Crônica do cotidiano feminino

cotidiano feminino

Por Cadu de Castro.

Cinco horas da manhã. O tempo lá fora era úmido e frio. O celular disparou seu alarme  entrecortado e estridente e a luz do display iluminou parcamente o quarto. Marta estava sonolenta, passou a mão sobre o aparelho e fez cessar o som que anunciava mais um longo dia de trabalho.

Ainda sentia no corpo o cansaço de ontem, e de anteontem, e de transanteontem, mas precisava levantar. Num salto saiu da cama, calçou os chinelos e se dirigiu ao banheiro para o seu toillete matinal.  Tomou o banho ligeiro de todos os dias, escovou os dentes e se vestiu para o trabalho.

Rapidamente foi à cozinha para ferver água e leite para o café.  Acordou as filhas, ajudou-as a lavar o rosto e escovar os dentes e as vestiu com o uniforme da escola. As duas estavam sempre muito sonolentas pela manhã. Acordavam cedo, mas dormiam tarde.

Ouviu o apito da chaleira avisando que o leite estava prestes a ferver, correu para o fogão para evitar que derramasse. Passou o café e serviu para as meninas, que já se sentavam à mesa. Enquanto faziam o desjejum, Marta preparava o lanche para levarem à escola.

Apressou-as e rapidamente bebeu uma xícara de café. Seu tempo era sempre escasso.  Foi em direção ao seu quarto, onde seu esposo dormia tranquilamente. Acendeu a luz e balbuciou seu nome, “Natanael”. Ele se virou na cama e continuou dormindo. Ela tocou seu ombro chamando mais alto.

Ele despertou e perguntou a ela se já estava na hora. Ela respondeu que sim e rispidamente disse que já o havia chamado mais de uma vez. Ele deu de ombros e perguntou: “Que estresse é esse, mulher? Que  cara é essa logo cedo?”  Marta sentiu um nó na garganta, mas se calou e fingiu que ignorou, virou-se em direção à cozinha e disse a ele que o café estava na mesa.

Pegou as mochilas, colocou os lanches dentro e chamou as meninas. Abriu a porta e apertou o botão do elevador. Bateu a porta atrás de si  e desceu. Natanael levantou e se banhou tranquilamente. Trocou-se e tomou o café da manhã, antes de sair para o trabalho.

O ponto de ônibus estava bastante cheio, como fora ontem e seria amanhã. Marta se preocupou com as filhas, era sempre uma aventura perigosa subir no transporte lotado levando consigo duas crianças pequenas.

Quando o ônibus chegou, Marta realizou as manobras de todos os dias para subir com as meninas. Pediu licença a um e a outro, foi passando as filhas na frente e se acomodou junto à poltrona de  uma moça, que lhe cedeu lugar no assento para que ela pudesse acomodar a si e as crianças.

Vinte minutos depois, mais uma manobra para levantar e chegar próximo à porta de saída segurando na mão das meninas. Desceram no ponto e caminharam até a escola. Pensou consigo o quão bom eram os dias sem chuva, pois levar as meninas, mochilas e ainda proteger as três com o guarda-chuva era demasiado desconfortável, quase um exercício híbrido de contorcionismo e malabares.

Despediu-se das meninas dando um beijo no rosto de cada uma delas e pedindo pra que se comportassem e obedecessem às professoras. As meninas sinalizaram positivamente com a cabeça e sorrisos estampados no rosto. Quando Marta saía, ouviu o grito em uníssono de “tchau mãe, te amo!” , virou-se, sorriu e acenou.

Apressou os passos em direção à estação do Metrô próxima à escola. Ao chegar, uma multidão já a esperava, como todos os dias. Emaranhou-se à horda de trabalhadores que usavam o transporte para ir ao serviço.

Passou a catraca e esperou o segundo trem, pois no primeiro era impossível entrar, estava lotado. O outro veio bem cheio também, mas Marta conseguiu se meter no vagão, pois chegaria atrasada ao trabalho. se não o pegasse. Postou-se em pé ao lado da barra inoxidável onde conseguiu segurar. As pessoas se aglomeravam.

