Contestado, 100 Anos em Guerra: As batalhas Seguem – A Luta Pelo Patrimônio e Espaços de Memória

Esse artigo reflete ao discurso pronunciado na Câmara Municipal de Irani, SC, nos 103 anos do início da Guerra do Contestado, no dia 24 de outubro de 2015.

Por Nilson Fraga.*

A Questão do Contestado (limites interestaduais) e a Guerra do Contestado são confundidas como uma coisa só. Mas isso é uma falha, pois a primeira envolveu todo o território planaltino, do Meio-Oeste e do Oeste Catarinense, até a fronteira com a Argentina; já a segunda, a Guerra Civil Camponesa, envolveu os planaltos e o Meio-Oeste Catarinense e a região Sul-Sudeste do Paraná. Estas contendas são seculares estando, inclusive, no processo de formação territorial do Brasil Meridional, além de estabelecer os limites político-jurídicos dos Estados de Santa Catarina e do Paraná.

A Guerra do Contestado é um episódio complexo, pois é alimentado por vários fatores que se entrelaçam, sejam de ordem social, política, econômica, ambiental, cultural e (ou) religiosa.

A Guerra do Contestado em si pode ser temporalizada a partir do Combate do Irani, ocorrido em outubro de 1912, envolvendo a maior parte do Exército Brasileiro, além das polícias (corpos de segurança) do Paraná e de Santa Catarina, acrescidos pelos jagunços (mercenários) contratados pelos coronéis daquela época para perseguir e matar os caboclos, sendo que a grande atuação dessas forças se deu até abril de 1915, quando a resistência cabocla é destroçada nos diversos dias de combates no Vale de Santa Maria, em Timbó Grande e, a partir daí, até o acordo de outubro de 1916, que colocou fim na questão de limites, em que se tem um processo de limpeza regional para o processo de (re)colonização pós-guerra civil. Esse processo final se estende, ainda, ao longo dos meses de 1917, promovendo, sobretudo na região planaltina do Contestado, a continuação do genocídio, por meio da tentativa de eliminação total dos caboclos da Serra Acima Catarinense.

Não se abre mão de explicar um pouco mais sobre o Contestado para além dos dados sistematizados pelos escritores desse acontecimento marcante na história republicana. Ao longo dos anos, se tem ido à busca da ótica dos que foram dominados e sobreviveram ao genocídio e que ainda pagam um preço alto pela ousadia dos seus antepassados, tomando como ponto de partida as representações de indivíduos integrantes de uma população específica, isto é, os habitantes da região onde a guerra civil ocorreu, sobremaneira nos municípios catarinenses que ainda resguardam fragmentos memoriais, materiais e imateriais daquele período e que atuam na luta pela preservação das suas relíquias da guerra e da cultura secular regional, além de monumentos erigidos em torno de acontecimentos significativos para o conflito e dos sítios históricos existentes no território – o Contestado, com tudo que ele é e representa; está lá, no chão do Contestado, impossível tentar entendê-lo, sem ir, pisar e sentir o mundo vivido caboclo, isso do antes, do durante e do depois da guerra.

A região do Contestado vive historicamente as complexidades e os paradoxos mostrados até aqui. Qualquer proposta que venha ser elaborada no futuro, para romper o subdesenvolvimento regional (a região é uma das que possui os mais baixos índices sociais catarinenses e brasileiros), necessita considerar os fatores da sua identidade cultural, dando razão e manutenção à sua existência no conjunto da União Nacional.

Reforça-se o fato de que o conflito em questão foi, na verdade, uma guerra civil, travada em território disputado entre o Paraná e Santa Catarina. O mesmo, uma vasta superfície, ainda não tinha sido demarcado oficialmente no início do século XX, fato que ocasionou a Questão dos Limites, ou seja, o conjunto de disputas políticas e judiciais intensificadas, entre os dois Estados, durante os anos de 1891 a 1916 – a guerra judicial pelas terras ricas em campos, ervais e madeiras, no atual planalto Norte, Meio-Oeste e Oeste Catarinense, que já haviam sido disputadas por Portugal e Espanha, por Santa Catarina e São Paulo e, por fim, entre os dois primeiramente citados.

