Comunicação, sim. Monopólio, não.

Laurindo Leal

Argentina aprova lei para democratizar a radiodifusão e enfrenta resistência do grupo Clarín. No Brasil, um projeto similar está engavetado no governo.

Por Áurea Lopes.

POLÊMICA é pouco para definir o impacto da lei argentina de Serviços de Comunicação Audiovisual (conhecida como Ley de Medios ou Lei da Mídia, em português). A lei acaba com o latifúndio da comunicação e fortalece a produção audiovisual nacional naquele país. Por isso, está sofrendo fortes ataques do grupo El Clarín, que detém 57% do mercado local, explica o professor Laurindo Leal*. Aprovada, a regulamentação teve o prazo de implantação suspenso por decisão judicial, em dezembro do ano passado. No Brasil, diz Leal, “precisamos urgentemente de uma lei desse tipo”. Porém, alerta ele, “o bombardeio existe e vai existir sempre… (…) mas é um risco que temos que correr”.

Por que a Argentina decidiu fazer a Lei de Mídia?
Laurindo Leal – O projeto começou a ser elaborado em 2004, durante o processo de redemocratização do país, no governo Nestor Kirchner. Nas universidades, nos sindicatos, os conjuntos de trabalhadores passaram a debater a comunicação e propor uma nova lei de radiodifusão que substituísse a legislação em vigor desde a ditadura militar, assinada por Jorge Rafael Videla. Isso porque a democracia pode avançar até politicamente, com eleições livres, pluripartidarismo… mas não se consolida sem uma comunicação que dê voz para todas as correntes da sociedade. É comum vermos governos populares tentarem avançar, como na Argentina, no Equador, na Bolívia, no Brasil, e quem acaba assumindo o papel de oposição é a mídia, pois a oposição é fraca, não tem projeto de governo. Assim, formou-se na Argentina um movimento chamado de Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, que reúne associações da sociedade civil preocupadas com o monopólio na radiodifusão.

Então essa é uma lei que tem base popular.
Leal – Totalmente. E o debate se estendeu para além dos grupos mais diretamente interessados na questão da comunicação. Não só universidades, jornalistas, comunicadores, mas outros setores da sociedade se envolveram: movimentos populares, igreja, mães e avós da Plaza de Mayo, povos originais. De 2004 a 2008, 300 organizações sociais aderiram à Coalizão e conseguiram consenso em 21 pontos. Outro diferencial importante é a abrangência da pesquisa acadêmica feita em relação a leis semelhantes existentes na Europa, nos Estados Unidos e na própria América Latina. Eles buscaram aquilo que havia de melhor e mais atualizado e construíram uma proposta a partir de experiências consagradas no mundo. Com participação social de verdade. Grande parte das organizações deu contribuição técnica ao texto. No projeto, estão lá as remissões: proposta apresentada pela associação tal.

Como foi a acolhida do governo ao projeto de lei?
Leal – A vontade política da presidente Cristina Kirchner representou um impulso determinante. Ela encaminhou o projeto ao Congresso, que aprovou a lei. Mas como é que essa lei agregou 300 organizações, como é que as pessoas saíram às ruas e se envolveram na causa se os grandes meios de comunicação, que são contra, boicotaram a divulgação? Como é que você coloca pessoas na rua para defender uma lei de comunicação? Elas saem em defesa de posto de saúde, escola… mas comunicação, lei de meios… é uma coisa muito distante.

Na Argentina funcionou porque a TV pública atuou em defesa dos interesses públicos. Tem um programa chamado 678, que a faz a crítica da mídia e fazia diariamente uma discussão sobre a lei. E é uma TV pública de alcance nacional. Diferente daqui, onde nossas TVs públicas não alcançam todo o país. A TV pública da Argentina conseguiu concretizar a importância da lei para o dia a dia das pessoas. Com uma comunicação democrática, que oferece mais alternativas, você é uma pessoa melhor situada na sociedade. Tem mais condições para decidir sobre a sua vida. É bom esclarecer que o que está em discussão, com essa lei, é a radiodifusão; não é a imprensa, em geral. Ninguém está mexendo com jornais impressos. A lei é de radiodifusão, de audiovisual. Porque a radiodifusão é uma concessão do governo.

O que significa ser uma concessão pública?
Leal – Os canais de radiodifusão operam em espaços finitos, que são públicos, regulados pelo Estado, em nome da sociedade, justamente para evitar privilégios. Mas, na América Latina, ao longo da história, esses espaços foram sendo ocupados por empresas privadas, com fins comerciais. E os governos nunca tiveram força, poder, nem vontade política para estabelecer regras mais rígidas sobre como deve ser essa ocupação. Isso vale também para o Brasil. Essa lógica, que é a lógica do capital, determina uma diminuição de empresas que ofertam os serviços. É a lógica da concentração, igual em qualquer setor da economia. O sujeito tem um supermercado na esquina e, se for possível, tenta comprar o mercadinho ao lado e se tornar uma rede monopolista. No caso de supermercados e outros ramos, no Brasil, existe o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que faz um controle. Mas na radiodifusão não há controle.