Num repente, sentiu um rapaz que se postara bem atrás dela. Ele se movimentava devagar encaixando o corpo no dela. Sentiu-o ele segurar sua cintura. Indignou-se com o atrevimento e a falta de respeito. Esquivou-se como pôde e olhou para trás fuzilando-o com os olhos. Ele esboçou um sorriso sarcástico perguntando: “Que cara é essa dona?”. de novo Disse ainda que não adiantava fazer cara feia, o trem estava cheio e era inevitável o contato.

Marta sentiu o nó na garganta pela segunda vez naquele dia, mas se calou. Pediu licença às pessoas ao redor, mudando de lugar sem olhar novamente para o rapaz. Segurou a enorme indignação e vontade de chorar.

Desceu na estação em que descia todos os dias e caminhou até o terminal onde pegou mais um ônibus. Baixou no ponto a e percorreu a passos rápidos a única quadra de distância até o escritório onde trabalhava.

Caso alguém lhe perguntasse o que havia no caminho de casa à escola e da escola ao escritório, Marta mal saberia dizer. Estava sempre acelerada, a andadura lépida era sua marca. Além do que, vivia absorta em pensamentos, antecipando as ações do dia.  Entrou no prédio. Forçou um sorriso e deu bom-dia ao porteiro. Correu até o elevador que já fechava a porta. Fingiu sorrir novamente e cumprimentou o ascensorista.

Entrou no escritório dando bom-dia a todos. Dividia a mesa com Cícero, colega de trabalho que, apesar de exercer a mesma função que ela, ganhava um salário quarenta por cento maior. Não bastasse isso, o rapaz tinha enorme talento para se esquivar de tarefas, que invariavelmente sobravam para ela realizar. Sentou-se.

Abriu a gaveta da escrivaninha e pegou a lista de prioridades que rabiscou no dia anterior. Lia a lista atentamente e nem percebeu a aproximação de Cícero, que, esboçando um sorriso, colocou um calhamaço de papéis sobre sua mesa dizendo que era demanda urgente da chefia.

Marta sabia que o colega estava empurrando trabalho dele para ela, mas, como era muito amigo do chefe, não havia como nem para quem reclamar. Ela franziu a testa, entortou a boca e olhou fixo para Cícero, que disse: “Por que essa cara, coleguinha? Chefia é chefia, tem de fazer sem reclamar. Ah! E põe no topo da sua listinha de prioridades.”  E saiu sorrindo.

Marta não retrucou. Sentiu aquela gastura, o nó na garganta apertando pela terceira vez naquele dia. Olhou a lista que tinha na mão e guardou na gaveta. Debruçou-se sobre os documentos entregues por Cícero. Passou toda a manhã desembaraçando as tais demandas urgentes.

Almoçou em trinta minutos para recuperar o atraso do serviço. Aproveitou para telefonar para os sogros checando se estava tudo bem com eles. Natanael era filho único e Marta assumiu os cuidados dos dois idosos.  Todo sábado ia à casa dos sogros para preparar as refeições da semana e deixá-las congelada em porções no freezer, já que a sogra era portadora de uma espécie de demência e não podia mais cozinhar.

Concentrada no trabalho, nem notou a aproximação do chefe. Teve um sobressalto ao ouvi-lo chamar seu nome e percebê-lo ao seu lado. Chamou-a de Dona Marta, como sempre, e cobrou dela alguns serviços atrasados. Ela explicou que eram as primeiras ações de sua lista de prioridades, mas que Cícero havia passado outras demandas dizendo serem prioritárias, por isso ainda não havia concluído aqueles trabalhos.

Senhor Pimentel, que era como ela o chamava, franziu a testa e de maneira áspera respondeu: “Tudo é prioridade, Dona Marta. Tudo. Quero o mais rápido sobre minha mesa”, e saiu em direção à sua sala.

Marta, já fragilizada pelo estresse causado pelo excesso de coisas a fazer e escassez de horas contidas em um dia, sentiu novamente aquela angústia, o nó na garganta, o aperto no peito, o revirar do estômago. Era sensação que vinha da mais tenra infância, quando o pai tratava a ela e ao irmão com enorme distinção: o irmão podia quase tudo, ela quase nada. O argumento era sempre o mesmo: “Ele é menino, você é menina”.  Contudo, ela nunca se acostumara a esse misto de sentimentos ruins.

