Conselho de mãe

Por Mayara Bergamo, para Desacato.info.

“Estude, minha filha! Estude muito e sempre, porque o estudo é a única coisa que ninguém pode tirar de você!”

Acredito que assim como eu, boa parte dos brasileiros também deve ter escutado essa frase em algum momento da vida. Provavelmente, ela deve ter sido pronunciada por familiares ou professores com o objetivo de incentivar o estudante que passa por maus momentos ou reforçar conquistas importantes das alunas e alunos desse chão.

Dos privilégios às crises

Por muito tempo eu acreditei e segui esse conselho de olhos fechados, aproveitando todas as oportunidades que tive, desde livros emprestados de amigos até cursos gratuitos online, passando por oficinas, estágios, palestras, movimento estudantil, mais livros e duas faculdades.

Felizmente, eu não estou sozinha. Sei que se olhar pela janela, verei muita gente qualificada, esforçada e que estudou muito, possivelmente guiados por esse mesmo conselho. O problema é que esse monte de gente está em casa, se afundando na desesperança e desperdiçando seu potencial.

Hoje fiz a penúltima viagem para concluir a pós-graduação que estou cursando agora, e ainda tenho (não sei por quanto tempo) a expectativa de emendar um mestrado, mas não posso ignorar a enormidade do sentimento de falta de perspectivas que me ronda desde a formatura. Pode ser que o meu senso de momento seja horroroso, já que me formei na metade de 2015 – no auge de uma crise inventada para derrubar uma presidenta eleita democraticamente pelo voto popular.

Minha primeira experiência foi o desemprego. Quando arrumei um trabalho, ele era temporário e totalmente fora da área para a qual tanto estudei:  apenas um mês, na produção de uma fábrica de perfumes e essências. Eu fui e posso afirmar que esse pouco tempo foi responsável por uma guinada na maneira como eu via e interpretava a realidade do trabalho e a relação trabalhador x patrão.

Após essa experiência, voltei para a situação anterior – de desempregada – e fiquei mais 7 meses à deriva, até arrumar outro trabalho, dessa vez com maior afinidade, embora ainda não exatamente na área.

Outra vez, me encontro nessa situação. E novamente, não estou só: são 13,7 milhões de brasileiros desempregados, segundo o IBGE. Esse número é referente ao primeiro trimestre, ou seja, a análise foi feita até o mês de março, que também foi o último mês em que trabalhei formalmente em 2018. O Eterno Retorno de Nietzsche realmente é comandado por um demônio e parece ter o formato do desemprego no Brasil pós-golpe.

Nessas ocasiões, eu sempre entro em uma crise existencial e questiono minhas escolhas: se tivesse optado por outro curso a situação seria outra? Será que alguém consegue andar na “ponte para o futuro” sem ser devorado pelos tubarões no meio da travessia?  Aí lembro que conheço outras pessoas que também estão desempregadas e que escolheram cursos absolutamente diferentes do meu.

Outra crise (ainda maior) me atinge quando lembro que, apesar dessas situações, sou MUITO privilegiada em relação a tantos outros brasileiros, igualmente cidadãos desse país, que estão com essa e com muitas outras dificuldades, desde sempre e para tudo – inclusive para existir!

Perdem eles, perdemos todos

Desde o anúncio do congelamento dos investimentos em educação, saúde e outras áreas, já eram esperados cortes significativos. Mesmo assim, a revolta permanece quando esses cortes são anunciados. E ontem saiu a notícia: governo Temer corta as bolsas destinadas aos estudantes indígenas e quilombolas, impossibilitando o acesso e dificultando a permanência dessas pessoas nas universidades federais.

O Programa Bolsa Permanência foi criado em 2013, por Dilma Rousseff e garantiu o acesso ao ensino superior a 18 mil estudantes indígenas e quilombolas, até agora. O PBP consiste no pagamento de 900 reais mensais para cada estudante. Esse valor custeia moradia, transporte e material escolar, garante o direito fundamental a educação, e aumenta a pluralidade nas universidades federais do país – que até pouco tempo eram frequentadas, na sua maioria, por estudantes cujos pais podiam pagar escolas particulares e muitos cursinhos durante o ensino fundamental e médio.

Desde o início do ano os novos estudantes contemplados com as bolsas do PBP, aproximadamente 5.000, não recebem o dinheiro e para continuar estudando vivem em situação degradante, superlotando e compartilhando espaços minúsculos com outros colegas, que em solidariedade, dividem suas próprias bolsas.

Mas isso é só uma parte do problema. Há ainda o sucateamento das universidades públicas, a falta de investimento em pesquisa, o corte de outras bolsas de estudo, o desinvestimento em programas como o Ciência sem Fronteiras, entre outros.

Perdem os estudantes, perdemos todos – e em todos os níveis. Perdemos como seres humanos, por assistir esses ataques aos direitos fundamentais, principalmente das minorias, e a dignidade de cidadãos sem esboçar reação. Perdemos como sociedade, por desprezar um enorme contingente de pensadores, profissionais e agentes transformadores qualificados e preparados. Perdemos como nação, por não enxergar o que estamos fazendo com o país, primeiro por não possibilitar o acesso universal a educação e segundo, por sucatear também, o mercado de trabalho e os direitos dos trabalhadores.

Os conselhos, afinal, parecem já não servir para muita coisa, já que quando não conseguem nos tirar o acesso, nos tiram o direito ao trabalho digno.

Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.