Coronavírus: com poucos testes e sem lockdown, qual o mistério por trás da baixa mortalidade no Japão

Per capita, a população do Japão é mais velha do que a de qualquer outro país do mundo. Foto: Getty Images

Por Rupert Wingfield-Hayes, BBC Tokio.

Por que não morreram mais pessoas de covid-19 no Japão? É uma questão macabra que tem gerado dezenas de teorias, que envolvem desde os costumes japoneses até especulações de que eles teriam uma imunidade superior.

O Japão não tem, no entanto, a taxa mais baixa de mortalidade para covid-19. Na região, Coreia do Sul, Taiwan e Vietnã têm taxas menores que o Japão.

Mas, até a primeira metade de 2020, o Japão registrou menos mortes que a média — apesar de, em abril, Tóquio ter registrado cerca de 1 mil mortes “excedentes” (a mais do que no mesmo período no ano anterior), talvez em razão da covid. Apesar disso, no acumulado do ano, é possível que a quantidade geral de mortes venha a ser menor do que foi em 2019.

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O movimento é surpreendente porque o Japão tem muitas das condições que o tornam vulneráveis à doença, mas nunca adotou uma abordagem mais rígida para atacar o vírus — como fizeram alguns de seus vizinhos.

O que aconteceu no Japão?

Em meio ao surto em Wuhan, em fevereiro, quando os hospitais da cidade chinesa estavam sobrecarregados e o mundo se fechou contra viajantes vindos da China, o Japão manteve suas fronteiras abertas.

À medida que o vírus se espalhava, ficou claro que a covid-19 é uma doença que mata principalmente os mais velhos e se espalha por multidões ou contato próximo. O Japão tem a população mais velha que qualquer outro país. Além disso, a população do Japão é densamente “amontoada” em grandes cidades.

A grande Tóquio tem mais de 37 milhões de habitantes e, para a maioria deles, a única maneira de se deslocar é por meio dos trens conhecidamente lotados.

E há ainda a recusa do Japão em seguir o conselho da Organização Mundial da Saúde (OMS) de “testar, testar, testar”. Ainda agora, o total de testes PCR está em apenas 348 mil, ou 0,27% da população.

O Japão tampouco adotou um lockdown em escala ou severidade da Europa. No começo de abril, o governo declarou estado de emergência, mas o pedido para ficar em casa não era compulsório. Serviços não essenciais foram convidados a fechar, mas não havia nenhuma punição prevista para quem recusasse o convite.

Muitos exemplos de estratégias bem sucedidas contra a covid-19, como as de Nova Zelândia e Vietnã, usaram medidas severas como o fechamento de fronteiras, confinamento rígido, teste em larga escala e quarentenas bem controladas. O Japão não fez nada disso.

E, ainda assim, cinco meses após o registro do primeiro caso de covid-19, o Japão tem menos de 20 mil casos confirmados e menos de mil mortes. O estado de emergência foi revogado e a vida está rapidamente voltando ao normal.

Japonês aplicando teste em pessoa no estádio de futebol
Japão faz poucos testes em comparação a outros países asiáticos como a Coreia do Sul, por exemplo. Getty Images

Há também evidências científicas de que o Japão realmente parece, até agora, ter controlado o avanço da doença.

A gigante de telecomunicações Softbank realizou testes de anticorpos em 40 mil funcionários, que mostraram que apenas 0,24% havia sido exposto ao vírus. Testagem randômica de 8 mil pessoas em Tóquio e duas outras cidades mostraram níveis ainda mais baixos de exposição. Em Tóquio, só 0,1% testaram positivo.

Em junho, quando declarou o fim do estado de emergência, o primeiro-ministro, Shinzo Abe, enalteceu o “modelo japonês”, afirmando que outros países deveriam aprender com o Japão.

Há algo especial em relação ao Japão?

Para o vice-primeiro-ministro, Taro Aso, a explicação tem a ver com a “qualidade superior” do povo japonês. Pelo menos é o que disse em um notório — e bastante criticado — comentário, ao ser perguntado por lideranças de outros países sobre o sucesso do Japão.

