Curso ajuda a combater incêndios em ocupações

Iniciativa já impediu tragédias na cidade de São Paulo.

Foto: Cauê Gomes

Por Giovanna Costanti.

“Era em torno de 20h30 quando bateram na minha porta, no primeiro andar. O meu filho foi atender a porta e me chamou. ‘Pai, é fogo’.”

Foi assim que João Batista do Nascimento, líder da Ocupação Prestes Maia – a maior da América Latina –  foi avisado pelo filho Jean, de 11 anos, sobre o incêndio que se alastrava em uma das torres da edificação, no sexto andar do bloco A, durante a noite da quinta-feira 23 de novembro. A ocupação tem hoje 500 moradores.

“Ligamos logo a sirene. Os moradores já são cientes que quando ela toca, pode sair correndo que é fogo”, conta.

João foi o primeiro a ser chamado pelos moradores quando o princípio de incêndiocomeçou. Também foi o primeiro a pegar um extintor e começar a combater o fogo. Isso porque, além de líder da ocupação e membro do Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), ele também é líder de uma brigada de incêndio formada pelos próprios moradores.

“Saiu todo mundo correndo e o pessoal da brigada pegou os extintores e foi para o sexto andar. Subimos com todos os equipamentos. Graças a Deus a gente conseguiu controlar o fogo até os bombeiros chegarem”, explica João.

Quando os bombeiros entraram na torre, o prédio já havia sido evacuado e a brigada já havia feito todo o procedimento de controle do fogo, para que as chamas não se espalhassem para os outros andares ou para o bloco B, uma torre maior, de 21 andares, virada para a Avenida Prestes Maia. Só a brigada permanecia na ocupação. Enquanto isso, na rua, todos os outros moradores aguardavam, com suas vidas à salvo. Às 23h, o fogo já havia sido todo apagado.

Podia ter sido pior. Em maio deste ano a ocupação no prédio de prédio de 24 andares no Largo do Paissandu abrigava 170 famílias quando pegou fogo. O incêndio matou sete moradores e deixou mais de 150 desabrigados.

A tragédia só não se repetiu porque, meses antes, uma professora de arquitetura da Belas Artes que acompanha os movimentos sociais por moradia desde 2002, Débora Sanchez, convidou a bombeira civil e estudante de arquitetura Ana Flores para um projeto. A intenção era treinar moradores de ocupações contra incêndios.

O convite foi aceito e, juntas, elas organizaram um curso de treinamento para prevenção de incêndio. Hoje, além do curso, elas estão em processo de escrita de uma cartilha de prevenção contra incêndios, que deve ser distribuída em ocupações.

São Paulo tem atualmente 206 ocupações que abrigam 45.872 famílias, de acordo com dados do Grupo de Mediação de Conflito, da Secretaria Municipal da Habitação. Muitas dessas ocupações estão sem manutenção e em péssimas condições estruturais.

“A intenção do projeto é levar informação para que elas encarem a segurança contra incêndio como uma cultura. O foco é salvar vidas. E, se acontecer um incêndio, que as pessoas sobrevivam”, explica Ana.

“A gente nunca espera que vai precisar, mas na hora que precisou, funcionou. Deu certo graças ao treinamento que a gente tinha, dos 60 extintores, só sobraram seis, mas está todo mundo em paz e com vida”, conta João. “Infelizmente a gente perdeu dois animais dos moradores do sexto andar, um cachorro e um gato. Na hora a gente não conseguiu tirar e a fumaça matou.”

Treinamento dos brigadistas 

“Fizemos tudo o que você nos ensinou no treinamento.” Foi essa a primeira coisa que a bombeira Ana Flores ouviu quando chegou na ocupação naquela noite, quando os bombeiros faziam o controle final das chamas.

“Os moradores combateram o princípio de incêndio com os extintores, desligaram a chave geral da energia elétrica e ligaram para o corpo de bombeiros. Todos desceram com calma as escadas para que não ocorresse nenhum problema. Ocorreu perfeitamente como previsto no treinamento”, conta Ana.

Até este ano, ela nunca havia entrado em uma ocupação. No dia 19 maio, um sábado, Ana e Débora foram juntas ministrar o curso, com duração de 6h, para os moradores dasocupações Prestes Maia e Mauá, na Luz, região central de São Paulo. As voluntárias esperavam 50 alunos para o encontro, mas o interesse foi maior. O treinamento foi ministrado para mais de 150 moradores.

“O pessoal estava muito preocupado por conta do desabamento da Paissandú, pela gravidade do que aconteceu”, explica Ana. “Elas estavam solicitando muita informação, querendo realmente aprender.”

O treinamento é dividido em parte teórica e prática. Na primeira, Ana explica porque existe uma legislação de segurança contra incêndio, o que que é o fogo, suas causas, onde ocorre o incêndio e como se alastra, além de quais os equipamentos necessários na edificação – extintores portáteis, a sinalização de emergência e iluminação, hidrantes.

Depois disso, são mais três horas de parte prática. Quando se fala do treinamento da brigada, do plano de abandono e da utilização dos equipamentos, como extintores e hidrantes.

Na Prestes Maia, foi o líder João quem equipou o prédio. “A gente já tinha extintores, hidrante, sirene. Só não tinha o treinamento. Foi assim que surgiu essa brigada de incêndio. A Ana Flores conheceu a gente no momento certo. Com a brigada, conseguimos salvar várias vidas”, explica João.

Importância da prevenção

A professora Débora conta que o recebimento das instruções nas ocupações é diferente quando comparado com cursos obrigatórios de prevenção. Isso porque a maioria dos moradores de ocupações já teve pelo menos uma experiência com incêndio.

“Tive contato com pessoas que me agradeceram pelo treinamento por que perderam seus filhos em incêndio”, relembra Ana. “O que mais me chamou a atenção foi a vontade das pessoas de aprenderem. Elas sabem a tragédia que ele causa”.

Segundo ela, o treinamento contra incêndios é previsto por um decreto estadual do Estado de São Paulo, de 2011. Mas só é dado quando já existe um projeto aprovado no Corpo de Bombeiros. Não é o caso das ocupações. “Infelizmente, as ocupações são o lado informal da cidade”, completa Débora.

“Para um projeto ser aprovado no Corpo de Bombeiros, precisa da assinatura do proprietário da edificação. Por conta disso, a ocupação não consegue ter essa aprovação”, explica Ana.

Segundo Débora, apesar de pouco se falar sobre, os movimento sociais de moradia são muito mais eficientes do que uma gestão condominial comum. Lá o papel dos líderes, como João, é essencial.

“No Largo do Paissandu, não existia um movimento social de moradia organizado, não havia essas preocupações. Nas ocupações organizadas existe manutenção, preocupação em reformar, adequar o edifício. Limpeza, instalações elétricas, hidráulicas, a questão de incêndio. Ao longo desses anos que eu acompanho os movimentos sociais de moradia, eu tenho visto uma preocupação com essa questão”, finaliza Débora.

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