Entre os atores sociais envolvidos, combateram, de um lado, os coronéis e seus capangas (jagunços contratados para matar), aliados às forças do governo federal republicano, às tropas militares estaduais e à milícia de um grupo estadunidense; e do outro, a população sertaneja, os caboclos ditos isolados, desassistidos e espoliados que encontraram na religiosidade uma poderosa arma para lutar e morrer pela terra, revelando, assim, as injustiças sociais, bem como o projeto de exclusão característico da República Velha.

Nos últimos anos, diferentes estudos sobre o Contestado, elaborados a partir de diversas abordagens, apontam para uma mesma direção: o movimento social do Contestado possui uma dimensão complexa e singular, uma vez que não houve um único fator desencadeador, tendo seu processo de gestação, desenvolvimento e concretização ocorrido em meio a uma série de motivações de caráter social, político, econômico, religioso, ambiental e cultural, não podendo, portanto, o mesmo ser reduzido a compartimentos para efeito de análise e debate – o Contestado é grandioso demais para ser resumido em uma frase ou por um ou outro estudioso.

A Guerra do Contestado tem, ainda, pouca visibilidade, sem possuir muitos e adequados espaços como museus dedicados a contarem a história do Contestado na maioria dos municípios envolvidos, salvo alguns habitantes que guardam nas suas residências farto material histórico, além do rico acervo do Museu do Contestado, em Caçador.

Contudo, deve-se, também, reconhecer o papel dos autores e de agentes da sociedade que vêm trabalhando com o resguardo da memória histórica regional, que buscam dar luz a esta história, reconhecendo a sua importância e quebrando, aos poucos, o silêncio que cerca os fatos que ocorreram no passado.

O valioso patrimônio do Contestado encontra-se abandonado no espaço e no tempo, necessitando ser resguardado, recuperado e posto à mostra da população e dos visitantes – essa situação faz o Contestado em Guerra, pois as batalhas agora são, também, pela salvaguarda patrimonial regional. Há que se ponderar que a palavra patrimônio possui vários significados, mas há que se considerar como conjunto de bens que uma pessoa ou entidade possui, sendo classificado como bens materiais (tangíveis), imateriais (intangíveis), móveis e imóveis que fazem parte da formação cultural de uma comunidade, ou comunidades, ou, ainda, de um povo, enquanto cultura é algum tipo de revelação que venha a enlaçar, conectar, convivência em coletividade, incluindo qualquer tipo de invenção de objeto, ou de ambiente de permanecer convivendo em sociedade, é uma ação cultural estrito senso.

            A cultura é transmissível pela herança social, compreende a totalidade das criações humanas, sendo uma característica exclusiva das sociedades humanas; é um todo intricado que abrange conhecimento, fé, arte, moral, direito, atitude e outras aptidões e tradições adquiridos pela pessoa como componente da sociedade – a herança comum e o patrimônio como mediador entre passado e presente, servindo como âncora do espólio cultural, do pensar, do agir e do sentir do ser humano.

Dessa forma, preocupado com o estado e a situação da conservação dos acervos documentais pessoais e públicos, sítios históricos de memória, em espaços públicos e particulares, patrimônio material e imaterial e das populações remanescentes da região e da Guerra do Contestado, há que se fazer um alerta para a sociedade civil contestadense, catarinense e brasileira e proclamar as autoridades e os poderes públicos, Executivos, Legislativos, Judiciários, nas escalas municipais, estaduais e da União, incluindo os órgãos públicos de defesa e atuação sobre o patrimônio material e imaterial, assim como os Ministérios Públicos Estadual e Federal, mas há que se alertar para outras demandas socioeconômicas e ambientais regionais que, de certa forma, precedem e justificam o abandono do patrimônio do Contestado, já mencionados na Carta do Timbó Grande, de abril de 2015, para:

  1. a) iminente implantação de políticas públicas advindas das três esferas federativas, na área de saúde, educação, mobilidade e terra (o bem máximo marcante da Guerra dos antepassados do Contestado), para a população remanescente da Guerra do Contestado, como forma de pagamento de dívida histórica aos cidadãos e cidadãs que, por mais de um século, vêm se mantendo no limite dos benefícios da sociedade contestadense, catarinense e brasileira, argumentando que as localidades e núcleos populacionais dos progênitos da Guerra do Contestado na Serra Acima Catarinense, na sua maioria, apresentam os mais baixos índices de desenvolvimento humano do Brasil Meridional – isso considerando os dados e as avaliações dos órgãos oficiais;
  2. b) a improrrogável salvaguarda dos locais de memória patrimonial material e imaterial, além de políticas públicas de convivência das populações tradicionais com as sociedades contemporâneas que os envolvem;
  3. c) resguardo público, nas três esferas da federação, dos locais sagrados da fé cabocla e contemporânea, sobremaneira dos locais frequentados pelos fiéis devotos das tradições de São João Maria, no Contestado e nos demais espaços sagrados do Monge do Povo do Contestado em Santa Catarina, no Paraná, no Rio Grande do Sul, assim como noutros locais de devoção do Monge do Contestado, no Brasil – incluindo as águas santas, as grutas, as capelas, as ermidas, os pousos, os cruzeiros etc.;
  4. d) tutela estatal, nas três esferas da federação, dos sítios dos antigos redutos, das guardas, dos cemitérios; dos locais de combates, dos monumentos, dos locais de cultos e venerações etc.;
  5. e) resguardo institucional, regeneração e sustentação dos locais de visitação, cultos, convivência, fé e pesquisa científica no território do Contestado;
  6. f) inexorável localização, preservação, conservação, guarda e colocação à disposição dos pesquisadores, os acervos existentes nos municípios, nos Estados e no Governo Federal, tanto de ordem pública quanto privada – incluindo, documentos, imagens, prosas, poesias, orações, partituras, pinturas, esculturas, adereços, objetos museológicos, depoimentos orais, peças de teatro, audiovisuais, principalmente os que possuem ligação com a Guerra do Contestado e, mais extensivamente, sobre o modo de vida regional, a sociedade, a cultura e o comportamento dos habitantes planaltinos do Sul do Brasil;
  7. g) de imediato e urgente, a criação de um museu histórico estadual nos moldes e técnicas do Museu Histórico de Santa Catarina, em tamanho e densidade, para salvaguardar o patrimônio histórico material e imaterial da Guerra do Contestado;
  8. h) políticas públicas emergenciais na infraestrutura regional – energia, água, transporte, saúde, educação, cultura etc. para os municípios que apresentam as maiores mazelas infraestruturais e sociais da Região da Guerra do Contestado, sendo eles: Timbó Grande, Matos Costa, Calmon, Santa Cecília, Bela Vista do Toldo, Lebon Régis, Monte Castelo e Major Vieira; e para os que já possuem relativas infraestruturas, sendo eles: Irani, Caçador, Joaçaba, Videira, Curitibanos, Canoinhas, Porto União etc.

Mesmo considerando todas as demandas sociais, ambientais, econômicas e culturais da Região do Contestado, há, desde os anos de 1980, algumas políticas públicas pontuais sendo desenvolvidas regionalmente, a maioria delas, fruto do esforço de algumas comunidades, assim como de indivíduos e, outras, por intermédio do Estado Barriga Verde.