“Eu disse a essas pessoas: entre o seu e o nosso país, o mindo (nível das pessoas) é diferente. E isso os deixou quietos e sem palavras”.

Traduzido literalmente, mindo significa “o nível das pessoas”, embora alguns tenham traduzido como “nível cultural”.

É um conceito dos tempos do período imperial do Japão, que denota um senso de superioridade racial e chauvinismo cultural. Aso foi muito criticado por usar o termo.

Mas não restam dúvidas de que muitos japoneses, e alguns cientistas, pensam que há mesmo algo de diferente no Japão — um “fator X” que está protegendo a população contra a covid-19.

De fato, há alguns aspectos dos códigos sociais japoneses — com poucos beijos e abraços nos cumprimentos — que permitem que o distanciamento social seja praticado naturalmente. Mas ninguém parece achar que essa é a resposta.

O japonês tem imunidade especial?

Um professor da Universidade de Tóquio, Tatsuhiko Kodama, que estuda como pacientes japoneses reagiram ao vírus, acredita que o Japão já pode ter enfrentado uma doença como a covid-19 antes. Não exatamente a covid-19, mas algum tipo similar que pode ter deixado uma “imunidade histórica”.

Ele explica assim: quando um vírus entra no corpo humano, o sistema imunológico produz anticorpos que atacam o patógeno invasor. Há dois tipos de anticorpos: o IGM e o IGG. O tipo de resposta desses anticorpos pode mostrar se alguém já foi ou não exposto ao vírus antes, ou a algo similar.

“Em uma infecção viral, a resposta do IGM geralmente vem primeiro”, afirma. “O IGG aparece depois. Mas em casos secundários, (de exposição prévia), o linfócito já tem a memória e, assim, é apenas a resposta do IGG que cresce rapidamente.”

Então, o que aconteceu a esses pacientes?

“Quando nós olhamos para esses testes ficamos impressionados… Em todos os pacientes a resposta do IGG veio rapidamente, e a do IGM veio mais tarde e de maneira fraca. Parecia que eles haviam sido expostos a um vírus muito similar.”

O pesquisador considera ser possível que um vírus da família Sars já tenha circulado pela região antes, o que poderia explicar a taxa de mortalidade baixa, não apenas no Japão, mas também na China, Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e sudeste da Ásia.

Essa tese, no entanto, tem sido vista com certo ceticismo.

“Eu não tenho certeza sobre como um vírus como um esse poderia ficar restrito à Ásia”, afirma o professor Kenji Shibuya, diretor de saúde pública no King’s College em Londres e ex-conselheiro do governo.

O professor Shibuya não descarta a possibilidade de diferenças regionais ou susceptibilidade genética à covid. Mas ele suspeita da ideia de que um “fator X” explique a diferença de mortalidade.

Ele diz acreditar que países que se saíram bem na pandemia o fizeram pelo mesmo motivo — foram bem-sucedidos em reduzir drasticamente a transmissão.

Os japoneses começaram a usar máscaras há mais de 100 anos, durante a pandemia de gripe em 1919, e jamais pararam desde então. Se você tiver tosse ou um resfriado é esperado que você use máscara para proteger os outros ao seu redor.

“Eu acho que a máscara age como uma barreira física. Mas também serve como um lembrete para todo mundo ser cuidadoso. Que ainda temos que ser cuidadosos uns em relação aos outros”, afirma Keiji Fukuda, especialista em influenza e diretor da escola de saúde pública da Universidade de Hong Kong.

O sistema de rastreamento do Japão também existe desde os anos 1950, quando combateu um surto de tuberculose. O governo criou uma rede nacional de centros de saúde pública para identificar novas infecções e reportá-las ao ministério da Saúde. Se há suspeita de transmissão comunitária, um time de especialistas é deslocado para rastrear as infecções, baseado em contato humano meticuloso e isolamento.

O Japão aprendeu três lições rapidamente

O Japão também descobriu dois padrões significativos bem no começo da pandemia.

O médico Kazuaki Jindai, pesquisador na universidade de Kyoto, disse que os dados mostraram que mais de um terço das infecções se originaram de lugares muito similares.

