Contra Lula e Bolsonaro, a velha direita tenta se manter como centro

Por André Barrocal.

O establishment político e econômico, reino da velha direita brasileira, curtiu as festas de fim de ano na boa vida, como em geral são os dias desses endinheirados, mas começa 2018 ressabiado. Nenhum de seus cavalinhos no páreo para concorrer à Presidência empolga a massa até agora, motivo de umas caneladas entre uns e outros.

Geraldo Alckmin, Rodrigo Maia, Henrique Meirelles, todos veem de binóculo o líder nas pesquisas, Lula. Pior: comem poeira também do reacionário Jair Bolsonaro, grande beneficiário do radicalismo cultivado pelo próprio establishment na cruzada antipetista. Fruto dessa cruzada, o governo é outro abacaxi. Detestado pelo povão, Michel Temer tornou-se uma erva daninha eleitoral. Ficar perto dele é desastroso, mas como esconder as ligações?

Em maus bocados, a chamada (erradamente) direita resolveu apelar para o humor. Não importam suas credenciais históricas, seu currículo: agora quer ser chamada de “centro”. É nesse traje que pretende se apresentar aos 144 milhões de eleitores e convencê-los de ser a melhor escolha diante de uma dupla de “extremistas”, Lula pela esquerda, Bolsonaro pela direita.

Plano digno das páginas de 1984, do britânico George Orwell. “Só no reino do Grande Irmão as palavras têm o significado oposto ao comum, mas o objetivo desta alteração é o de enganar os destinatários da mensagem e, portanto, o de impossibilitar a compreensão do que ocorre realmente e a comunicação recíproca entre os súditos”, diz o livro Direita e Esquerda, clássico de 1994 do filósofo e historiador italiano Norberto Bobbio, já morto.

Gráfico

A exploração do centrismo, escreve Bobbio, costuma ser mais comum em tempos de crise. É o caso do establishment, vitorioso na chegada ao poder via impeachment e, após tanto esforço, arriscado a levar uma surra nas urnas.

O plano de partir para a novilíngua orwelliana pode ser o passaporte para o segundo turno na eleição. O centro representa hoje 20% do eleitorado, proporção igual à da eleição de 2014, segundo uma pesquisa Datafolha de 2017.

O levantamento apresentou a 2.771 entrevistados um questionário com perguntas sobre economia e costumes, e as respostas foram catalogadas conforme critérios do instituto. Por esses critérios, da última campanha para cá, esquerda e centro-esquerda encorparam (de 35% para 41%), enquanto direita e centro-direita encolheram (de 45% para 40%).

Quando se pediu às pessoas uma autodefinição ideológica, o resultado mudou. O centro tem 26% de adeptos, a direita, 32%, e a esquerda, 28%.

O avanço do progressismo desde a última eleição deve-se a assuntos econômicos. Se dependesse somente de temas comportamentais, o conservadorismo deitava e rolava. A liberação da maconha é rejeitada por 66%, informa o Datafolha. A do aborto, por 57%, mesmo tamanho do apoio à pena de morte. 

De outro lado, 70% repudiam as privatizações, 76% acham que o governo deve ser o maior responsável por investir e fazer o PIB crescer, 63% defendem ajuda oficial a empresas nacionais à beira da falência. 

Estatísticas à parte, os postulantes a presidenciável “centrista” estão em campo e na luta. Alckmin assumiu o comando do PSDB no fim de 2017 para pavimentar sua candidatura, mas entrou em 2018 sob pressão. Sua situação nas pesquisas aflige alguns tucanos e partidos governistas dispostos a negociar apoio. Não alcança dois dígitos em nenhuma, apesar de administrar há anos o maior colégio eleitoral do País, berço de 20% dos votantes.

Aliados potenciais cobram que chegue a 10% no máximo até abril. Do contrário, adeus. Fernando Henrique Cardoso é um dos aflitos e trocou alfinetadas públicas com Alckmin ao opinar que os cavalos do centro (Meirelles, Marina Silva e Joaquim Barbosa seriam outros, para FHC) deveriam unir-se em uma única candidatura. E nem precisa ser em torno de Alckmin. “Se as forças não extremadas se engalfinharem para ver quem entre vários será o novo líder e não forem capazes de criar consensos em favor do País e do povo, o pior acontecerá.”

O governador tenta não mostrar preocupação com números. Acha que o povo só vai pensar em eleição mais para o meio do ano. Ele “recordou” a FHC de que foi por incentivo dele que se tornou comandante do PSDB há pouco. “O que o presidente Fernando Henrique falou e eu concordo é que o Brasil está cansado de divisão e nós precisamos ter união para retomar uma agenda de reformas, competitividade e desenvolvimento”, disse numa entrevista.