            Mas apenas a partir de 1986, o Estado de Santa Catarina reconhece e valoriza alguns palcos da Guerra e do mundo de resistência cabocla do Contestado, por meio da construção de vinte monumentos em espaços significantes ao contexto desse conflito, instalados nos municípios de Fraiburgo, Lebon Régis, Caçador, Irani, Curitibanos, Porto União, Calmon, Matos Costa, Canoinhas, Rio das Antas, Mafra, Santa Cecília, Irineópolis e Timbó Grande, bem como museus e memoriais, tendo como referência o Museu do Contestado, em Caçador, com importante acervo da Ferrovia do Contestado, da Guerra, dos pioneiros de Caçador e do Alto Vale do Rio do Peixe e da cultura indígena regional. A principal política pública dessa época, denominada de Projeto de Resgate da Memória do Contestado, contou com numerosos colaboradores de diversos matizes, olhares e leituras sobre o mundo do Contestado, cujas compreensões nem sempre convergiam para uma análise regional mais coesa, sobretudo por envolver historiadores, antropólogos, escritores, jornalistas, fotógrafos, escultores, arquitetos, pintores, dramaturgos, cineastas, músicos, etc. gerando uma leitura regional pouco homogênea, principalmente nos lugares de memórias contestadenses, termo que cunhei faz alguns anos, para designar todo aquele povo, que não permitem uma avaliação equilibrada dos fatos e atos da Guerra ocorrida na região, fazendo com que o Contestado seja algo confuso para o visitante nos muitos municípios que participaram da guerra, perpetrando isso em alguns lugares, de que o Contestado seja algo sem sentido, pois no filtramento da história regional depositada em alguns museus, o mundo caboclo é praticamente eliminado, e o mundo vivido em algumas comunidades tenha se dado a partir da chegada dos colonos europeus, isso, principalmente, depois da Guerra. Em muitos museus, para não dizer a maioria dos das regiões do Meio-Oeste e Planalto Norte Catarinense, são as vozes caboclas do Contestado eliminando, mais ainda, seus redutos e sua resistência, pois deviam considerar o direito dos seus descendentes e a memória dos seus antepassados.

Isso se deve ao fato de que a cultura nacional é pouco voltada para o recobramento da história, mas, ao mesmo tempo, com toda a produção cultural construída sobre o Contestado desde os anos de 1980, não se pode permanecer no ignorar dos fatos e atos que marcaram a Guerra do Contestado, isso devido à sagacidade das suas causas, pelas ações e reações conseguidas pelos caboclos em guerra, mas, ainda, pela violência desproporcional impetrada pelas forças legais e, ao final, pelo crime de genocídio sobre o mundo caboclo. Tudo isso tornam mais ricas as experiências e as revelações culturais, mas que correm o risco de desaparecer completamente da memória, caso os lugares dessas memórias passem por uma desterritorialização extrema.

No ano de 1990, foi criada a Universidade do Contestado (UnC), pela associação das antigas fundações educacionais mantenedoras de faculdades em Caçador, Mafra, Canoinhas, Concórdia e Curitibanos. Nela, a cadeira de História do Contestado é obrigatória em todos os cursos como forma de empenhar a história da região fazendo com que os novos habitantes do Planalto Norte e Meio-Oeste Catarinense encontrem ou reencontrem sua identidade, por intermédio da análise, reflexão e discussão referente à história do Contestado e, consequentemente, regional – na primeira década do século XX ocorreu a cisão do Campus de Caçador da UnC, mas mantendo os outros quatro municípios, acrescidos aos de Porto União e Rio Negrinho à Universidade, cuja reitoria se encontra atualmente em Mafra.

Em 1991, o Governo Federal reconhece um grupo remanescente da região da Guerra do Contestado, assentando-os no Vale do Itajaí, região onde se encontram algumas das terras menos produtivas do Estado de Santa Catarina, nas encostas da Serra Geral, no município de José Boiteux. Assim, mais de 150 famílias conhecidas regionalmente como os “Cafuzos do Rio Leiz” são assentados pela Reforma Agrária e, apesar de estarem na base de uma encosta, tinham um sentimento de satisfação por terem garantido, finalmente, a posse da terra, motivo pelo qual lutaram e morreram seus ascendentes – isso quando lá se esteve, em 1997.