“Nossos números mostraram que muitas pessoas infectadas haviam visitado casas noturnas e karaokês. Nós sabíamos que esses eram os locais que as pessoas precisavam evitar.”

A equipe identificou que “respiração forte e proximidade”, incluindo “cantar em salões de karaokê, festas, celebrar em clubes, conversar em bar e frequentar academias” como as atividades de maior risco.

Além disso, a equipe descobriu que a transmissão da infecção se restringiu a um percentual pequeno de pessoas que carregavam o vírus. Um estudo preliminar apontou que cerca de 80% das pessoas com Sars-Cov-2 não infectaram outras pessoas. Já os outros 20% eram altamente infecciosos.

Tais descobertas levaram o governo a lançar uma campanha nacional avisando a população para evitar três coisas:

  • lugares fechados com pouca ventilação
  • lugares lotados com muita gente
  • contato próximo em conversas

“Eu acho que isso provavelmente funcionou melhor do que apenas dizer para as pessoas ficarem em casa”, diz Jindai.

Embora os escritórios tenham ficado fora da lista, a expectativa era de que campanha chamada de “três Cs” no Japão reduziria a transmissão o suficiente para evitar um lockdown — e menos infecções significam menos mortes.

Por um tempo, isso funcionou. Mas, em meados de março, as infecções aumentaram em Tóquio e a cidade parecia caminhar para o crescimento exponencial, como Milão, Londres e Nova York.

Nesse momento, o Japão ou teve sorte ou fez algo muito esperto — ainda não sabemos ao certo.

Questão de timing

Kenji Shibuya afirma que as lições do Japão não são tão diferentes de outros lugares: “Para mim, foi tudo uma questão de timing”.

O primeiro-ministro, Shinzo Abe, decretou um estado de emergência não obrigatório em 7 de abril, pedindo às pessoas que ficassem em casa “se possível”.

“Se tais medidas fossem adiadas, poderíamos ter vivido situação parecida com Nova York ou Londres. Mas a taxa de mortalidade está baixa (no Japão).”

“Mas um estudo recente da Universidade de Columbia sugere que se Nova York tivesse implementado o lockdown duas semanas antes teria prevenido milhares de mortes”, diz o professor.

Um relatório recente do centro de prevenção e controle dos Estados Unidos apontou que pessoas com comorbidades — como doenças cardíacas, obesidade e diabetes — têm seis vezes mais chances de ser hospitalizadas se pegarem covid-19 e 12 vezes mais chances de morrer.

O Japão tem as taxas mais baixas de doenças do coração e obesidade no mundo desenvolvido. Ainda assim, os cientistas insistem que esses sinais vitais não explicam tudo.

“Esse tipo de diferença física pode ter algum efeito, mas eu acho que outras áreas são mais importantes. Nós aprendemos com a covid que não há explicação simples para nenhum fenômeno que estamos vendo. Há muitos fatores contribuindo para o resultado final”, diz Fukuda.

Governo pediu, povo escutou

Mas, afinal, há alguma lição a ser aprendida como o modelo japonês?

O fato de o Japão ter sido, até agora, bem-sucedido em manter as infecções e mortes em baixa, sem confinar ou ordenar as pessoas que fiquem em casa, indica algo sobre o futuro? A resposta é sim e não.

Não há “fator X”, como se tudo dependesse de apenas uma mesma coisa, quebrando a cadeia de transmissão. No Japão, no entanto, o governo conta com a ampla colaboração da população.

Apesar de não ter ordenado que a população ficasse em casa como um todo, eles ficaram.

“Foi sorte, mas também surpreendente”, diz o professor Shibuya . “Os lockdowns suaves do Japão tiveram um efeito de um lockdown real. Os japoneses colaboraram apesar da falta de medidas draconianas.”

“Como você reduz o contato entre pessoas infectadas e não infectadas? Você precisa de uma certa resposta da população, o que não acho que pode ser facilmente replicado em outros países”, diz Fukuda.

O governo pediu para as pessoas se cuidarem, evitarem lugares lotados, usar máscaras e lavar as mãos, e, de maneira geral e ampla, foi exatamente isso que a maioria das pessoas fez.

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