Eis a visão de Alckmin sobre o papel do centro. Parece sonhar em ser uma opção ao menos palatável ao eleitor que pode ficar órfão de Lula, sobretudo os mais pobres, daí ter criticado outro dia o laissez-faire, “porque é o grande comer o pequeno”. Mas será que seu corpinho cabe na roupagem centrista? Humm… 

Para chefiar seu programa econômico, Alckmin escolheu um banqueiro, Pérsio Arida, um dos pais do Plano Real. O governador foi (é?) do Opus Dei, ala reacionária do catolicismo. Perfeito seu apelido de “Santo” entre os corruptores confessos da Odebrecht, não?

Em 2013 e 2014, teve como secretário particular um sujeito, Ricardo Salles, que elogiava a ditadura e chamava a Comissão da Verdade de “comissão da vingança”. Salles fundou o movimento Endireita Brasil, aliás.

Na segurança pública, Alckmin é adepto da porrada. Nomeou secretários trogloditas, caso de Saulo de Castro Abreu, e coleciona assassinatos por policiais em um patamar que a Anistia Internacional considera “escandaloso”. De janeiro e setembro de 2017, foram 687 mortos, um recorde.

A reforma da Previdência, intenção de impor uma idade mínima à aposentadoria de brasileiros que trabalham desde cedo para ajudar em casa, é defendida por ele. A trabalhista, facilitadora do emprego precário e da redução da renda, um animado Alckmin tachou de “histórica”.

No PSDB, o presidente da França, Emmanuel Macron, costuma ser citado como muso inspirador do que seria um desejável centro. FHC acha isso. Líder de um movimento de renovação política, Macron é lobo direitista em pele de cordeiro centrista, igual a seus admiradores daqui. Pareceu moderado na campanha somente por ter enfrentado a fascista Marine Le Pen no turno final e precisar do voto da esquerda.

Um dia após assumir, em maio de 2017, pinçou seu premier nas fileiras do partido da direita tradicional. No mês seguinte, propôs uma lei antiterrorismo a estabelecer quase um estado de sítio permanente, situação adotada em caráter provisório depois dos ataques terroristas em Paris em 2015. Em agosto, apresentou uma reforma trabalhista ainda mais radical do que a do antecessor, o socialista François Hollande.

O tema trabalhista é um assunto adorado por um competidor do “centro” brasileiro, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM. Para ele, a Justiça do Trabalho “não deveria nem existir” e os direitos da finada CLT atrapalham os patrões. Opiniões compreensíveis.

O deputado é um amante do “mercado”, essa entidade etérea a juntar bancos, fundos, corretoras, e não se envergonha de declarar seu amor. “A agenda da Câmara é a do ‘mercado’”, disse uma vez. Começou a carreira privada em um banco, o BMG, depois passou por outro, o Icatu.

Hoje reúne-se às vezes a portas fechadas em instituições financeiras, caso do BTG. Em 2014, recebeu 600 mil reais em grana de banco para sua campanha, 25% de sua arrecadação total. 

O ano novo de “Botafogo”, alcunha de Maia entre os subornadores da Odebrecht, anda a toda. Ele distribui entrevistas e planeja viagens para os Estados Unidos e México em um esforço para emplacar sua candidatura.

Em uma das entrevistas, ao Globo da terça-feira 9, deu uma pista de como a velha direita, ôps!, o “neocentro” pretende distinguir-se de Bolsonaro. Este, afirmou, teria “um discurso mais radicalizado na questão dos valores e da segurança”.

Ou seja, nada de defender posições xenófobas, racistas ou machistas. Claro. Não seria fácil buscar distinguir-se do capitão do Exército em matéria econômica agora que Bolsonaro deu para beber da fonte do sistema financeiro.

A tentativa da direita de usar questões comportamentais para parecer moderada perante o eleitor lembra um fenômeno apontado pela professora de filosofia e política Nancy Frasier, da universidade nova-iorquina New School for Social Research, em uma análise da última eleição presidencial nos EUA.

“A vitória de (Donald) Trump não é unicamente uma revolta contra a finança global”, escreveu ela em janeiro de 2017. “O que seus eleitores rejeitaram não foi apenas o neoliberalismo, mas o neoliberalismo progressista.” Este último seria uma aliança malandra em que o neoliberalismo econômico, representado pela alta finança, utilizou o “carisma” de correntes de movimentos tradicionais defensores de causas feministas e raciais, por exemplo, para tornar-se palatável ao eleitor.