Porém, dentre as escassas políticas públicas para o Contestado, somente no século XXI, houve o reconhecimento final do povo do Contestado – tendo a bandeira, estandarte branco com uma cruz verde ao centro, significando a fé cabocla e a busca por um mundo de paz, como símbolo de Santa Catarina (Lei nº 12.060, de 18/09/2001), e o povo caboclo como símbolo do catarinense, na forma da lei, instituída pela Semana do Contestado (Lei nº 12.143, de 05/04/2002), entre outras realizações que constituem as políticas culturais, para a região. Mas essas políticas públicas na escala municipal surgem na defesa de que a cultura sertaneja ainda continua viva em parte considerável do território catarinense e que precisa ser valorizada e, posteriormente, absorvida pelas novas e futuras gerações. Tais legislações, sobretudo as estaduais, buscam reconhecer o caboclo do Contestado como o mais típico dos catarinenses – o que estaria mais próximo daquilo que seria a gênese humana estadual se considerar a participação indígena nesse caldo cultural.

A necessidade de reconhecimento a partir da memória e dos espaços de memória se reduz ao emprego de adjetivos depreciativos que designaram os caboclos do Contestado ao longo de quase cem anos de história, tais como facínoras, ignorantes, horda, incultos, fanáticos ou jagunços, fazendo com que esses sertanejos passem a ser concebidos como obstinados, aguerridos, combatentes e mesmo, patronos do meio ambiente na sua época, ou seja, epítetos adequados de um processo de imaginação, cuja convergência foi a de recair na fábula do herói, fazendo frente aos que a história oficial fez heróis, ou seja, os militares que lutaram no Contestado – tais mitos são fundamentais para qualquer concepção de identidade territorial.

Para além do reconhecimento da importância da cultura cabocla do Contestado, da sua memória material e imaterial, urge a necessidade de salvaguardar os resquícios, sobretudo dos espaços materiais de memória, pois cem anos depois, parte considerável desse patrimônio se encontra dentro de propriedades privadas e isso inclui os vinte monumentos erguidos em meados dos anos de 1980, onde, excetuando os que estão nas estações de trens, como Caçador, Calmon, ou mesmo aqueles em espaços públicos municipais, tais como os de Mafra, Timbó Grande, Vila Nova, Rio das Antas, Irani e Canoinhas, os demais se encontram, ou destruídos ou abandonados. Desses últimos, se podem citar os de Perdizinha, Tamanduá, Pedra Branca e Caraguatá como completamente destruídos; os demais, todos visitados, encontram-se em razoável estado de conservação.

Há que se ressaltar a urgente necessidade de resolução dos problemas que envolvem os monumentos de Perdizinha, que ficava ao lado do quase totalmente destruído crematório de cadáveres dos tempos de guerra, assim como da carneira, vala comum com milhares de corpos sepultados, de Santa Maria; pouso, fonte d´água e monumento da Serra da Boa Esperança, pois ambos se encontram em propriedades particulares, que, mesmo com autorizações para visitas e pesquisas, são geradores de conflitos, uma vez que os proprietários são obrigados a manter a coexistência de patrimônios públicos dentro de suas propriedades particulares, além da gravidade do fato de tais sítios históricos estarem sendo desconfigurados ao longo de mais de 40 anos, entre o erguimento dos monumentos e os dias atuais. Urge achar uma saída para Perdizinha e Santa Maria ou, em breve, os sítios históricos deixarão de existir.

Por sorte, nos sítios de Irani, Taquaruçu, Rio das Antas, Timbó Grande e São Sebastião há zelo e cuidado por parte das comunidades locais, garantindo, assim, a perpetuação daqueles espaços de memória.

