Coragem! A Carol Solberg. Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Foto: FIVB

Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Qualquer civilização cabe nos abismos da história. Digito essa frase apocalíptica e paro, um pouco constrangido. Brasileiro, verdade seja dita, não tende à generalização. Nossa contribuição à filosofia da história, e à filosofia em geral, é próxima de zero. Portanto, é o destino da civilização brasileira que nos angustia. Agora mais do que nunca. Estamos sem reservas espirituais, sobrecarregados com desafios e problemas próprios. As outras civilizações que cuidem de si mesmas.

Há 30 anos, Celso Furtado lamentava a “construção interrompida” do país – título de um livro que ele publicou em 1993. A crise da dívida externa dos anos 1980 interrompera a trajetória de crescimento da economia brasileira, marcando o início de uma longa fase de semiestagnação da qual não logramos ainda sair. Mas, hoje, no início da terceira década do século 21, o desafio é muito maior – trata-se de interromper a destruição. A destruição da economia, do Estado, do potencial de desenvolvimento, da cultura, das políticas sociais, da Amazônia, do Pantanal e da própria nação brasileira. Estamos sob ataque cerrado em múltiplas frentes.

A destruição do Brasil e da civilização brasileira seria uma perda irreparável. Para o mundo inteiro. Mesmo que o brasileiro nem sempre se dê conta disso. E, ao contrário, faça da depreciação do país um dos seus esportes favoritos.

Acabei de fazer a conta – vivi quase um 1/3 da minha vida fora do país. Tenho em relação ao Brasil o distanciamento mínimo que é talvez indispensável ao afeto e ao conhecimento. Na distância, adquiri a capacidade de estabelecer, com base em vivências, comparações e contrastes com outros países.

Escorado então nessa longa vivência, declaro, de fronte erguida – até os nossos defeitos têm o seu lado positivo. Por exemplo, a nossa desordem. Muitos estrangeiros ou brasileiros estrangeirados notam, com desânimo ou desprezo, que a disciplina não é o forte do brasileiro. Ora, ora, pode-se dizer, com tão ou mais razão, que a indisciplina é o forte do brasileiro. Indisciplina, improvisação, liberdade, criatividade – tudo isso se liga, ainda que com sofrimentos, tumultos, injustiças. Nossa bandeira bem que poderia carregar “desordem e progresso” como lema – a desordem e o desequilíbrio que impulsionam o progresso e o desenvolvimento. O lema positivista “ordem e progresso” é um oxímoro. E a desordem, além do mais, é um ingrediente indispensável do charme brasileiro.

Deve-se, talvez, abrir uma exceção para o paulista, que não chega, porém, a ser propriamente brasileiro. Mas não vamos exagerar – digamos que o paulista é um brasileiro muito peculiar. Não fossem as migrações internas do século 20, São Paulo nos pareceria provavelmente um outro país. A principal universidade do Estado, a USP, dá, às vezes, a impressão de situar-se não no Brasil, mas em algum departamento francês de ultramar, como notou ironicamente o filósofo uspiano Paulo Arantes em livro publicado nos anos 1990.

Deixo o paulista de lado e volto a tratar do brasileiro. Bem que sei que há os sustentam que pouco ou nada se deve esperar das nações jovens e emergentes, como a nossa. Elas teriam, supõe-se, todos os defeitos das nações antigas – e mais esse: a imaturidade.

Mas não seria o Brasil uma exceção? “Brasil, coração do mundo”? “Brasil, um país do futuro?” Títulos de obras de Chico Xavier e Stefan Zweig, respectivamente. Dois sonhadores, que acreditavam ter encontrado em nosso país algo de diferente e promissor.

Os tempos sombrios que atravessamos dificultam muito a percepção das nossas qualidades. Poucos imaginariam, mesmo aqueles que não nos tinham em grande conta, que o Brasil entraria em tal decadência e desceria a níveis tão baixos.

Mas, enfim, não é próprio das grandes nações passar por grandes provações? A China passou pelo seu século de humilhação. A França, por 1940 e Vichy. A Alemanha, pelo nazismo e a derrota na Segunda Guerra. Os Estados Unidos, pela guerra civil. A Rússia, pelas invasões napoleônica e hitlerista e por Boris Yeltsin. Todas elas se reergueram para continuar imprimindo a sua marca original ao caminho da humanidade.

A Rússia de Yeltsin é um exemplo recente e instrutivo de como um grande país, quando caí nas mãos de um governo ignorante e subserviente, pode ficar reduzido a situação de inacreditável dependência. A Rússia na década de 1990 rastejava, literalmente rastejava. Mas reergueu-se sob Vladimir Putin, reorganizou a sua economia e o seu Estado nacional e voltou a desempenhar papel-chave no mundo. O Brasil terá de passar por processo semelhante de reorganização e reconstrução.

Brasil, coração do mundo. Brasil, um país do futuro. Formas diferentes de expressar a visão de que o Brasil por sua história, sua cultura, sua dimensão, sua diversidade, está destinado a desempenhar papel único no mundo. Um papel que passa antes pelo sentimento, pela alegria, pelo coração do que pela lógica e pela razão. Como deve ser, uma vez que lógica também nunca foi nosso forte. O brasileiro não tem, nunca teve o menor respeito pela coerência, pelo sistemático. Ou antes: tem, sim, o respeito que se exige dos humildes, mas passa longe da adesão e da verdadeira reverência. E, se pudesse, trataria a lógica e os lógicos aos pontapés.

Mas estou resvalando para a caricatura. Eis o que queria ressaltar: o Brasil tem uma vantagem imensa em comparação com a grande maioria dos países – a extrema diversidade como princípio constitutivo. É quase como se reunisse todas as principais nações dentro de si, dentro da sua formação. Um país inerentemente global, portanto. E, enquanto tal, posicionado para dar uma contribuição singular à civilização mundial. A nossa diversidade original e, em seguida, a tendência à mistura, à miscigenação, ao ecletismo, ao sincretismo criaram um capital original inesgotável, um poço sem fundo de valores, perspectivas e imaginação.

Coragem!

***

Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista “Carta Capital” em 16 de outubro de 2020.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.

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