Cruz e Sousa pode ser considerado um exemplar conspícuo de uma poesia ainda rebuscada

Por Gustavo Bastos.

Cruz e Sousa teve um julgamento contemporâneo não muito à sua altura, sobretudo na Academia, mas angariou dimensão crítica positiva na geração seguinte, sinais de sua glória já aparecem neste período posterior, como nos diz, por exemplo, da poesia de Cruz e Sousa, em comparação com outras, Mário Pederneiras : “Tenho um devotado culto pelos sonetos magistrais de Luís Delfino, o das Naus e da Madalena aos pés da Cruz, e tanto admiro o verso quente e meridional de Olavo Bilac como a impressão catedralesca de Emílio de Meneses. E por que não dizer também que me delicio com a arte estranha de Cruz e Sousa, do Satã, do Acrobata da Dor e do Meu filho, e que nutro uma delicada afeição pela meiga simplicidade encantadora de Cesário Verde e Macedo Papança?”. Seguindo, Cruz e Sousa também pode ser bem situado entre os nomes de Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa, Olavo Bilac, Teófilo Dias, B. Lopes, Guimarães Passos, Artur Azevedo, Adolfo Caminha e outros.
Lembrando de um tipo de poesia que tem pendor no inefável, no absoluto, e que tematiza o vago, o indefinido, podemos situar Cruz e Sousa como um grande poeta, mesmo com limites em seu estro, como por exemplo no dom de clareza clássica, que lhe faltava, tem de outro lado um esbanjamento aflito, cheio de dor, espiritual, transcendente, de sentido trágico, na poesia e na sua biografia, configurando a inspiração e atividade poética de um escritor singular.
A obra literária de Cruz e Sousa não tem nem a definição de um trabalho incompleto, falhado, nem tampouco chega ao outro extremo de ser a maior poesia lírica produzida na literatura brasileira. Por sua vez, podemos dizer que o satanismo de Baudelaire aparece em sua poesia combinado a uma melancolia repleta de ceticismo, e que se mesclava também com o misticismo mórbido de Antero do Quental, a poesia de Cruz e Sousa era de uma alma sofredora de imprecações alucinadas, com um grito contra a opressão, com toda a sua expressão falhada e insuficiente produzindo um clímax lírico do qual foi um precursor.
Cruz e Sousa, diante da História subsequente da literatura brasileira, pode ser considerado um exemplar conspícuo de uma poesia ainda empolada, rebuscada, obscura, e da qual sobra uma fortuna crítica que sobra pouco na posteridade, no que podemos ter desde já dez ou quinze composições poéticas que podem garantir a sua imortalidade, como um poeta lírico por excelência, no que o nosso poeta negro se defendia contra os golpes que lhe desferiam com os Broquéis, e que projetava logo a seguir um clarão em meio ao caos que lhe tomava com seus Faróis. E o poeta, como um típico simbolista, maior representante desta corrente de poesia no Brasil, tinha o dom da sonoridade, pois a musicalidade dominava seu estro, se descolando com mestria do parnaso que lhe precedera, com uma poesia de formas novas e de busca da essência transcendente numa visão amiúde evanescente, configurando uma experiência simbólica sui generis, a do poeta que foi Cruz e Sousa, pois ele foi este poeta que renunciou ao parnasianismo para se lançar na musicalidade mais leve do verso simbolista.
