Da imanência à transcendência – a mulher na contemporaneidade

Por Vivian da Silva Celestino.

Acostumada a ser o outro na relação com o homem, a mulher sempre ocupou um lugar secundário no mundo, ora sendo classificada como fraca, passiva, ignorante, submissa, devido a sua condição biológica, ora sendo mitificada como deusa, perfeita, salvadora, o objeto sexual do homem.

Simone de Beauvoir escreveu o Segundo Sexo em uma época em que as mulheres não tinham tempo nem espaço para usufruir de sua individualidade. O livro foi publicado em 1949, mas somente em 1944 é que foi dado direito ao voto feminino na França da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.

A autora afirma que a mulher foi considerada propriedade do homem no advento da burguesia, juntamente com a instituição da propriedade privada. Do mesmo modo que a terra, ela foi destinada a ser usufruída pelos homens, explorada. E assim, passivamente, aceitou sua condição de vassala. Na idade do bronze os homens transcenderam sua existência quando, através de sua inteligência e força na produção de instrumentos, trocaram sua condição humana de coletores para agricultores. A mulher, embora sempre estivesse presente no auxílio do trabalho agrícola, acabou excluída do convívio social e fadada à imanência, principalmente pelo fato de ser biologicamente exigida na gestação e no cuidado com os filhos. Os homens, por sua vez, se organizaram em grupos, ganharam guerras, fizeram revoluções… e se concretizaram como um ser absoluto. A mulher, no entanto, só existe em relação ao homem.

Na revolução industrial as mulheres entraram para o mercado de trabalho. Prontas a se libertarem de seus opressores masculinos, foram absorvidas como um objeto no mundo moderno. Consideradas como mais aptas, eficientes e dispostas a trabalharem, mesmo ganhando menores salários, chegaram a superar o número de homens nas fábricas. Mas o que era para ter sido um fato positivo, “ganhar a liberdade” na verdade se transformou em uma falácia: trabalhando até 16 horas por dia, muitas vezes utilizando mãos e pés ao mesmo tempo, sem contar as tarefas domésticas acumuladas no final do dia, muitas delas pereceram, adoeceram, morreram jovens. Nesse período não somente as mulheres foram alienadas de sua individualidade, como seus parceiros homens também se anularam em favorecimento de um opressor maior: o capitalismo. Homens e mulheres se viram, então, na mesma situação, a de operários oprimidos, anulados, escravizados.

A mulher, que é a mais individualizada das fêmeas, aparece também como a mais frágil, a que vive mais dramaticamente seu destino e que se distingue mais profundamente do macho. Todas as mamíferas possuem ciclo de uma estação, sem corrimento sanguinolento. É somente nas primatas e nas mulheres que ocorre mensalmente o ciclo menstrual de dores e sangue. Desde a puberdade até a menopausa, a mulher é o núcleo de uma história que nela se desenrola e que não lhe diz respeito pessoalmente, pois é mensalmente solicitada pelos apelos biológicos da preservação da espécie, prepara inconscientemente seu corpo para esperar a concepção de um filho (querendo ou não tê-lo) e sofre devido às mudanças e alterações hormonais inerentes ao ciclo.

Quando a gravidez se confirma, a mulher também é demandada pela maternidade, com os cuidados que deve ter durante a gravidez, o sofrimento com a dor do parto, a dedicação ao bebê, a amamentação, a educação dos filhos, entre outros. Embora não se obtenha nenhum ganho, em termos biológicos, durante a gravidez e a maternidade (ao contrário, não é sem resistência que o corpo da mulher deixa a espécie instalar-se nela e esse combate enfraquece-a e faz com que corra perigo), psicologicamente não se discutem os benefícios dessas fases para a mulher. É comprovado que a maioria das mulheres deseja e se sente plena durante a gravidez e a maternidade.

Atualmente existem diversos métodos contraceptivos, o que libertou a mulher de gestações consecutivas e permitiram que tivesse uma vida quase normal. Mesmo liberta da maternidade e participando da vida acadêmica e profissional de igual para igual com os homens, seja nas universidades, nos órgãos públicos ou nas iniciativas privadas, ainda não é assegurado às mulheres os mesmos direitos que aos homens. Ainda existe um costume masculino e até mesmo feminino de achar que somente os homens podem assumir cargos de liderança. Ainda é insuportável para algumas mulheres serem gerenciadas por outras.