Foi o que ocorreu na Argentina?
Leal – Sim. E o maior expoente dessa concentração, lá, é o Grupo Clarín, que se tornou um monopólio em função de sempre ter jogado a favor do vento que sopra mais forte, ou seja, de ter apoiado os governos dominantes. É um grupo que não surgiu com essa posição, mas foi se consolidando nesse papel a partir da ditadura militar na Argentina. O problema é que nesse cenário, de concentração, não há pluralidade de ideias. A ideia que circula é única, uma vez que o detentor dos meios de comunicação é o mesmo. Eu costumo dar o exemplo do Rio Grande do Sul, onde o Grupo RBS tem o principal jornal, a principal rádio, um canal de TV, que é a Globo… aí é o mesmo articulista político que o sujeito ouve quando acorda e liga o rádio, depois lê no jornal, e à noite assiste na TV.

As empresas foram chamadas para o debate?
Leal – Claro que sim. E foram convidadas a participar da Coalizão, o Clarín, inclusive. Só que se recusaram. E depois recorreram à Justiça. Como acontece aqui, né? Quer dizer, judicializaram um processo que era político. Com isso, conseguiram um retardo de três anos – a lei foi aprovada pela presidente em 10 de outubro 2009. Perderam todas as instâncias. A lei tem um impulso político do executivo, um respaldo do legislativo e a sanção judiciária.

Quais são os avanços, na prática?
Leal – A lei tem 166 artigos, é minuciosa. No geral, tem como avanço ampliar a possibilidade de expressão para setores que sempre foram impedidos de se expressar pelo radio e pela TV. Só para se ter uma ideia do impacto de uma legislação como essa, em Bariloche, por exemplo, os povos originais já montaram uma rádio a partir da lei, ocupando um espaço do espectro. Porque na Argentina, assim como é no Brasil, o espectro hoje é ocupado predominantemente por canais comerciais. E dá margem à criação de monopólios. Assim, a lei divide o espectro em três setores: estatal, privado comercial e privado não comercial – este último é semelhante às nossas emissoras comunitárias, operadas por organizações sem fins lucrativos. Portanto, pela nova lei, o Clarín não pode manter suas 240 concessões de TV a cabo. Precisam ser reduzidas para 24. Esse é o X da questão.

O que é exigido em relação a conteúdos?
Leal – As rádios não estatais têm que ter um mínimo de 70% de produção nacional e 50% de produção própria, para estimular contratação de pessoas. E devem veicular 30% de música nacional distribuída por toda a programação. As rádios universitárias devem incluir em sua programação pelo menos 60% de produção própria. Na TV aberta, é preciso ter 60% da produção nacional; 30% da produção própria, que inclui notícias locais; e 30% da produção local independente, nas estações localizadas em cidades com mais de 1.500.000 de habitantes, 15% onde há entre isso e 600 mil habitantes, e um mínimo de 10% em outros locais. Outro aspecto positivo está nas faixas etárias. A lei estabelece que toda a programação é restrita para menores de 13 anos entre 6h e 22h. Das 22h às 24h, tem limitação de 18 anos. E, a partir da meia noite, é livre. Essas faixas têm de ser precedidas de um anúncio de 30 segundos – não é passar rapidinho, não – para explicar que, a partir desse horário, a programação é imprópria para menores de tantos anos.

O projeto prevê mecanismos de fiscalização e controle das novas regras?
Leal – Esse é outro aspecto positivo da proposta. Institui a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (ASFSCA), que tem a função de interpretar, aplicar e executar a lei. Esse órgão é composto por vários conselhos de representação da sociedade, abrigando prestadores privados, rádios universitárias, meios de comunicação públicos e trabalhadores da mídia. É responsável, por exemplo, pela Defensoría do Público de Serviços de Comunicação Audiovisual, uma agência que vai receber consultas, queixas e reclamações do público. Outro conselho interessante é o da Comunicação Audiovisual e Crianças, composto por organizações sociais com experiência comprovada na área de crianças e adolescentes.

Como foi a reação das empresas de comunicação à sanção da Lei de Mídia?
Leal – Todos se adequaram e apresentaram seus planos de adequação. Eles tinham um ano para se preparar, a partir da vigência da lei, marcada para 7 de dezembro de 2012. A única exceção foi o Grupo Clarín. Novamente, entraram com um recurso. [Até o fechamento desta edição, em 29 de janeiro, a implantação da lei continuava suspensa por decisão judicial.] No caso de uma nova outorga, o novo operador tem que se comprometer a manter o quadro de trabalhadores.

