Crise das esquerdas: partidos versus movimentos sociais

fotormovimentossociais_0Por Aldo Fornazieri.

Há um consenso amplo de que as esquerdas passam por uma crise generalizada e de múltiplos aspectos e que vem se  agravando, particularmente na América Latina. O curioso em tudo isso é que as esquerdas se negam a olhar para  si próprias, para os seus discursos, suas formas organizativas, suas formulações programáticas, suas estratégias. Ao contrário das melhores tradições das esquerdas do passado, preferem atribuir as causas dos seus fracassos aos outros, o que revela uma dupla impotência: a impotência para enfrentar os seus inimigos e a impotência de reconhecer que as suas práticas também são causas dos seus insucessos.

Um dos aspectos dessa crise diz respeito à cisão, ao divórcio, entre os partidos e os movimentos sociais, particularmente os movimentos sociais de características novas e que se estruturam em torno de novas temáticas que não as tradicionais, vinculadas às organizações sindicais e às lutas trabalhistas por direitos e melhores condições de trabalho. As lutas sindicais e trabalhistas se enfraqueceram, por várias razões. Uma delas se refere ao fato de que as mudanças tecnológicas reduziram o trabalho fabril. A mobilidade do capital físico, consequência das revoluções tecnológicas, enfraqueceram o poder de barganha, tanto dos sindicatos quanto do poder público ante o capital. O enfraquecimento e redução das bases sindicais tradicionais dissolveram parte da base social história dos partidos de esquerda, reduzindo sua potência mobizadora.

Por outro lado, sindicatos e partidos sofrem de males comuns: a  sua burocratização e oligarquização, nos termos colocados por Robert Michels em Sociologia dos Partidos Políticos. Esta circunstância provoca um estiolamento da atividade política aberta e de natureza dialogada com outros movimentos e com a sociedade em geral e cria estados-maiores de operadores que agem, quase com exclusividade, para operar e manter os aparatos de poder de cada partido e de cada sindicato. Partido e sindicato se tornam fins em si mesmos e perdem a perspectiva de uma ação e de um programa universalizantes. O corporativismo e a luta por manutenção e afirmação de privilégios graçam nos sindicatos tradicionais e nos partidos de esquerda. Ao não se abrirem para atividades sociais e culturais mais gerais e dada a sua oligarquização, os sindicatos perdem legitimidade social e têm bases que se tornam cada vez mais indiferentes às cúpulas.

Os novos movimentos sociais e culturais

A revolução tecnológica, a globalização, a financerização de quase todas as atividades, o processo de urbanização universal desordenado que fez surgir grandes e médias cidades, a precarização do trabalho e o desemprego, a informalidade, o aparecimento de imensas periferias abandonadas pelo poder público incluindo pelos governos de esquerda, o desenraizamento rural, a multiplicação dos setores de serviços de baixa renda, a diversidade religiosa e étnica são fenômenos, entre outros, que proporcionaram o aparecimento do mundo fragmentado, do fim da fixidez, da realidade líquida (Bauman) e de uma moral não só ambivalente, mas polivalente. É na base desses fenômenos que proliferam, não só o individualismo solitário e o consumismo, mas também a emergência de novos movimentos sociais a partir de novas temáticas, de novas necessidades, de lutas por novos direitos etc.

As lutas das comunidades periféricas são múltiplas: moradia, iluminação, água, emprego, segurança, saúde, educação, cultura, saneamento. Enfim, essas comunidades padecem de todo tipo de carecimentos e normalmente são vítima da violência policial, de uma Justiça que age contra os pobres, negros índios e mulheres e interagem com o narcotráfico e com o crime organizado numa relação de proteção e de morte. Os carecimentos e o abandono fizeram brotar uma rede complexa de novos movimentos organizados e forma mais horizontal. Alguns se entrelaçam com as religiões, outros não. Alguns são potencializados por ONGs e outros vêem determinadas ONGs como estruturas particulares orientadas para manter os seus próprios interesses, buscando recursos da iniciativa privada e do Estado.