Apressou-se para poder dar conta das incumbências do dia. Ao final da tarde, colocou todo o trabalho finalizado sobre a mesa do senhor Pimentel. Arrumou sua mesa e suas coisas, pegou a bolsa e saiu. Acelerou os passos no corredor para aproveitar o elevador parado no andar. Entrou e forçou mais uma vez o sorriso para o ascensorista. Despediu-se desejando boa tarde.

Caminhou ligeiro até o ponto de ônibus, que estava cheio. Esperou por vinte minutos. Subiu no ônibus lotado e viajou em pé até o terminal. Desceu e apressou o passo até a estação de Metrô. Passou a catraca e teve de esperar o terceiro trem, que também estava abarrotado, mas foi possível entrar.

Baixou na estação próxima à casa de seus pais e caminhou. Passou por um trecho escuro da rua, que era quase sempre vazia, e avistou um homem desconhecido vindo no sentido oposto. Sentiu um calafrio. Ficou temerosa.

O homem passou por ela como se ignorasse sua presença. Apesar do alívio, apertou ainda mais o passo. Mais uma vez, angustiou-se por ser mulher. Pensou consigo que provavelmente o homem não se sentiu intimidado com uma mulher caminhando em sua direção em uma rua deserta e escura. Mas ela e a grande maioria das mulheres conviviam com essa ameaça.

Neste momento, já sentia a exaustão de mais um dia tão difícil quanto todos os outros.  Entrou no prédio e subiu ao apartamento dos velhos. Abriu a porta e viu seu pai deitado no sofá assistindo TV. Sorriu um sorriso cansado e soltou um “Oi, pai!”.

O pai respondeu com um sorriso, dizendo que as meninas brincavam no quarto, que a avó havia apanhado as duas na escola e agora estava na cozinha.  Marta foi ao quarto dar um beijo nas filhas. Foi recebida efusivamente pelas duas, que se penduraram ao seu pescoço num forte abraço e exclamaram um sonoro “Mãeeeee!”.

Beijou-as e foi à cozinha onde estava Dona Mércia, sua mãe.  Encontrou-a encostada à pia lavando a louça com muita dificuldade. Era idosa e tinha a saúde muito fragilizada. Cumprimentou-a  segurando em seus ombros e beijando sua face por trás. A mãe sorriu para a filha.

Marta logo tomou conta da cozinha e pôs-se a preparar o jantar, como todos os dias, para poupar Dona Mércia.  Fazia-o em quantidade suficiente para as duas famílias, a de seus pais e a sua. Sua parte levava em recipientes térmicos para casa, onde jantavam ela, as meninas e  Natanael. Assim economizava tempo ao chegar em casa, assim eram todas as noites durante a semana.

Serviu o jantar aos pais, esperou-os comer, lavou a louça e pegou carona com o pai até em casa. Moravam a 20 minutinhos de lá. No caminho, conversou com o pai sobre a ausência do irmão, que, apesar de morar próximo, ia muito pouco à casa deles. Disse ao pai que era preciso que o irmão fosse mais presente e também ajudasse os velhos.

O pai disse à filha para não se comparar com o irmão, afinal ela era mulher e ele homem. Tinha outras obrigações. Marta olhou para o pai, sentiu mais uma vez um aperto no peito, no momento em que chegavam em frente ao prédio onde morava. Respondeu ao pai que não fazia comparações, apenas cobrava atenção maior do irmão para com os velhos, e isso não tinha ligação nenhuma com o gênero. O carro parou, as netas se despediram do avô, Marta agradeceu e o beijou no rosto, as três desceram.

Marta abriu a porta do apartamento e as meninas entraram correndo na frente e chamando pelo pai. A mãe disse às meninas que Natanael estava jogando futebol e que em breve chegaria, e que jantariam todos juntos.