POEMAS:
TUBERCULOSA: O poema, fina flor, nos abre o mundo da tísica em forma musical, sonora, planando cerúlea diante do fenômeno da doença: “Alta, a frescura da magnólia fresca,/Da cor nupcial da flor da laranjeira,/Doces tons d`ouro de mulher tudesca/Na veludosa a flava cabeleira./Raro perfil de mármores exatos,/Os olhos de astros vivos que flamejam,/Davam-lhe o aspecto excêntrico dos cactos” (…) “Radiava nela a incomparável messe/Da saúde brotando vigorosa,” (…) “Era assim luminosa e delicada,/Tão nobre sempre de beleza e graça/Que recordava pompas de alvorada,/Sonoridades de cristais de taça./Mas, pouco a pouco, a ideal delicadeza/Daquele corpo virginal e fino,/Sacrário da mais límpida beleza,/Perdeu a graça e o brilho diamantino./Tísica e branca, esbelta, frígida e alta/E fraca e magra e transparente e esguia,/Tem agora a feição de ave pernalta,/De um pássaro alto de aparência fria.”. Temos a abertura do poema com o estro descritivo de uma presença fêmea de angelitude, mas que logo também se nos apresenta com a face murmurante da tísica e toda esta interação doentia que a poesia tem com tal carma de poetas: “E faz lembrar uma esquisita planta/De profundos pomares fabulosos/Ou a angélica imagem de uma Santa/Dentre a auréola de nimbos religiosos./A enfermidade vai-lhe, palmo a palmo,/Ganhando corpo, como num terreno …/E com prelúdios místicos de salmo/Cai-lhe a vida em crepúsculo sereno./Jamais há de ela ter a cor saudável/Para que a carne do seu corpo goze,/Que o que tinha esse corpo de inefável/Cristalizou-se na tuberculose.”. A tuberculose, neste contexto de poesia simbolista, é uma espécie de doença mística da poesia, a tísica é um modo ideal de enfermidade.
FLOR DO MAR: O poema marítimo navega leve no estro simbolista de Cruz e Sousa, que nos brinda com tais versos que seguem aqui: “És da origem do mar, vens do secreto,/Do estranho mar espumaroso e frio/Que põe rede de sonhos ao navio” (…) “Possuis do mar o deslumbrante afeto/As dormências nervosas e o sombrio/E torvo aspecto aterrador, bravio” (…) “Num fundo ideal de púrpuras e rosas/Surges das águas mucilaginosas” (…) “Trazes na carne o eflorescer das vinhas,/Auroras, virgens músicas marinhas,/Acres aromas de algas e sargaços …”. A riqueza imagética do poema se mescla com uma sonoridade que nos dá poesia como música, o poema é de um estro que joga com o som e as ondulações da expressão com pleno domínio formal do poeta Cruz e Sousa.
MÚSICA MISTERIOSA: O poema aqui como música misteriosa é o flerte comum da poesia simbolista com a transcendência e o mundo das essências etéreas, no que temos: “Tenda de Estrelas níveas, refulgentes,/Que abris a doce luz de alampadários,” (…) “Pelos raios fluídicos, diluentes/Dos Astros, pelos trêmulos velários,/Cantam Sonhos de místicos templários,/De ermitões e de ascetas reverentes …/Cânticos vagos, infinitos, aéreos/Fluir parecem dos Azuis etéreos,” (…) “E vai, de Estrela a Estrela, à luz da Lua,/Na láctea claridade que flutua,/A surdina das lágrimas subindo …”. O poema é sidéreo, cerúleo, tem um fluido que lhe dá a forma espectral e ao mesmo tempo com a solidez sonora de um poeta possuído pelas suas imagens como sons de um fundo poético que reverbera o tempo todo na superfície em que se tece o poema, mistério em azuis etéreos, poema que entende estrelas.
POST MORTEM: O poema nos dá as chaves das formas inefáveis, esta busca do poeta simbolista do indefinido e que do amor tem este como enigma e música suprema, e aqui no estro de um poema post mortem: “Quando do amor das Formas inefáveis/No teu sangue apagar-se a imensa chama,/Quando os brilhos estranhos e variáveis/Esmorecerem nos troféus da Fama,/Quando as níveas Estrelas invioláveis,/Doce velário que um luar derrama,/Nas clareiras azuis ilimitáveis;/Clamarem tudo o que o teu Verso clama,/Já terás para os báratros descido,/Nos cilícios; da Morte revestido,” (…) “Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas/Pelo alto ficarão de eras supremas/Nos relevos do Sol eternizados!”. O poema tem uma coda magistral, um relevo solar que culmina como um clarão infinito na poesia e na mística imagem da inspiração.
ACROBATA DA DOR: O poema exemplar do estro de Cruz e Sousa é este do acrobata da dor, um poema belo não só pela forma, mas, fato raro no simbolismo, também pelo conteúdo: “Gargalha, ri, num riso de tormenta,/Como um palhaço, que desengonçado,/Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado/De uma ironia e de uma dor violenta./Da gargalhada atroz, sanguinolenta,/Agita os guizos, e convulsionado/Salta, “gavroche”, salta, “clown”, varado/Pelo estertor dessa agonia lenta …” (…) “E embora caias sobre o chão, fremente,/Afogado em teu sangue estuoso e quente,/Ri! Coração, tristíssimo palhaço.”. A descrição clownesca é de um humor de riso bem talhado, e a queda é a imagem clássica do palhaço triste.
