Crimes da ditadura: basta punir os torturadores?

torturaPor Inês Castilho.

Há anos, as importantes tentativas de examinar assassinatos e outros crimes cometidos durante a ditadura pós-64 têm visado um tipo especial de personagem: os torturadores. É eles que queremos ver no banco dos réus, quando recordamos que a tortura, como crime contra a humanidade, é imprescritível e não pode ser “anistiada”. Foi diante de suas casas que se realizaram os “escrachos” a partir de 2011. Dois fatos novos, contudo, sugerem que esta abordagem pode ser insuficiente ou mesmo incorreta. Colocar o foco principal sobre quem praticou as torturas ajudaria a poupar os principais responsáveis: as autoridades civis e militares que comandaram o regime de exceção, além de lideranças empresariais e mesmo representantes do corpo consular. Além de seu papel central na sustentação do regime, estes podem ter se envolvido diretamente com os órgãos de repressão.

A novidade mais recente são documentos levantados pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Encontrados no Arquivo do Estado, os papéis dão indícios de que representantes da Federação das Indústrias (Fiesp) e o próprio cônsul dos Estados Unidos podem ter frequentado o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), um dos órgãos em que se torturavam opositores. A descoberta está detalhada numareportagem da jornalista Elaine Patrícia Cruz, na Agência Brasil. Ouvido pela repórter, Ivan Seixas, membro da comissão estadual, afirmou: “Esses documentos são apenas o começo. (…) Ainda vão aparecer mais coisas”. Agora, estuda-se a possibilidade de pedir explicações da Fiesp e do consulado.

No início do mês, o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Belrodt Paiva — uma das vítimas mais notórias da ditadura — já havia manifestado incômodo com a concentração do foco nos torturadores. Entrevistado pelo jornalista Roldão Arruda, de O Estado de S. Paulo, Marcelo fala sobre as revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade sobre a morte do seu pai. Há décadas a família já sabia que ele foi torturado e morto no DOI-Codi do Rio, depois de ter sido preso em casa por militares no dia 20 de janeiro de 1971, em São Paulo. Marcelo cita dois livros que contam essa história: A Hora do Lobo, do médico Amilcar Lobo, que trabalhando para o DOI-Codi viu seu pai ser torturado e morto; e Segredo de Estado, do jornalista Jason Tércio. Contudo, a Comissão tem a virtude de comprovar esses fatos com documentos oficiais.

Mas Marcelo quer mais. Quer saber em que dia seu pai foi morto, se foi esquartejado, para onde foi o corpo, pelas mãos de quem. Quer saber quem deu as ordens, se vai ser chamado a depor. “Já sabemos que um deles morreu e dois estão vivos. Mas quem sobreviveu são oficiaizinhos do Exército. Eles é que vão responder? Só quem bateu é responsável? E quem mandou?” – diz, perguntando se, mais uma vez, “a corda vai estourar no lado da ralé”. Ele continua, sem trégua: “Por que havia tortura? Por que existia o DOI-Codi? Por que meu pai foi preso? Por que o golpe de 1964? O que o empresariado americano queria com o golpe? E o empresariado brasileiro?” – chegando aí aos fundamentos da História.

Marcelo mostra ainda as contradições da ‘pacificação’ brasileira. Lembra que a Lei da Anistia de 1979, pela qual os responsáveis não podem ser punidos, foi promulgada por um Congresso de senadores biônicos, com a imprensa sob censura, a oposição “metade morta e metade no exílio”, partidos de esquerda banidos, sindicatos sem liberdade. “Como é que alguém pode dizer que a lei, promulgada nesse clima, é democrática?” – pergunta, e desdenha do referendo da Lei pelo STF: “A decisão do Supremo foi vergonhosa, um vexame perante a Organização dos Estados Americanos, a Anistia Internacional e outros organismos.” Marcelo lembra, finalmente, que o Brasil é signatário da carta internacional que qualifica a tortura como crime contra a humanidade – sendo, portanto, imprescritível.

Imagem: Elifas Andreato

Fonte: Rede Outras Palavras

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