Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional: uma ação sustentável na Fronteira

Por Elissandro dos Santos Santana e Luísa Moura.*

Na última entrevista que o pensador brasileiro, teólogo, ambientalista, ecologista e grande cientista Leonardo Boff concedeu à Revista Latinoamérica discorreu sobre a intersecção Ecologia e Direitos Humanos, acesso à água como justiça social, como a água interfere na sustentabilidade das atividades econômicas e no futuro das gerações, compartilhamento do Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional no Paraguai e em outros países da Bacia do Prata e da América Latina, metodologia de implantação do programa e aceitação pelas comunidades e papel do programa para o cuidado com a água para a emancipação da América Latina no tangente à dependência histórica do continente.

A profundidade de cada resposta apresentada por Boff é um convite para que pensemos a questão da água na América Latina e como as empresas podem desenvolver programas para além da visão do lucro, atingindo a sustentabilidade nas ações.

Ao ser questionado sobre a intersecção Ecologia e Direitos Humanos, de forma sucinta, objetiva e esclarecedora, pontuou que a ecologia é mais que uma técnica de gerenciamento de bens e serviços naturais escassos, é um novo modo de relacionamento com a natureza e com a Mãe Terra, mediante o qual o ser humano não se sente dono, mas parte deste todo. A ecologia, em seu sentido amplo, como vem expressa muito bem pela encíclica do Papa Francisco “Sobre o cuidado da Casa Comum” inclui o ambiental, o social, o mental, o cultural, o cotidiano e o espiritual. Portanto, todo o ser humano está envolvido no ecológico em todas as suas dimensões. Hoje é convencimento dos biólogos e cosmólogos, como enfatizam a Carta da Terra e a encíclica papal, que todos os seres possuem um valor intrínseco, em si mesmo, anterior ao uso que os seres humanos possam fazer deles. Tudo o que existe e vive merece existir e viver e deve ser respeitado em seu direito de estar dentro do processo da evolução junto conosco. O ser humano possui uma singularidade: por ser consciente, foi feito o cuidador do mundo que herdamos. É o responsável para que todos os seres tenham garantido a sua sustentabilidade e que possam continuar a evoluir. O ser humano não está acima da natureza como quem domina – essa era a ilusão dos pais fundadores do paradigma técnico-científico moderno – mas está dentro como parte consciente e responsável com a missão de cuidar e guardar essa herança sagrada herdada do universo ou de Deus.

Para discorrer acerca da água na vertente da justiça social, esclareceu que a água é um bem comum, natural, vital, insubstituível para qualquer tipo de vida, especialmente da humana, ela representa um direito essencial, reconhecido pela ONU. Em razão disso, devem-se elaborar estratégias para se reapropriar do que é comum e que foi ilegitimamente privatizado para benefício de alguns. Em primeiro lugar, usando todos os recursos legais disponíveis. Em seguida mobilizar as populações afetadas. E por fim, se reapropriar do que é comum e que, por sua natureza, nunca poderia ser privatizado. Portanto, constitui objetivamente um crime contra o bem comum. Esse ato de reapropriação não pode ser considerado ilegal e criminoso, mas como um ato exigido pela sobrevivência da vida humana e natural. Cochabamba, anos atrás, deixou-nos um exemplo singular. A população se rebelou contra a empresa estrangeira que privatizou a água e colocou preços exorbitantes. E o fez com tal força que ela teve que recuar e, por fim, abandonar o projeto.

No que tange à forma como a água interfere na sustentabilidade das atividades econômicas e no futuro das gerações, Boff mencionou que o cuidado não é apenas uma virtude ou um ato de prevenção e proteção. É mais que isso. Trata-se de um verdadeiro paradigma que define uma relação positiva e amorosa, não agressiva e depredadora dos bens e serviços naturais. O cuidado é tão importante que foi visto filosoficamente como pertencendo à essência humana e à vida. O que não é cuidado definha, adoece e morre. Se não cuidarmos do planeta, de sua biocapacidade, dos limites de seu aquecimento, poderemos ir ao encontro de uma catástrofe de caráter apocalíptico. Sem água ninguém vive. Como ninguém vive sem cuidado permanente. Essa é uma lei inscrita no próprio processo da evolução como os cosmólogos o tem reconhecido. Se as energias originárias não se tivessem articulado com sutilíssimo cuidado, não teriam surgido as estrelas e nem a Terra. E nós não estaríamos aqui para falar destas coisas.

No que concerne ao compartilhamento do Programa Cultivando Água Boa no Paraguai e em outros países da Bacia do Prata e da América Latina, Boff esclareceu que não conhecia suficientemente os referidos países para emitir uma opinião responsável. Continuou a discussão mostrando que sabia que se trata de um projeto binacional, envolvendo o Brasil e o Paraguai. Ele está sendo difundido entre outras hidrelétricas brasileiras, como a CEMIG de Minas Gerais, no Nordeste, em Goiás e em outros estados. Tenho acompanhado pessoalmente a criação das condições de sua implantação na América Central, em países como Guatemala e República Dominicana. Outros países como o México e a Argentina estão mostrando também interesse. Isso se deve ao fato de que se trata de um projeto exitoso, reconhecido internacionalmente e pela própria ONU. A Binacional Itaipu vem comprovar que mesmo uma grande empresa, das maiores do mundo, pode perseguir políticas ecológicas que preservam e resgatam a vitalidade da natureza.