ÂNGELUS … : O poema tem este estro de religiosidade em forma poética e simbólica, portanto, caindo em mística, forma comum do inefável em poesia simbolista como a de Cruz e Sousa, no que temos: “Ah! lilases de Ângelus harmoniosos,/Neblinas vesperais, crepusculares,/Guslas gementes, bandolins saudosos,/Plangências magoadíssimas dos ares …/Serenidades eterais de incensos,/De salmos evangélicos, sagrados,/Saltérios, harpas dos Azuis imensos,/Névoas de céus espiritualizados./Ângelus fluidos, de luar dormente,/Diafaneidades e melancolias …/Silêncio vago, bíblico, pungente/De todas as profundas liturgias./É nas horas dos Ângelus, nas horas/Do claro-escuro emocional aéreo,/Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras/Ondulações e brumas do Mistério./Surges, talvez, do fundo de umas eras/De doloroso e turvo labirinto,/Quando se esgota o vinho das Quimeras/E os venenos românticos do absinto.”. O poema tem estes eflúvios infindos que povoam o ar ou ambiente em que se tece este poema de ângelus, pura luz de poesia diamantada, que nos seduz com mais versos, tais quais: “Num enlevo supremo eu sinto, absorto,/Os teus maravilhosos e esquisitos/Tons siderais de um astro rubro e morto,/Apagado nos brilhos infinitos./O teu perfil todo o meu ser esmalta/Numa auréola imortal de formosuras/E parece que rútilo ressalta/De góticos missais de iluminuras.” (…) “Nos êxtases dos místicos os braços/Abro, tentado da carnal beleza …/E cuido ver, na bruma dos espaços,/De mãos postas, a orar, Santa Teresa! …”. O poema se conclui com Santa Teresa e sua direta relação com os êxtases dos místicos.
MAJESTADE CAÍDA: O poema tem na imagem da queda a sua inspiração: “Esse cornoide deus funambulesco/Em torno ao qual as Potestades rugem/Lembra os trovões, que tétricos estrugem,/No riso alvar de truão carnavalesco./De ironias o momo picaresco/Abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,/Verdes gengivas de ácida salsugem/Mostra e parece um Sátiro dantesco./Mas ninguém nota as cóleras horríveis,/Os chascos, os sarcasmos impassíveis/Dessa estranha e tremenda Majestade./Do torvo deus hediondo, atroz, nefando,/Senil, que embora rindo, está chorando/Os Noivados em flor da Mocidade!”. Como um fauno aqui descrito, o poema descreve este deus funambulesco, sátiro que dança na flor da treva, descrição também de cóleras e sarcasmos impassíveis, o tétrico rindo na flor da mocidade, sem mais.
POEMAS:
TUBERCULOSA
Alta, a frescura da magnólia fresca,
Da cor nupcial da flor da laranjeira,
Doces tons d`ouro de mulher tudesca
Na veludosa a flava cabeleira.
Raro perfil de mármores exatos,
Os olhos de astros vivos que flamejam,
Davam-lhe o aspecto excêntrico dos cactos
E esse alado das pombas, quando adejam …
Radiava nela a incomparável messe
Da saúde brotando vigorosa,
Como o sol que entre névoas resplandece,
Por entre a fina pele cor-de-rosa.
Era assim luminosa e delicada,
Tão nobre sempre de beleza e graça
Que recordava pompas de alvorada,
Sonoridades de cristais de taça.
Mas, pouco a pouco, a ideal delicadeza
Daquele corpo virginal e fino,
Sacrário da mais límpida beleza,
Perdeu a graça e o brilho diamantino.
Tísica e branca, esbelta, frígida e alta
E fraca e magra e transparente e esguia,
Tem agora a feição de ave pernalta,
De um pássaro alto de aparência fria.
Mãos liriais e diáfanas, de neve,
Rosto onde um sonho aéreo e polar flutua,
Ela apresenta a fluidez, a leve
Ondulação da vaporosa lua.