Fraga Símbolos

Porém, além dos vinte espaços monumentais, cujos territórios são marcados com as placas dos anos de 1980, há uma gama de centenas de outros que se encontram à deriva, entregues à ação do tempo. São muitos os cemitérios caboclos abandonados ou engolidos pelas plantações de pinus; as carneiras dos soldados desconhecidos; os cepos queimados das rústicas igrejas caboclas; as dezenas de cemitérios de anjos encontrados às margens das estradas interioranas (locais de sepultamento de crianças pagãs); as cruzes das meninas de lábios de mel que morreram de inanição, encostadas na base de uma araucária, na sede e na localidade de Cachoeira, ambas em Timbó Grande, assim como a Guarda Mor de Adeodato, o cemitério de Boi Preto e os sítios dos redutos Maria Rosa e Vaca Branca, todos no interior desse mesmo município; estações de trem seculares abandonadas ou já destruídas ao longo do traçado da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, assim como túneis e sítios de manobras da ferrovia, como os de Porto União, onde, no mesmo município, se tem a abandonada estação Nova Galícia, um marco da construção da estrada de ferro, ou ainda a equivocada construção de um parque linear e uma praça que desvirtua o espaço histórico ferroviário urbano do município de Videira; o cemitério redondo, em Piratuba, os restos da igreja cabocla que se encontram no cemitério da Serra da Boa Esperança, bem como a trincheira e o pouso do Monge João Maria, que, juntos, formam um dos sítios históricos mais completos e complexos do Contestado; espaços sagrados de São João Maria, encontrados em praticamente todos os municípios do Contestado, incluindo os cruzeiros, as fontes de água santa e os locais de pousos, além, das relíquias do(s) Monge(s) que se encontram em posse e são cuidadas por cidadãos e cidadãs do interior do Contestado, tais como o cajado, o banquinho, as cinzas das fogueiras etc. que já se identificaram espalhados pela região; sedes de fazendas históricas do Contestado, como a de Neco Peppes, onde, no quintal há o seu túmulo, local onde caiu morto nos combates da guerra; armamento, tais como espingardas, espadas, canhões etc., que estão enfeitando jardins de residências ou guardados nas casas de particulares, esses precisam ser resgatados por agentes do Estado e colocados em exposição nos museus regionais; garantir a salvaguarda dos patrimônios dos poucos museus existentes no Contestado, dando formação e financiamento para conservação, manutenção do acervo e exposições; reintegração do patrimônio material do Contestado que foi retirado e levado para Florianópolis, Curitiba, Rio de Janeiro e outras cidades do Nordeste e Sudeste do Brasil, como “troféu” de guerra pelos combatentes, ou mesmo tenham sido emprestadas para exposições noutras cidades e, por fim, urge o tombamento imediato da imagem histórica de madeira de São Sebastião, santo da devoção cabocla que percorreu a maioria das capelas sertanejas do Contestado, tendo sido apreendido pelo Exército Brasileiro nos combates de Santa Maria, registrando, ainda hoje, o carvão gerado quando esteve em uma das igrejas bombardeadas e queimadas, precisando ser restaurado tecnicamente e, depois, salvaguardado numa redoma de vidro a prova de fogo e furto, essa imagem se constitui como um dos maiores bens materiais que resistiu aos bombardeios e incêndios decorrentes da Guerra do Contestado, sendo uma das mais importantes da Serra Acima Catarinense, pois antecede a colonização oficial do pós-guerra.

Além desses patrimônios materiais, fundamentais e mencionados, há outros ainda sendo descobertos pelos pesquisadores, a maioria se encontra em propriedades particulares, não fazem parte dos registros históricos, antropológicos, arqueológicos e geográficos, são espaços de memória ainda invisíveis e silenciados no miolo do território do Contestado, mas existem; suas localizações são passadas oralmente, os mais próximos sabem deles – estão calados ou foram calados pelas bocas dos canhões da república legalista. Mas há outro patrimônio sendo perdido no território do Contestado, o patrimônio imaterial, mesmo que muitos já tenham sido entrevistados para livros, teses etc., há que se registrar a imagem e a fala dessas pessoas, muitas das quais, centenárias e sobreviventes ao genocídio dos anos de 1912 a 1917. Assim, é preciso, por meio dos agentes culturais regionais, criar um banco de dados de entrevistas – livre, deixando fluir a fala e as memórias dessas pessoas – para que, no futuro, se tenha esse material disponível para pesquisas de todos os tipos e formas.