E no Brasil, como está a questão da regulação dos meios de comunicação?
Leal – Aqui é uma longa e triste história. A história da radiodifusão no Brasil começa em 1923, com a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro criada por Roquette Pinto como um clube de ouvintes. As pessoas se cotizavam para ouvir radio. Por isso as emissoras tinham esses nomes: Rádio Sociedade, Rádio Clube… A partir das década de 1930 o rádio já passa a ser visto como um empreendimento comercial promissor. Em 1932, o governo Vargas, que é visto como estatizante nessa área, cedeu aos interesses privados. O Estado podia ter assumido o controle, como foi na Europa, onde a privatização só foi ocorrer na década de 1980. Mas ele entregou para os interessados, donos de jornais… o próprio Roberto Marinho, que já tinha o jornal O Globo, em troca de apoio político. A partir daí, se rompeu a possibilidade de você ter emissoras públicas fortes no Brasil. A radiodifusão se tornou uma mercadoria como qualquer outra. E segue assim até hoje.

A TV, na década de 1950, segue a mesma linha.
Leal –  Pois é, os que tinham concessão de rádio diziam: a TV é apenas um ampliação tecnológica do rádio; portanto, nós temos direito às concessões. Então, quem tinha rádio passou a ter direito à televisão, ampliando a concentração. Agora, com a TV digital, eles usaram o mesmo argumento. E ganharam. A TV digital, que vai aumentar o número de frequências, deveria ser licitada… mas não, virou uma “atualização tecnológica” da TV analógica. Houve até uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal, que não foi aceita. Teria sido importante discutir o mérito dessa ação. Afinal, são novas frequências outorgadas sem licitação – o que, a meu ver, caracteriza um nítido privilégio.

Como é a atual lei de comunicação brasileira?
Leal – É de 1962. No governo João Goulart, nesse ano, foi promulgado o Código Brasileiro de Telecomunicações, que é o que está, com vários remendos, em vigor até hoje. Para a época, guardadas as devidas proporções, principalmente as tecnológicas, era o equivalente à lei de meios da Argentina. Estabelecia novas regras para o período de concessão, por exemplo. Só que 52 artigos foram derrubados no Congresso Nacional porque os radiodifusores já exerciam um forte lobby no Parlamento. E, mesmo os artigos que vigoram até hoje, não são respeitados. Um deles, por exemplo, é o que estabelece um limite de até 25% de publicidade na programação. Bom, você tem emissoras que a publicidade ocupa 100% da programação… vendem tapetes, anéis, tudo… o tempo todo… e mesmo a Globo, se somar merchandising com publicidade, dá muito mais que os 25%. Aliás, merchandising é proibido pelo Código de Defesa do Consumidor. Toda publicidade deve ser explicitamente apresentada como tal, mas não há fiscalização e os abusos tornam-se rotineiros.

O que foi feito da proposta de modernização, desenvolvida no governo Lula?
Leal – Está nas mãos da presidente Dilma Rousseff, segundo me disse o próprio Franklin Martins, então ministro da Comunicação Social, e responsável por articular o debate nacional em torno desse tema. Ele promoveu, inclusive, um seminário internacional em Brasília. Nós precisamos urgentemente de uma lei desse tipo. Mas a nossa tradição é de resistência da grande imprensa e falta de força do governo para bancar a mudança, como fez a presidente argentina. Segundo alguns colegas que estudam esse setor, de 1988 para cá, desde a Constituição Federal, 19 anteprojetos foram feitos mas nenhum foi enviado ao Congresso. O último é esse, elaborado pelo Franklin Martins.

A grande imprensa difundiu a ideia de que uma nova lei traria censura à imprensa. Foi essa a imagem que a população recebeu. A própria presidente Dilma deu declarações, recentemente, de que não vai aceitar propostas “que restrinjam a liberdade de imprensa”. 
Leal – Pois é… como não existem meios de grande alcance para dizer que isso não é verdade, a população acaba sendo levada a acreditar nessa imagem. Os grandes meios se apropriam de um conceito de fácil entendimento pelo público, como o da censura, e usam isso para confundir a opinião pública. Uma nova lei é o oposto da censura! Seu objetivo maior é ampliar o número de vozes capazes de serem ouvidas na sociedade. Hoje são poucos os grupos privilegiados que podem usar os canais de rádio e TV. Na verdade, quem sofre censura são aqueles que não encontram espaços para se manifestar. Enfrentar esse problema não é fácil, mas sem solucioná-lo a democracia não se consolida. Os governos brasileiros têm relutado muito em levar à frente uma lei de meios, temerosos das reações dos grandes grupos midiáticos. Há também o desgaste de enfrentar os lobbies no Congresso. Mas são riscos que é preciso correr. Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner ousou e está vencendo a batalha.

*Laurindo Leal é professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, diretor e   apresentador do programa VerTV, exibido pela TV Brasil e pela TV Câmara,  e colunista da Revista do Brasil e do site Carta Maior.

Fonte: A Rede

Imagem: Tv em Revista UFF

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