Marta colocou as meninas no banho e iniciou uma rápida faxina pela casa. Não gostava de deixar para o final de semana, pois a poeira  acumulava e ficava ainda mais difícil limpar. Deixou a limpeza de lado e foi terminar o banho das meninas. Enxugou-as, trocou-as e voltou à arrumação da casa.

Ela estava exausta quando ouviu Natanael abrindo a porta. O marido entrou, sorriu e lhe deu um leve beijo nos lábios.  As meninas correram para a sala ao ouvirem a voz do pai. Enquanto trocavam beijos e abraços, Marta foi para a cozinha finalizar o jantar. Serviu-o a todos.

Ao terminarem de comer, Marta recolheu pratos, talheres e travessas da mesa. Lavou-os. Natanael entrou no banho. Chamou a esposa pedindo a toalha, que havia esquecido de apanhar. Marta entrou no banheiro para entregá-la com cara de poucos amigos. Natanael perguntou: “Que cara é essa, mulher?”, Marta deu meia volta e saiu sem responder.

Colocou as meninas para dormirem, pois acordariam cedo no dia seguinte. Entrou no banho e finalmente relaxou. Era a primeira vez no dia que tinha um tempo para ela. Fechou os olhos, respirou fundo, se enxaguou e fechou o chuveiro, pois a água é escassa na cidade.

Enxugou-se, vestiu o pijama e foi para o quarto. Soltou-se na cama como quem desfalece. Pouco tempo depois, Natanael se deitou ao seu lado. Sentiu-o acarinhando suas costas e beijando seus ombros e pescoço. Suspirou e disse firme: “Hoje não!”

Foi como um balde de água fria. Decepcionado, Natanael perguntou à Marta o que se passava. Afinal, desde cedo parecia mal-humorada. Pela manhã estava com uma expressão de  poucos amigos e agora refutava seus carinhos. Perguntou: “O que está acontecendo? Por que essa cara, mulher?”

Marta suspirou e pensou consigo que a tal cara de poucos amigos é a expressão de um misto de sentimentos, como a angústia de ser mulher, a ansiedade de dar conta de tudo, a humilhação, a opressão, o medo. Sentimentos compartilhados pela grande maioria das mulheres, mas que são difíceis serem nomeados ou até mesmo expressos em palavras. É possível que muitas delas nem os identifiquem. Sentem a angústia, o aperto no peito, o nó na garganta, o revirar no estômago, mas não têm ideia de onde vêm.

Ponderou que as mulheres tratam  algumas transformações das últimas décadas como se fossem vitórias e conquistas, mas até que ponto o são? Referia-se ao direito de estudar e trabalhar fora. Foram vitórias de fato? Ou são pseudoconquistas que infligiram  segundas, terceiras e outras jornadas? Pois, ainda que pudessem  sair para estudar e trabalhar, continuava sendo de responsabilidade feminina os cuidados com a casa, crianças e idosos.

Assim, estas vitórias não seriam ilusórias? Acumularam ainda mais responsabilidades às mulheres. Além do que, mulheres exercendo as mesmas funções que os homens recebem salários até quarenta porcento menor. Por quê?

Bem, e ainda há as razões morais para estes sentimentos de angústia, ansiedade, indignação.  A moral da sociedade é permissiva demais com o homem, ao mesmo tempo que opressiva demais com a mulher.

Somado a tudo isso, o horrendo assédio a que estão expostas também as afligem. Andando na rua, no ônibus, no Metrô estão sujeitas a gracejos indesejáveis, indelicadezas ou grosserias. Há também o medo de sofrerem violência. Mas como explicar isso a um homem, que nunca sentiu nem nunca sentirá a angústia de ser mulher? Não há como explicar! Não há como descrever! Só as mulheres compartilham destes sentimentos inomináveis. Marta se limitou a dizer que estava cansada e com sono. Dormiu.

Cinco horas da manhã. O tempo lá fora era úmido e frio. O celular disparou seu alarme  entrecortado e estridente e a luz do display iluminou parcamente o quarto. Marta estava sonolenta, passou a mão sobre o aparelho e fez cessar o som que anunciava mais um longo dia de trabalho.

Fonte: Revista Língua de Trapo.

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