O patrimônio material e imaterial do Contestado em nada perde em volume e densidade para os de outras regiões de Santa Catarina e até mesmo do Brasil; essa diversidade de coisas e seres e lugares, que só existe lá, dá identidade territorial aos ancestrais caboclos e caboclas do Contestado, sendo um dos maiores registros do processo de formação socioespacial brasileiro, mais contundente, claro, para catarinenses e paranaenses.

O patrimônio do Contestado é grande, pela grandiosidade do mundo identitário caboclo. Assim, seus espaços de memória são muitos e se espalham por um território não menor do que 30.000 km², pois como diria o grande jurista catarinense, que viveu no Contestado, Osny Duarte Pereira, em 1966, isso quando a Guerra do Contestado vivia o seu cinquentenário, como explicar que gente tão humilde, tão pobre, tão ignorante, tão primitiva tenha enfrentado fôrças tão poderosas e durante quase quatro anos sua resistência e seu protesto? Resistência e protesto que, sabiam, teria fim e que não poderia prevalecer, nem lhes garantir uma vitória. As páginas de audácia, coragem, malícia, habilidade, sangue-frio, fraternidade, destemor aos obstáculos, improvisação nas vicissitudes, transformando o frágil em forte, o rígido em flexível, preparando suas próprias armas, instituindo seus hospitais de sangue, sua disciplina na guerrilha, sua organização de retaguarda e de abastecimento, enfim, tôda a estrutura de uma nação em guerra. Tudo isso desperta a curiosidade, o espírito de pesquisa, a investigação mesma. Eis que esse brilhante jurista tinha razão, o Contestado foi tudo isso, e esses fatores, no mínimo, são a prova irrefutável da necessidade de políticas públicas para salvaguardar os espaços de memória contestadenses – mas precisam ser, tanto no plano material, como no imaterial.

O Contestado se esconde atrás de uma cortina de fumaça de uma guerra que, oficialmente, terminou em 1915, nos 54 dias de combates no vale de Santa Maria, hoje vale da Morte e, ainda, no acordo de Limites de 1916 – mas não acabou, a guerra segue até os dias atuais, quando se luta pelo reconhecimento do mundo caboclo, pela sua identidade e pela sua cultura, incluindo-a na cartografia social nacional.

Contestado, 100 anos em Guerra, das cinzas deixadas pelo fogo dos incêndios das bocas dos canhões republicanos, às batalhas pelo rompimento do silêncio e da invisibilidade imposta por outros canhões republicanos.

Que a memória do Contestado, transformada numa pilha de cinzas, se transforme no espírito que pairará sobre essas cinzas, 100 anos depois.

Fraga Irani

Fraga Teles

Com Vicente Telles, músico, historiador, folclorista e Patrimônio Vivo do Contestado, 24 de outubro de 2015, em Irani, SC.

* Pesquisador do CNPq

Geógrafo – Universidade do Estado de Santa Catarina

Doutor em Meio Ambiente e Mestre em Geografia

Coordenador do Observatório do(s) Centenário(s) da Guerra do Contestado – UEL/UFPR

Coordenador do Laboratório de Geografia, Território, Meio Ambiente e Conflito – GEOTMAC/UEL

Sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina

Diretor-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros – SLdna

Universidade Estadual de Londrina – DGEO-PROPGEO-UEL

Universidade Federal do Paraná – PPGGEO-UFPR

4 COMENTÁRIOS

  1. Matéria excepcional: impactante, abrangente, sucinta e profunda. É, ao mesmo tempo, condensada em tão poucas linhas. Portanto, digna de exaltação e gratidão pelos estudiosos.dessa temática, Vicente Telles

  2. Ótimo trabalho, especialmente por desvelar os caboclos como os primeiros e autênticos agentes da cultura e do povoamento dessa região catarinense, fantasiosamente vista pela história oficial como sendo parte (do todo) da colonização europeia, e por resgatar a dignidade dessa população expondo histórias e locais onde ainda resistem os herdeiros dessa barbárie nacional, abandonados pelo poder público (em um estado que ostenta o título de melhor IDH do país), ignoradados pela quase totalidade dos brasileiros.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.