Abandonados pelo poder público, esses movimentos foram percebendo, aos poucos, que eram instrumentalizados e não passavam de massa de manobra dos interesses eleitorais dos partidos de esquerda. Foi neste contexto que eles aprofundaram a cisão com esses partidos. Foi nesse contexto que perceberam que nos governos petistas e de outros partidos de esquerda eles ocupavam posições meramente periféricas nas estruturas de poder, ganhavam as migalhas das secretarias e dos  ministérios. Esses movimentos cresceram em organização, em complexidade e ampliaram suas redes de conectividade ao mesmo tempo em que vão se desconectado dos partidos e do poder público. Sua organização tem uma determinação ambivalente ou polivalente, conforme o caso: se organizam a partir de uma base territorial e de uma motivação temática ligada a um carecimento ou a um desejo, geralmente cultural.

Os movimentos feministas, LGBTs, étnicos, ambientalistas, estudantis e juvenis têm bases e motivações mais temáticas e de luta por direitos e menos territoriais. Esses movimentos também viraram as costas para os partidos de esquerda e se organizaram de forma autônoma. Partidos de esquerda, contudo, organizam os seus setoriais de mulheres, negros, LGBT, Juventude etc. Em regra, esses movimentos parapartidários sofrem o constrangimento e a manipulação das direções partidárias. São mais instrumentos do que sujeitos partidários ativos em uma vida democrática interna produtiva. O discurso democrático dos partidos é mais uma retórica externa do que uma prática interna. Salvo os coletivos ou setoriais que têm cotas, como é o caso das mulheres, os demais padecem um enorme déficit de representação interna. É duvidoso que as cotas sejam capazes de solucionar esse problema, pois existem outros problemas imbricados nessa depreciação dos movimentos que pouco são discutidos, seja pelos partidos seja pelos próprios movimentos.

É duvidoso que esses movimentos novos, de base territorial e temática, estejam levando a efeito uma luta pela hegemonia cultural e moral no sentido gramsciano do termo. É verdade que produzem novas formas culturais e organizativas. Mas, a rigor, tanto umas como as outras, são absorvidas pelo sistema capitalista de valores e de produção. Hoje, não se vislumbra, nem nos partidos de esquerda, nem nos novos movimentos sociais uma perspectiva anti-sistêmica, uma nova alternativa civilizatória.

Os particularismos versus o universalismo

Os impasses entre os partidos e os movimentos sociais não têm soluções fáceis, se é que as têm. Ocorre que estamos diante de diversos particularismos pouco dispostos a buscar um caminho comum a partir da construção de uma formulação programática que expresse uma visão de mundo comum possível e de uma forma organizativa – uma frente – que expresse um acordo procedimental comum e um regramento aceitável possíveis.

Os particularismos dos partidos se referem às suas pretensões hegemônicas, aos seus interesses partidários de aparelhamento, às suas visões instrumentais dos movimentos sociais, às suas ideologias anacrônicas e particulares, à busca do poder  como um fim em si mesmo. Os particularismos dos movimentos brotam de seus carecimentos, de suas causas, das lutas por direitos específicos, das suas motivações, dos seus interesses e de seus desejos de mudanças e de uma vida melhor. Esses movimentos não só são refratários aos partidos, mas às instituições públicas e políticas em geral. Essas desconfianças e resistências são plenamente justificáveis, pois é uma longa história de abandono, de iniquidades, de injustiças, de manipulação e de indiferença.

Neste momento de crise, de ofensiva conservadora e de perda de poder por parte das esquerdas intensifica-se uma balcanização dentro dos partidos e entre os partidos. Após o segundo turno esses conflitos tendem a se acirrar. É pouco esperançoso que algum tipo de solução que articule a chave unidade com pluralidade venha da parte dos partidos de esquerda, pois estão pouco propensos a se libertarem de seus particularismos. Se alguma solução vier, nos termos de uma frente progressista, popular e democrática, terá que vir dos movimentos sociais, da intelectualidade e dos vários círculos e grupos que estão se instituindo a partir do desastre do golpe e do massacre das eleições municipais.

Aldo Fornazeri é professor da Escola de Sociologia e Política.

Fonte: Jornal GGN.

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