do governo” por três vezes, antes de serem, finalmente, derrotados, que a guerra era desigual, entre forças desproporcionais.

A guerra não se travou apenas na caatinga baiana. Os grandes jornais de São Paulo e do Rio cobravam a destruição do “antro de fanáticos”. O Estado de São Paulo contratou Euclides da Cunha como correspondente de guerra. Euclides escrevera dois artigos intitulados “A nossa Vendeia”, nos quais estava presente a sua posição inicial, a sua opinião, como era corrente nas grandes cidades do sudeste, de que o arraial era um valhacouto de fanáticos e bandidos que queriam combater a República e que precisava ser destruído. Mas Euclides mudou. O Brasil profundo, desconhecido pelos grandes centros, como ainda hoje acontece, o Brasil profundo mudou Euclides. O homem que deixou Canudos poucos dias antes da sua destruição total era outro, diferente do que lá chegara.

Em Canudos, Euclides travou conhecimento com um Brasil desconhecido, um Brasil pobre, caboclo, mestiço, sertanejo.

Da pena de Euclides saiu um libelo em defesa daquele movimento. Euclides descreveu ali a terra, o homem e a luta. Chegou aos sertões com a cabeça de São Paulo, ignorando e desconhecendo o imenso território brasileiro e sua gente mestiça. Saiu dali convencido de que havia outro Brasil, um grande Brasil, um Brasil do povo. Os Sertões, sua obra-prima, provavelmente mostraram, pela primeira vez, esse outro país.

A descrição da destruição do arraial do Belo Monte, na parte final do livro, é um dos trechos de maior força e emoção da nossa literatura e da nossa historiografia, que se misturam na obra de Euclides. Um parágrafo em especial é uma denúncia vigorosa que ecoa até hoje: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. O livro de Euclides da Cunha foi muito mais do que uma defesa de Canudos, antes um libelo acusatório contra a sanha dita “civilizadora” que massacrava o povo. Em uma nota à 2ª Edição de Os Sertões, Euclides afirmou que “este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque”.

Em 5 de outubro de 1897 Canudos foi, enfim, destruído, ao custo de aproximadamente trinta mil vidas. Encerrou-se ali uma das mais belas, trágicas e heroicas páginas da história do povo brasileiro.

120 anos depois, Canudos ainda resiste.

120 anos depois, o povo brasileiro não se rendeu.

Fonte: Portal Vermelho.

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