Sobre a metodologia de implantação do programa Cultivando Água Boa e aceitação pelas comunidades, o decisivo neste projeto Cultivando Agua Boa é seu método. A estratégia básica é envolver todos os atores da região e as comunidades ribeirinhas ou próximas das bacias hídricas. Tudo começa com uma sensibilização das comunidades e das pessoas. Sem esse primeiro passo, elas jamais entenderão a relevância da cuidar da água e gestar novas relações ecológicas e sociais. É a criação de uma nova consciência. Em seguida vêm os cursos de conhecimento e aprendizado do que significa a água e toda a infraestrutura que ela supõe como a preservação da mata ciliar, a manutenção de cada simples manancial, a pureza da água contra a poluição de dejetos da produção (suínos e gado) e, especialmente, mantê-la livre da contaminação dos agrotóxicos. Outro passo importante é criar as comunidades que se organizam ao redor de um interesse comum de cuidado da água, da introdução da agricultura orgânica, da produção de energia elétrica a partir dos resíduos da produção agrícola e animal, o resgate da cultura popular que se formou ao redor do tema da água, até da culinária e da produção de artesanatos. Trata-se de um projeto complexo e inclusivo, até de populações antes marginalizadas como os indígenas e os quilombolas, que transforma as relações sociais e, principalmente, a consciência no sentido de tratar de outra maneira os bens naturais e o zelo por sua sustentabilidade.

Por último, ao ser questionado sobre o papel do programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional para o cuidado com a água para a emancipação da América Latina no tangente à dependência histórica do continente, Boff mencionou que a tendência das potências hegemônicas do processo de globalização é recolonizar novamente a América Latina. A perspectiva imperial da potência mais poderosa que é a América do Norte se rege por dois modos: um só mundo e um só império; e cobrir todos os espaços (full-spectrum dominance) para que a dominação não encontre anti-poderes. Em razão desta estratégia, mantém 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares. Tais bases estão presentes em vários países da América Latina. Neste momento, estão em negociação com a Argentina duas bases militares, uma no extremo sul, em Ushuaia, e outra na fronteira trinacional Brasil-Argentina-Paraguai onde se situa o maior aquífero do mundo, o Guarani. Como a água é fundamental para tudo e o futuro da economia se encaminha na direção da ecologia, esta visão imperial procura controlar as principais fontes de energia do planeta. O continente latino-americano, ecologicamente, é o mais rico de todos, especialmente, em água potável, florestas úmidas e biodiversidade. Ao querer nos reduzir a colônias, como outrora, significa desmontar nosso processo de industrialização para ficarmos dependentes das tecnologias controladas pelos países ricos, sermos condenados a exportar principalmente commodities (grãos, minérios, água e alimentos em geral). Essa estratégia é de dominação e nos impede de elaborar um projeto nacional próprio e garantir a própria soberania. A estratégia consiste em debilitar as soberanias nacionais para que todos os países se alinhem à única estratégia global, comandada pelas potências militaristas, cujo poder último reside na capacidade de matar a todos e de eliminar toda a espécie humana. Desta forma, haverá uma homogeneização dos espaços econômicos e políticos que facilitará a dominação a partir de um único centro de poder. Tal estratégia, porém, não conta com a resistência dos povos e a crise ecológica da Terra que poderá colocar tudo a perder. Obrigará a humanidade, se quiser sobreviver, a um acordo de uma governança global para equacionar os problemas globais e manter a sustentabilidade da vida e da Casa Comum.

Para terminar, fica o convite para que leiam a entrevista concedida por Leonardo Boff à Latinoamérica no site  www.revistalatinoamerica,com.br  e que foi republicada no Portal Desacato e em outras mídias. A referida entrevista foi encabeçada pelo artigo “Leonardo Boff, as questões ambientais e o programa “Cultivando Água Boa” da Itaipu Binacional” e desponta como espaço para se pensar além dos pontos abordados na entrevista outras questões como sustentabilidade empresarial, a viabilidade de gerar emprego e renda sem comprometer o meio ambiente, que as empresas podem dialogar com a comunidade na qual se inserem para a discussão dos problemas da região. Enfim, o Projeto Cultivando Água Boa é uma ação binacional, já que pertence ao Brasil e ao Paraguai, que pode servir de modelo para outros espaços geopolíticos no interior do Continente Latino-americano, bem como para outras partes do Planeta. Com o referido projeto, a Itaipu Binacional mostra que outra relação com as comunidades do Brasil e do Paraguai, na fronteira trinacional, é possível, viável e sustentável.

 Referência

http://www.revistalatinoamerica.com/edicao-especial-2

Elissandro dos Santos Santana é colunista socioambiental, latinista e tradutor do Portal Desacato e Revisor da Revista Latinoamérica.

Luísa Moura é Doutora em Sociologia e Editora-chefe da Revista Latinoamérica.

 Foto: Itaipu Binacional

 

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