Condenar Rafael Braga apenas com base na palavra policial viola o processo penal brasileiro

É necessária uma grande dose de resistência e paciência para trabalhar com o sistema de justiça criminal.

Rafael Braga foi condenado a 11 anos de encarceramento. A sentença se funda na mais frequente e desgastada prática inquisitorial no Brasil: condenação exclusivamente fundada na palavra do agente policial.

No Estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça chegou a fazer um enunciado para registrar a correção destas condenações (a tal súmula 70). Acredito, entretanto, que a prática de tratar os agentes envolvidos na prisão como testemunhas do fato e, permitir decisões condenatórias com fundamento exclusivo na palavra do policial, é errada sob todos os aspectos em que se analise.

Conceitualmente, as testemunhas (como os meios de prova em geral) servem para produzir conhecimento nos autos do processo, declarando o que sabem a respeito do fato imputado ou, no caso da defesa, sobre qualquer coisa eventualmente favorável ao réu. Ressalvados os vínculos que lhe retiram o compromisso, as testemunhas devem ser “pessoas desinteressadas com o mérito do julgamento” e, portanto, não podem ter relação pessoal direta com o que se discute nos autos.

Policiais que prenderam o imputado em flagrante ou atuaram na investigação tem interesse em defender a legalidade e correção da própria atuação, o que é mais ou menos óbvio. Não são testemunhas, por isto. Se necessário ouvi-los em juízo, devem ser tomadas com reserva, por não estarem compromissados em produzir “conhecimento verdadeiro” (Ferrer Beltrán) [i] sobre os enunciados fáticos.

Consequentemente, do ponto de vista epistêmico, a palavra do policial não possui qualidade suficiente para oferecer um conhecimento seguro sobre os enunciados fáticos e, portanto, não servem ao objetivo de chegarmos em uma decisão em que seja justificável aceitar que determinado fato ocorreu (Geraldo Prado) [ii]. Não podem servir para condenar uma pessoa.

Sob o prisma político, nem se diga. No país da maior quantidade de autos de resistência no mundo, é esquizofrênico que a palavra do policial militar siga sendo recebida com presunção de legitimidade.

O modelo democrático de processo penal está criminologicamente fundado na realidade concreta do poder repressivo latino americano e, portanto, é dele que precisamos dar conta. Isto significa que o saber processual penal deve estar orientado à prática e, desta forma, à superação das macro e micro patologias inquisitoriais do sistema de justiça (Alberto Binder). [iii]

A Polícia Militar monopoliza a ponta do controle punitivo institucionalizado, é responsável pela quase totalidade dos flagrantes [iv] e, ainda, por milhares de condenações criminais, idênticas as de Rafael Braga.

Há uma aposta do Estado em concentrar esforços na execução de uma política criminal de enfrentamento da “microcriminalidade de rua”, o que repercute nos altos índices de seletividade e de instauração de inquérito provenientes do Auto de Prisão em Flagrante. Pesquisas do Estudo de Núcleo de Violência da USP apresentam que 59% dos inquéritos da cidade de São Paulo são instaurados automaticamente após a lavratura do APF. A leitura dos dados permite concluir que o propósito de investigação ampla e eficiente é substituído pela atuação emergencial e paliativa do policiamento ostensivo.

As práticas concretas do poder punitivo, exigem, desde de uma necessária oxigenação criminológica crítica, que a presunção de legitimidade dos atos da administração pública seja recebida como presunção de irregularidade dos atos do poder punitivo, neste caso, trazidas ao processo na palavra do agente policial. A exigência democrática, em definitivo, é por um “absoluto pessimismo com o agir persecutório” (Salo de Carvalho). [v]

Na mesma pesquisa acima referida, Anderson Lobo da Fonseca constatou que 74% das prisões por tráfico de drogas no Estado de São Paulo contaram apenas com testemunhos de policiais que realizaram a prisão e, em 76 % dos inquéritos da cidade, os agentes que dela participaram foram ouvidos como principais testemunhas.

Ao mesmo tempo, uma pesquisa elaborada pela FGV-Direito quanto ao índice de confiança na Justiça (ICJBrasil) indicou que “77% da população com renda inferior a dois salários mínimos não confia na atuação da polícia. Esta descrença atinge 59% da população com renda acima de 10 salários mínimos. Já entre a população com nível de renda entre dois e dez salários mínimos, o grau de desconfiança varia entre 65% e 63%.De uma forma geral, apenas 36% da população declarou estar satisfeito com a polícia”.[vi]

Em um país, cujo histórico de violações aos direitos humanos pela instituição policial é imenso, onde a maioria esmagadora da população diz não confiar na polícia, não se pode admitir condenações lastreadas unicamente na palavra do agente policial.

