Os profissionais de psicologia estão proibidos de realizar terapias que pregam a reorientação de identidade de gênero – as chamadas “‘cura’ trans ou travesti”. Uma resolução foi publicada pelo CFP no fim de janeiro e orienta que os profissionais da área não tratem a travestilidade e a transexualidade como doenças.
Agora, o psicólogo deverá reconhecer a respeitar a pessoa trans em sua identidade de gênero (com o gênero em que ela se reconhece, independemente daquele que foi imposto ao nascer). A resolução explica que as identidades trans são possibilidades da existência humana e não psicopatologias, transtornos metais, desvios ou inadequações. Diz que a identidade de gênero refere-se à “experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído ao nascimento”.
Os conselheiros federais e regionais de Psicologia também frisaram que os profissionais devem utilizar da profissão para contribuir no combate a transfobia, jamais para estimular preconceitos, estigmas ou estereótipos. Vedaram, inclusive, a realização ou colaboração com eventos ou serviços que busquem terapias conversivas, reversivas, de readequação ou de reorientação de gênero das pessoas transexuais ou travestis. Algo que ainda hoje acontece muito e que, segundo especialistas, ferem os direitos e a saúde da população trans.
A resolução é baseada nos princípios da dignidade da pessoa humana, previstos na Constituição de 1988, e no artigo 5º que estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, além da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travess e Transexuais, editada em 2013 pelo Ministério da Saúde; Baseia-se ainda em princípios e convenções internacionais de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, como a Convenção de Yogyakarta (2006), a Declaração de Durban – Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (2001).
As regras já entraram em vigor e, o profissional que desobedecer a resolução, estará sujeito a um processo ético no órgão. Ele poderá ser advertido e levar multa ou até mesmo ter o direito de exercício profissional suspenso ou o registro cassado.
RELATOS SÃO CONSTANTES
Em diversas entrevistas que realizamos no NLUCON, travestis, mulheres transexuais e homens trans já relataram ter sofrido em clínicas que diziam curar a transexualidade e travestilidade. Em todas elas, nenhuma mudança ocorreu, além dos diversos traumas e marcas que ficaram.
Tatiane de Campobello, da Casa Florescer, declarou que chegou a ser internada em uma clínica quando voltou para a casa dos familiares aos 24 anos. Ela diz que o primeiro passo dos profissionais do espaço foi raspar os seus longos cabelos, o que a deixou com 40 graus de febre por três dias. “Fiquei de cama por causa do emocional”. Ao sair, ela até tentou assumir um papel masculino, mas logo viu que o caminho para a sua real felicidade estava em sua identidade enquanto mulher transexual.
O palestrante e guarda-municipal Jordhan Lessa declarou que esteve em dois manicômios devido à transfobia. Ele afirma que ouviu e sentiu tantas coisas que chegou a pensar por um momento que estava louco. “Tomei choque na cabeça, perdi o controle do meu corpo que urinava e evacuava como se não fosse meu, passei do Natal até o Ano Novo Dopado, dormindo e depois dessa tortura, me davam tanta medicação que até hoje ainda penso que não morri só porque não estava na hora”.
Ele afirma que foi fundamental que ele se entendesse e se aceitasse exatamente como é, um homem trans, e que não aceitasse mais mudar quem era. Jordhan admite que após o trauma nos manicômios demorou anos para se reaproximar das pessoas e a sorrir de novo. “Somente neste último ano, aos 50, me senti confortável para comemorar o Natal em família. Acho que as marcas daqueles dias e tudo o que fizeram comigo morrerão comigo. As feridas do corpo se fecharam, mas as cicatrizes são na alma”, declarou.
PROCEDIMENTOS PODEM CAUSAR SUICÍDIO
A psicóloga Dalcira Ferrão – que é conselheira e presidenta do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais – afirmou ao NLUCON que ainda é comum que famílias apelem para terapias de reorientação de identidade de gênero, muitas vezes recorrendo a procedimentos que misturam aos preceitos religiosos. “Ano passado acompanhei o caso de uma travesti do Estado do Rio de Janeiro que foi internada involuntariamente pela mãe no intuito de reverter sua condição”, afirmou.
Ela frisa que o tipo de procedimento e a rejeição familiar podem acarretar danos para a pessoa trans ou travesti. “Não ser respeitada e aceita pela própria família pode ocasionar diversos fatores nas pessoas travestis e trans, como quadros depressivos, de ansiedade, de reclusão e fobia social, podendo chegar em casos extremos, como a tentativa de suicídio”, disse.
A psicóloga explica que o fato de a transexualidade e a travestilidade não serem vistos como doença não impede que a pessoa trans ou travesti possa receber atendimento psicológico. “Muito pelo contrário. A Psicologia tem papel importante no enfrentamento da transfobia, na desconstrução de estereótipos e preconceitos, no fortalecimento da auto-estima desses sujeitos e na construção de estratégias para lidar com tais dificuldades”.
Segundo Dalcira, a sociedade precisa entender que as pessoas trans e travestis são como todas as outras e que devem ter o respeito à sua identidade de maneira auto-denominada. “Elas pagam seus impostos, trabalham, namoram e precisam ter seus direitos garantidos como todos cidadãos. Respeitar o direito à vida, de ir e vir, da dignidade humana e o direito ao nome, são alguns dos desafios enfrentados pela população travesti e trans”.
SAIBA QUAIS SÃO OS ARTIGOS
Art. 1º – As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais e travess.
Art. 2º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito em relação às pessoas transexuais e travess.
Art. 3º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travess.
Art. 4º – As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminações em relação às pessoas transexuais e travess.
Art. 5º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício de sua prática profissional, não colaborarão com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas instucionais discriminatórias em relação às transexualidades e traveslidades.
Art. 6º – As psicólogas e os psicólogos, no âmbito de sua atuação profissional, não parciparão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet, que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travess.
Art. 7º – As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travess.
Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travess em relação às suas identidades de gênero.
Art. 8º – É vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, instucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.