Entre vidraças, como numa estufa,
No inverno glacial de vento e chuva
Que sobre as telhas tamborila e rufa,
Vejo-a, talhada em nitidez de luva …
E faz lembrar uma esquisita planta
De profundos pomares fabulosos
Ou a angélica imagem de uma Santa
Dentre a auréola de nimbos religiosos.
A enfermidade vai-lhe, palmo a palmo,
Ganhando corpo, como num terreno …
E com prelúdios místicos de salmo
Cai-lhe a vida em crepúsculo sereno.
Jamais há de ela ter a cor saudável
Para que a carne do seu corpo goze,
Que o que tinha esse corpo de inefável
Cristalizou-se na tuberculose.
Foge ao mundo fatal, arbusto débil,
Monja magoada dos estranhos ritos,
Ó trêmula harpa soluçante, flébil,
Ó soluçante, flébil eucaliptos …
FLOR DO MAR
És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto
As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
Surges das águas mucilaginosas
Como a lua entre a névoa dos espaços …
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
Auroras, virgens músicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços …
MÚSICA MISTERIOSA
Tenda de Estrelas níveas, refulgentes,
Que abris a doce luz de alampadários,
As harmonias dos Estradivárius
Erram da Lua nos clarões dormentes …
Pelos raios fluídicos, diluentes
Dos Astros, pelos trêmulos velários,
Cantam Sonhos de místicos templários,
De ermitões e de ascetas reverentes …
Cânticos vagos, infinitos, aéreos
Fluir parecem dos Azuis etéreos,
Dentre os nevoeiros do luar fluindo …
E vai, de Estrela a Estrela, à luz da Lua,
Na láctea claridade que flutua,
A surdina das lágrimas subindo …
POST MORTEM
Quando do amor das Formas inefáveis
No teu sangue apagar-se a imensa chama,
Quando os brilhos estranhos e variáveis
Esmorecerem nos troféus da Fama,
Quando as níveas Estrelas invioláveis,
Doce velário que um luar derrama,
Nas clareiras azuis ilimitáveis;
Clamarem tudo o que o teu Verso clama,
Já terás para os báratros descido,
Nos cilícios; da Morte revestido,
Pés e faces e mãos e olhos gelados …
Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas
Pelo alto ficarão de eras supremas
Nos relevos do Sol eternizados!
ACROBATA DA DOR
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, “gavroche”, salta, “clown”, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta …
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d´aço …
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
ÂNGELUS …
Ah! lilases de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares …
Serenidades eterais de incensos,
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos Azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos, de luar dormente,
Diafaneidades e melancolias …
Silêncio vago, bíblico, pungente
De todas as profundas liturgias.
É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
Ondulações e brumas do Mistério.
Surges, talvez, do fundo de umas eras
De doloroso e turvo labirinto,
Quando se esgota o vinho das Quimeras
E os venenos românticos do absinto.
Apareces por sonhos neblinantes
Com requintes de graça e nervosismos,
Fulgores flavos de festins flamantes,
Como a Estrela Polar dos Simbolismos.
Num enlevo supremo eu sinto, absorto,
Os teus maravilhosos e esquisitos
Tons siderais de um astro rubro e morto,
Apagado nos brilhos infinitos.
O teu perfil todo o meu ser esmalta
Numa auréola imortal de formosuras
E parece que rútilo ressalta
De góticos missais de iluminuras.
Ressalta com a dolência das Imagens,
Sem a forma vital, a forma viva,
Com os segredos da Lua nas paisagens
E a mesma palidez meditativa.
Nos êxtases dos místicos os braços
Abro, tentado da carnal beleza …
E cuido ver, na bruma dos espaços,
De mãos postas, a orar, Santa Teresa! …
MAJESTADE CAÍDA
Esse cornoide deus funambulesco
Em torno ao qual as Potestades rugem
Lembra os trovões, que tétricos estrugem,
No riso alvar de truão carnavalesco.
De ironias o momo picaresco
Abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,
Verdes gengivas de ácida salsugem
Mostra e parece um Sátiro dantesco.
Mas ninguém nota as cóleras horríveis,
Os chascos, os sarcasmos impassíveis
Dessa estranha e tremenda Majestade.
Do torvo deus hediondo, atroz, nefando,
Senil, que embora rindo, está chorando
Os Noivados em flor da Mocidade!
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