E o que o sistema financeiro envernizado pelo progressismo deu em troca? “Políticas vistosas que devastaram a manufatura e ameaçam a classe média”, diz Nancy, a ver no ex-presidente Bill Clinton (1993-2000) o grande símbolo do neoliberalismo progressista nos EUA.

Ao Globo, Maia comentou o que para ele seria o tal centro no Brasil. “Não é um ponto entre direita e esquerda, ou seja, um meio do caminho entre o Bolsonaro e o Lula. O centro tem que representar um ponto em que se tenha um espaço de diálogo com todas as correntes e que represente essa capacidade de transformação que o Brasil precisa.”

A julgar por estas palavras, vai pela cabeça do deputado um dos dois tipos de centro descritos por Bobbio em Direita e Esquerda, o “inclusivo”. Este tenta se situar entre esquerda e direita, a formar uma “tríade”. Já o do tipo “incluído” procura anular os dois polos ao incorporar parte deles em uma “síntese superior”.

Contudo, escreve o filósofo, “enquanto existirem conflitos (nas sociedades), a visão dicotômica (direita-esquerda) não poderá desaparecer”. O principal conflito se daria quanto à ideia de igualdade. Para a esquerda, a distância entre ricos e pobres deve ser combatida, todo mundo tem direito a uma vida digna. Para a direita, deve ser deixada em paz, é um fato da natureza, as pessoas que se virem sozinhas.

Desigualdade é um vocábulo que entrou de uns tempos para cá na gramática do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, do PSD, outro a almejar o poder. Dia desses, ele comentou no Twitter existir um estudo da FGV revelador de queda recente na disparidade entre ricos e pobres, a primeira desde 2014. Puro humorismo, ele sair-se com essa.

Sua política econômica causa o inverso. Quem diz é o FMI, dono de credenciais em nada “extremistas”. No estudo “Neoliberalismo: superestimado?”, de junho de 2016, três economistas do Fundo Monetário Internacional afirmam que a austeridade fiscal aumenta a distância de renda. Com Meirelles na Fazenda, abundam cortes de gastos.

É, mas quando se acalentam desejos de poder, vale tudo. Meirelles cultiva um romance com a igreja evangélica desde 2017. Viajou a Belém para os 106 anos da Assembleia de Deus no Brasil, foi à convenção geral da mesma Assembleia e ao aniversário do presidente vitalício da convenção, bispo Manoel Ferreira.

No último dia 5, baixou na igreja Sara Nossa Terra em Brasília, onde anunciou boas-novas econômicas e pregou reformas. Em um vídeo enviado a evangélicos do Rio em agosto, disse: “Eu me sinto muito à vontade para conversar com vocês, porque nós temos os mesmos valores, que são valores da lei de Deus e dos homens visando crescer, visando colaborar com o País”. Mesmos valores, é?

Meirelles é casado com uma psiquiatra filha de alemães e, em Brasília e no “mercado”, não falta quem garanta ser um matrimônio de fachada, motivado por, digamos, certas preferências do ministro na hora da diversão.

E guardar dinheiro em paraíso fiscal, seria um valor dos crentes? Meirelles tem uma offshore nas Bahamas, a “The sabedoria trust”, revelada em novembro no escândalo Paradise Papers. Será que manteve também em paraíso fiscal uma bolada de 167 milhões de reais recebida no exterior, em 2017, por serviços privados prestados em 2016? Ao dar guarida a milionários que não querem pagar impostos, ou querem pagar pouquinho, paraíso fiscal provoca desigualdade, diz uma ONG britânica, a Oxfam.

O ministro talvez seja o único pretenso presidenciável centrista capaz de não negar Temer três vezes. Não pode se envergonhar, pois sua ambição se ancora na presença na Fazenda e na hipótese de volta do crescimento econômico.

O governo é tóxico, não há condições de um postulante apoiado pelo presidente triunfar, conforme uma pesquisa qualitativa feita em dezembro com pessoas das classes C e D de São Paulo e Recife. Para os entrevistados no levantamento da Ideia Big Data encomendado pelo jornal Valor, Temer não pensa nos pobres, é corrupto e tomador de medidas impopulares. Um indesejável cabo eleitoral. Distanciar-se dele vai exigir um bocado de ginástica de Rodrigo Maia, que anda em guerra fria com Meirelles, e o PSDB. Mas a novilíngua está aí para isso.

A propósito, a aparição do global Luciano Huck no programa do Faustão do domingo 7 e seus comentários políticos causaram dúvida no “neocentro”. O apresentador estará no jogo sucessório? A entrevista foi gravada antes de Huck anunciar que não será candidato. Não estará mesmo?

Fonte: CartaCapital

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