No contexto histórico-cultural a mulher sempre foi considerada como um ser inferior, perigosa, falsa, destinada somente à procriação, desviada para as ocupações dos assuntos de família, tendo espaço somente para tratar de futilidades. No Velho Testamento foi responsabilizada pelo mal do mundo (por Eva ter dado a maçã a Adão e consumado o pecado). No Novo Testamento foi elevada à categoria de “Mãe de Deus” e à figura da virgem fazia da mulher um ser que poderia ser perfeito, imaculado, desde que sua religiosidade e seu papel na família (principalmente o de mãe) fosse mantido. Muitas “bruxas” morreram por fugirem ao padrão cristão de comportamento.

Foi durante muito tempo (desde que o conceito de “ser humano” existe) privada de educação e de atividades esportivas e culturais. Viveu até quase o século XX sempre sob a tutela do pai ou do marido e foi proibida de possuir bens em seu nome e de escolher seu próprio marido quando desejava o casamento.

No Brasil, legalmente as mulheres possuem hoje os mesmos direitos que os homens. Porém, fatualmente, a situação é diferente. Ainda alienadas da vida política e dos cargos de direção no ambiente profissional, as mulheres incorporaram os deveres dos homens, mas, em contrapartida, não se apossaram de todos os seus direitos enquanto ser humano. Apesar de a presidenta atual ser a primeira mulher no cargo mais importante do país, o Brasil ainda é pouco representado por mulheres na política. Um exemplo disso é o resultado das últimas eleições, que elegeu menos de 10% de mulheres na Câmara Federal e no Senado e somente uma governadora.

Uma das causas dessa baixa representatividade é a falta de mulheres entre os candidatos, mesmo com o estabelecimento de cotas femininas (Lei das Eleições, 1997) que previu a reserva de 30% para elas. Se verificarmos a história brasileira, há menos de um século as mulheres não podiam votar. Somente em 1932 o Congresso Brasileiro aprovou um decreto-lei na gestão do então presidente Getúlio Vargas permitindo o voto feminino.

Com isto é comprovado que o problema não é somente do número de mulheres candidatas, mas sim do número insuficiente de mulheres votantes nestas candidatas. A conta é simples: as mulheres não representam uma minoria, já que correspondem praticamente ao mesmo número de homens na população mundial e brasileira. Mas se somos 50% e temos direito a 30% das cotas para candidatas, por que somente em torno de 10% de mulheres são efetivamente eleitas?

É absurdo pensar que ainda precisamos de cotas para ingressar no mundo político. Fadadas a serem seres humanos, assim como os homens, as mulheres são tão corruptíveis e passíveis de erros quanto eles. As mulheres, com suas conquistas, já se superaram no ambiente profissional, familiar, educacional, pois conseguem desempenhar várias atividades ao mesmo tempo. Porém, a “transcendência” a que se referia Beauvoir não se restringia somente as suas aptidões ou capacidades práticas cotidianas. Beauvoir se referia ao costume (ou mau costume) da mulher de deixar sempre na mão do outro o seu poder de escolha e decisão. Por falta de coragem, e até mesmo por medo de se exporem e de dizerem o que desejam, muitas mulheres abdicam até de seus direitos, se alienam e se escondem atrás de um mito, sua condição de frágil, fraca, coitada. A maioria não se enxerga enquanto classe, não se une com outras em torno de uma causa em comum. Voltam-se novamente para sua imanência. Anulam-se.

Todos os seres humanos são fadados tanto à imanência quanto à transcendência. A diferença entre homens e mulheres se situa não somente no fato biológico, encarado como um prejuízo, mas principalmente no fato histórico-cultural, quando os homens se valem do fato biológico para aumentar esse prejuízo. As mulheres necessitam subsidiar a elas mesmas se quiserem mudar este quadro doloroso, milenar, de opressão e submissão para poderem realizar sua transcendência e começar a tomar as rédeas de seu futuro.

Não adianta apoiarmos campanhas para que “eles sejam por elas” se nem mesmo elas são por elas mesmas. É por uma condição humana igualitária, de divisão de direitos e deveres, femininos e masculinos, que todas deveriam lutar. Por enquanto, estando na inércia, a mulher ainda aguarda que venha do outro a tão sonhada equidade.

Imagem tomada de: www.revistabula.com

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