Crônica para o domingo que eu não lembrava que era. Por Claudia Weinman.

 

Imagem: Obra de Cândido Portinari.

Por Claudia Weinman, para Desacato. info. 

Meu irmão do meio, o Fabio, estava sumido do grupo da família no Whatsapp. A mãe foi a primeira que perguntou. O Thales meu sobrinho, pintou os desenhos de galo que os papais dele desenharam. Fez até um “concurso”, desafiando os demais, só a vó participou. Então ele me passou um vídeo, tipo “tutorial” pra eu aprender a desenhar galos. Prometi assistir e enviar o desenho.

Não demorou mais muito, meu irmão enviou uma foto do livro com adaptação do Dom Quixote, era sua leitura da noite. Pronto. Voltei lá nos meus um metro e pouquinho de altura, beliche e casa de madeira na roça. Chegava noite, depois do virado de feijão, pão com nata e melado, café com leite e lavação de louça, TV ligada na sala e a gente fechava a porta do quarto. Fabio ficava na cama de cima. Eu sempre tive medo, por isso, sentava em meia lua ao lado do Carlos (meu irmão também), segurava o dicionário enquanto o Carlos lia. Falei no grupo hoje que era possível só meia página por noite de leitura. Eu demorava em achar as palavras “difíceis” no dicionário e em cada linha tinha umas quantas.

Várias noites assim. A gente era feliz daquele nosso jeito. Conhecemos o mundo das palavras nesses encontros no beliche e depois, eu inventava motivos para sentar no gramado onde jogávamos bola (eu de gandula), esticava a toalha no chão, chamava  o Sancho Pança e convocava o senhor Quixote para a conversa. Eu não entendia bem, quase nada na verdade, mas era uma viagem sentar na grama ou no beliche com meus irmãos. Era o estar perto, o momento, o fato, a notícia de poder estar em um quarto pequeno rodeado de histórias.

A gente foi se fazendo assim. O Carlos passava a maior parte do ano fora de casa, estudando. Mandava cartas e a gente devolvia pedindo o que estava escrito na primeira, mas era divertido pra caramba. Ele ainda guarda essas cartas e eu adoro quando tenho oportunidade de revê-las. Têm parte de mim ali, da gente, de contar sobre as notas da escola, de escrever aqueles versinhos dizendo: “amo a lua amo o luar, amo você em primeiro lugar“.

Nessa quarentena a gente vai revivendo o que não parece tão evidente em outros momentos. Espero como disse um dos meus irmãos outro dia: “quando isso tudo passar, vamos sentar para tomar um café com bolacha”. Hoje isso é um quase: pedir demais. Um dia não foi, mas hoje é.  Quero ler Dom Quixote novamente na presença deles, com ou sem beliche, a roda pode aumentar e nem precisa trancar a porta do quarto. Ficará aberta para quem quiser.

Essas palavras  não podem encerrar o texto. Preciso de outras para mencionar que cada estalo na madeira da casa enquanto o Sancho Pança não se pronunciava, era um fantasma que aparecia. Os olhos ficavam esbugalhados, só esperando o exato momento do susto. Era tanta assombração na minha cabeça, mas nenhuma me fez tão mal quanto às que vejo hoje, vai saber por quê.

Às vezes dormia até de bexiga apertada, para isso não tinha muito problema, não era eu quem andava de cavalo. Era o Sancho, eu evitava caronas pela noite. Só embarcava se fosse ao sono, depois de encostar a cabeça, já bem satisfeita com a história do livro de capa vermelha, pesado que só, acho que é por isso que muita gente nem lê nada, para evitar o peso das palavras na vida.

Esqueci que hoje era domingo. Não vai ter a casa da mãe nem gente rodeando a mesa. Mesmo de dia, eu montaria no cavalo, me arriscaria como quem “não foge da luta”, mas não é sobre mim, outras vidas importam então: “melhor voltar sonho bom! Logo tu poderás ver a quimera passar e saborear a companhia me entendeu? Eu amo demais para perder qualquer um que seja”.

Vai vendo as palavras que vou botando aqui. Cada um chora de um jeito, estou tentando vestir as lágrimas do meu.

Claudia Weinman é jornalista, vice-presidenta da Cooperativa Comunicacional Sul. Militante do coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

#Desacato13Anos #SomandoVozes

3 COMENTÁRIOS

  1. Linda crônica, Claudia. Essa magia q nos remete aos dias de infância é o q acalenta esses dias sombrios de quarentena. Quisera todas as pessoas pudessem ter memórias tão afetivas e cálidas.

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