O processo penal de orientação democrática deve, neste contexto, mudar o paradigma no regime de valoração da prova, destituindo a validade do enunciado n. 70 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A palavra do policial como “testemunha do fato”, quando muito, só tem valor endoprocedimental, o que significa que, mesmo assentada em narrativa coerente (Maccormick) [vii], serve apenas para a formação da justa causa e oferecimento da denúncia (Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior). [viii]

Não é possível avançar sobre todas as dimensões da figura do policial no sistema de justiça criminal brasileiro, mas há um aspecto que não se pode deixar passar. O Poder Judiciário é desleal e pragmático quando trata de lidar com os agentes policiais. A perspectiva muda, conforme seja testemunha ou acusado e, neste último caso, será tratado de uma forma ou outra, conforme o crime imputado. Acredito que este é um dos pontos sérios e problemáticos do processo penal brasileiro. Pode ser resumido assim:

  1. Na qualidade de “testemunhas” em crimes supostamente praticados por pobres, como os patrimoniais e de comércio ilegal de drogas, são recebidos com máxima credibilidade, como demonstra o caso Rafael Braga.
  2. Envolvidos na morte de algumas das pessoas imputadas acima, ainda que demonstrada a alteração do local (para dar um exemplo cotidiano), frequentemente terão o inquérito arquivado, prisão cautelar revogada, quando não forem tratados como heróis, “homens que foram lá e fizeram o que tinham que fazer”, como gosta de afirmar um determinado juiz, paradoxalmente com sobrenome bíblico, titular de uma das varas do tribunal do júri do Estado do Rio de Janeiro.
  3. Quando réus em crimes contra a administração pública, são recebidos com ódio e julgados impiedosamente. O cidadão policial, acusado de corrupção, peculato, etc., em regra, é cautelarmente preso com fundamento no fato de ser – justamente – um policial. O que lhe assegurava tratamento epistêmico diferenciado, agora lhe cai como um estorvo, autorizando as mais diversas elucubrações sobre crimes futuros e embaraços à instrução ou à garantia de aplicação da lei penal.

Em suma, o Estado não tergiversa quando trata de acusar e prender ilegalmente policiais militares, civis e federais. À sua palavra, transformado em réu, é dado tratamento de coisa infame e não confiável.

O sistema de justiça penal brasileiro, ao meu juízo, age com valores e conceitos invertidos. Policial não deveria ser testemunha; excepcionalmente, como nos casos de execuções em que se alteram o local da perícia, podem ser provisoriamente presos; devem ser tratados com a dignidade e credibilidade que toda pessoa presumida inocente precisa receber dos agentes públicos estatais.

Ninguém (policial, político, empresário, traficante ou “o papa”) pode ser preso cautelarmente por causa da profissão ou atividade que exerce, pelo status pessoal que ostenta, enfim, sem que se demonstre por elementos sérios, graves, fundados e indicados nos autos, de que tentou obstruir o regular andamento do processo penal.

A única conclusão que me passa, para concluir o assunto, é que o sistema de justiça criminal usa os agentes policiais como e quando lhe convém: descartado e odiosamente apenado, quando lhe acusam de crimes contra a administração pública. Exaltado e condecorado quando realiza o trabalho sujo de capitão do mato, matando e morrendo por uma política criminal de drogas falida, em uma “guerra” que não é sua.

Enquanto isso, Rafael Braga, também preto, igualmente pobre, vai mais uma vez encarcerado ilegalmente, cumprindo o lamentável e persistente destino de sofrer como os seus, nas mãos do Estado Brasileiro.

Antonio Pedro Melchior é Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Advogado Criminalista.


[i] Cf. FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional del la prueba. Madri: Marcial Pons, 2007.

[ii] Cf. PRADO, Geraldo. Verdad, certeza y duda: las cuestiones en torno de la cadena de custodia de las pruebas en el proceso penal. In: PRADO, Geraldo. GRADOS, G. A.; MAYA, R. P.; PEDROZA, A. F. D.; LOPEZ, R. M.;   BURGOS,   E.   A.;   RIOS,   M.   P.   M.;   ROXIN,   C.;   HALLIN G,   J.; ZULUAGA, J. Perspectivas y retos del proceso penal. Medellin: Universidad Pontificia Bolivariana UPB, 2015. v. 1. Disponível em versão digital no site www.academia.edu

[iii] BINDER, Alberto. M. Derecho procesal penal. Hermenéutica Procesal Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2013.

[iv] Cf. FONSECA, Anderson Lobo da. A Força da Palavra Repressiva. In: Le Monde Diplomatique Brasil, ano 8, n. 93, Abril. 2015, p. 32-33.

[v] Cf. CARVALHO, Salo. AntiManual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[vi] Pesquisa disponível em http://fgvnoticias.fgv.br/pt-br/noticia/pesquisa-do-icjbrasil-avalia-confianca-nas-instituicoes-do-estado, acesso em dia 09 de abril de 2015

[vii] Cf. MACCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[viii] CASARA, Rubens. MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

Fonte: Justificando

Foto: Germán Aranda

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