Conflitos por água batem recorde no país e chegam a 276 casos: aumento de 40% em 2018

Conflitos no campo vitimam especialmente setores sociais vulneráveis, como agricultores, quilombolas e indígenas Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Por Cristiane Sampaio.

O número de conflitos por água bateu recorde histórico no Brasil em 2018, com aumento de 40% em relação ao ano anterior. O dado é do relatório “Conflitos do Campo Brasil – 2018”, lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) nesta sexta-feira (12), em Brasília (DF).

Foram registrados, no período, 276 casos, que envolveram mais de 73 mil famílias. Diante desse patamar, esse tipo de ocorrência superou a marca de 2017, até então a maior desde 2002, ano em que a CPT passou a notificar casos dessa natureza.

Em relação a esse tema, o destaque é para a ação das mineradoras, que estiveram envolvidas em 139 conflitos por água no ano de 2018, com uma representatividade de 50,36% do total. A CPT registra que 111 deles foram protagonizados por companhias internacionais e 28 por mineradoras nacionais.

No relatório, que é produzido pela entidade anualmente há mais de três décadas, outras estatísticas se sobressaem, como é o caso do número de pessoas envolvidas em conflitos no campo, que cresceu 35,6% entre 2017 e 2018, saltando de cerca de 708 mil para mais de 960 mil pessoas. Cerca de 49% desses conflitos se deram na Amazônia.

A pesquisadora de desenvolvimento urbano Diana Aguiar, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), afirma que as pessoas atingidas pela violência no campo têm um perfil já esperado.

“Há um caráter sistemático na forma como esses conflitos acontecem, sempre contra os mais despossuídos, contra as pessoas que estão em terras de ocupação tradicional, nos territórios indígenas e territórios que são de profundo interesse pra expansão do modelo de produção hegemônico do agronegócio, da mineração”, explica.

Despejos e expulsões

O relatório da CPT sublinha ainda que, no ano passado, o poder público foi responsável pelo despejo de 11.235 famílias. Destaque ainda maior teve a ação do poder privado, que expulsou outras 2.307 famílias, provocando um aumento de 59% nesse índice no comparativo com 2017.

“Isso significa que o capital está investindo tudo que pode na tentativa de impedir a ação dos movimentos. Mostra que o fazendeiro hoje se sente muito mais empoderado a agir por conta própria do que antes. Eles se sentem com toda força pra agir por conta [própria] porque sabem que têm as costas quentes, têm o respaldo das autoridades”, analisa Antonio Canuto, colaborador da CPT,  lembrando o avanço conservador que tomou conta do país.

Indígenas

Outro ponto de realce trazido pela CPT no novo relatório diz respeito à violência contra os povos indígenas a partir do primeiro turno das eleições do ano passado, que ocorreu em 7 de outubro. Das 276 ocorrências de conflitos por terra registrados entre essa data e o dia 31 de dezembro, 56 foram contra indígenas, o que representa 20,5% do total.

O número chama a atenção também pelo fato de corresponder a 44,3% de todos os conflitos envolvendo indígenas no ano de 2018. Canuto aponta que o dado reflete o contexto de avanço da violência contra os povos tradicionais, que já vinha se manifestando nos últimos anos. Ele ressalta que o problema tomou fôlego com a chegada de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República por conta do discurso do líder do PSL contra as comunidades tradicionais.

Canuto pontua ainda que o perfil de atuação dos indígenas diante dos ataques tem relação com os números por conta da forte resistência das comunidades diante da ação de fazendeiros, madeireiros e outros atores ligados à violência.

“O grupo humano e social mais atuante hoje em dia é o dos índios. Eles não estão dormindo. Eles fazem manifestações, ocupam [lugares], vêm a Brasília, se manifestam, fazem um centenário de ações que mostram que eles estão vivos e não vão ceder tão facilmente”, destaca.

Mulheres

A violência contra as mulheres também tem realce no relatório: ao todo, 482 delas foram vítimas de conflitos no campo em 2018. O número é o mais alto desde 2008, quando a CPT iniciou a série histórica.

“[É] principalmente por conta das próprias mobilizações das mulheres. Em muitos lugares, elas se colocam na frente. Se mais lideranças foram assassinadas no campo, então, as mulheres também acabam sendo afetadas por isso”, analisa Isolete Wichinieski, da coordenação nacional da CPT.

Dos 482 casos, 400 foram de detenção; 36 de morte; 15 de prisões, além de seis tentativas de assassinato, seis casos de ferimentos, dois de tortura e um de aborto.

Agrotóxicos

A CPT também chama a atenção, no relatório, para os casos de conflitos envolvendo agrotóxicos – produtos tradicionalmente associados à monocultura, modelo de produção típico do agronegócio. Foram registradas 363 ocorrências de pessoas vitimadas nesse tipo de conflito entre os anos de 2000 e 2018.

Desse total, 71% se referem a conflitos de terra, 21% a conflitos trabalhistas, 8% em disputas por água. Além disso, 91 das vítimas notificadas são crianças. A estatística se refere a casos de morte ou a situações em que a vida da pessoa esteve ameaçada por conta do contato com pesticidas.

“São casos que são expressivos e que a CPT tem notícia e registra, mas existem muito mais porque, quando o sujeito vai procurar o médico, este também não considera [o problema de saúde] como resultado de uma intoxicação por agrotóxicos”. Isso [a estatística] é um número ínfimo”, pontua Antonio Canuto, destacando a subnotificação que marca o problema.

Projeções

Canuto sublinha que, apesar de ter havido queda no número geral de assassinatos no campo, que saiu de 71 para 28 casos entre 2017 e 2018, o panorama atual que envolve as diferentes comunidades – como as de agricultores, pescadores, indígenas, quilombolas – põe em alerta o campo popular e a sociedade civil organizada que acompanha a problemática da terra no Brasil.

“E esse ano [2018], como era ano eleitoral, eles se resguardaram, mas isso vai estourar neste ano porque eles vêm com todo gás, com todo apoio que eles têm do próprio governo. Então, acho que 2019 vai ser um ano em que a violência vai atingir patamares assustadores, talvez”, projeta.

Edição: Aline Carrijo

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