Comum: uma alternativa política ao neoliberalismo

Por Eleutério Prado.

A Boitempo acaba de publicar no Brasil o livro novo da uma dupla de pensadores radicais Christian Laval e Pierre Dardot. Na obra anterior, A nova razão do mundocomo já se sabe, tratam do neoliberalismo que, para eles, não consiste na reabilitação extemporânea do mercado como “ordem natural” e, assim, do laissez-faire; ele versa, isto sim, pela imposição de sua essência como modo de vida, como “ordem moral”, isto é, como uma “lógica normativa global”. Antes de ser uma mera ideologia ou um receituário de política econômica, o neoliberalismo apresenta-se como uma racionalidade que quer estruturar o comportamento tanto dos governantes quanto dos governados. Para reafirmar e fazer sobreviver o capitalismo, ele quer se consolidar nas instituições da sociedade e, assim, nas condutas e nas consciências individuais, implantando “um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (Laval e Dardot, 2016, p. 17).

O novo livro, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, é uma espécie de complemento do anterior. Se o primeiro faz a crítica do neoliberalismo, este outro, que agora aparece em português, procura mostrar como se deve enfrentá-lo. Visa, assim, manter a esperança de que se possa derrotá-lo no futuro por meio de um feixe de lutas bem orientadas, as quais nascem localmente, mas sempre se espraiam e se fundem na escala global. Se o propósito do neoliberalismo é afirmar a propriedade privada e, com ela, a acumulação insaciável de capital, por meio da prescrição ilimitada da norma da concorrência, aquilo que o contraria deve estabelecer o princípio do comum e, com ele, a preservação da vida humana e do ambiente natural, institucionalizando práticas de cooperação democrática em todos os domínios. O livro quer mostrar, portanto, que há alternativa ao capitalismo, mesmo se parece que esta não existe:

“O porvir parece estar em suspenso. Vivemos um momento estranho, desesperante e inquietante, em que nada parece possível. O porquê não tem nenhum mistério; não se deve a nenhuma eternidade do capitalismo, mas sim ao fato de que ele não enfrentou ainda obstáculos suficientes. O capitalismo continua exibindo sua lógica implacável, ainda que a cada dia demonstre sua temível incapacidade para trazer solução para a crise e para os desastres que engendra” (Dardot e Laval, 2017, p. 15).

Uma sequência de movimentos históricos produziu, como se sabe, essa sensação de impotência que ora se experimenta: aquilo que mais abalou a confiança num futuro pós-capitalista foi sem dúvida o afundamento econômico e político do “socialismo real”; ademais, já no curso de sua decadência, a partir dos anos 1980, viu-se a ascensão avassaladora do reformismo neoliberal, assim como o adesismo da socialdemocracia e, assim, a sua descaraterização. A partir da crise de 2008, se o neoliberalismo entrou em crise, o que se viu foi o renascimento da política da extrema direita com a sua carga de ódio, xenofobia, misoginia, enfim, de nacional-populismo. Como, então, recuperar a esperança? É possível superar o capitalismo? É justo ainda aspirar por uma nova forma de organização da sociedade? Há forças sociais capazes de realizá-la?

Em primeiro lugar, segundo os autores, é preciso notar que não há alternativa à luta sem trégua para superar o capitalismo e a sua racionalidade dominadora de mundo. Pois a sua continuidade e, assim, o aprofundamento inevitável de sua lógica de exploração, ameaça hoje a própria existência da humanidade. Ele não só ameaça as condições de vida do planeta, mas também promove uma guerra econômica entre os seres humanos da qual resultam muitos perdedores, precarização da força de trabalho, desigualdade de renda e riqueza crescente, assim como o esvaziamento da democracia. Na verdade, o capitalismo sob a regência neoliberal requer que o governo do povo seja posto entre aspas sempre que possa ameaçar o sistema. E é isto faz com que prevaleça uma tendência para instituir o estado de exceção.

Segundo Laval e Dardot, à medida que essa nova razão do mundo vai se impondo e se sobrepondo às práticas tradicionais, ela não pode deixar de consumir cada vez mais os “comuns” herdados, os quais são necessários à existência e a continuidade da vida humana em sociedade. Sem ar puro, por exemplo, não pode haver boa respiração e, sem esta, não há vida. Ademais, conforme a nova razão do mundo progride, ela reforça o caráter imperativo do sistema econômico e, assim, impede cada vez mais que os seres humanos possam governar-se a si mesmos, escolhendo o futuro que desejam. Nesse sentido, conforme avança, consuma uma tragédia, a “tragédia do não-comum”.

E essa tragédia, por isso mesmo, suscita a emergência de uma oposição que quer aplastar tanto o mercado como o Estado. O primeiro porque ele é a forma concreta da sociabilidade competitiva. O segundo porque não se pode mais confiar no poder estatal como regulador das condições de operação do que Karl Polanyi chamou de “moinho satânico”. Eis que o Estado – e a história do socialismo real mostra isso com certa clareza – apenas pode criar “formas coletivas de propriedade privada” que nunca deixam de favorecer uma classe dominante. Em consequência, a esperança civilizatória passa e tem de passar a recair na reposição, por meios institucionais, dos velhos comuns, assim como na criação de novos que se mostrem necessários. Eis que a ideia do “comum” assim se alevanta como a verdadeira alternativa ao neoliberalismo.

Longe de ser uma pura invenção conceitual, tem sido a formula dos movimentos e correntes de pensamento que buscaram opor-se à tendência principal de nossa época: a extensão da propriedade privada a todas as esferas da sociedade, da cultura e da vida. Nesse sentido, o termo “comum” designa não o surgimento de uma ideia eterna, mas a emergência de uma forma nova de se opor ao capitalismo — inclusive, de visar a sua superação. Trata-se, igualmente, de um modo de voltar as costas definitivamente ao comunismo estatal. O Estado, convertido em proprietário de todos os meios de produção e de administração, aniquilou metodicamente o socialismo, o qual foi concebido como um aprofundamento da democracia política – e não como a sua recusa (Dardot e Laval, 2017, p. 21).

A luta pelos comuns não é uma ideia na cabeça de filósofos inconformados. Ao contrário, ela está inscrita na prática corrente de muitos movimentos sociais e culturais que vêm se opondo bravamente ao capitalismo seja na esfera mercantil, seja na esfera do Estado empreendedor. O livro de Laval e Dardot, em consequência, não se apresenta como uma estrela que quer guiar uma massa de almas vagantes e perdidas numa modernidade vista como tardia. Ele não tem por vocação ser um instrumento intelectual da vanguarda, mesmo se deseja permanecer no campo revolucionário. O princípio que o orienta não é o do centralismo, mas apenas o da democracia.

O seu propósito consciente é apreender e reforçar essa dinâmica que já está contrariando de múltiplas formas e em muitos lugares o dinamismo cego do capital. O seu objetivo, pois, é “refundar o conceito de comum de forma rigorosa”, conectando esse esforço às práticas correntes da esquerda anticapitalista. A sua meta é questionar incisivamente o fundamento filosófico, jurídico e econômico do capitalismo, desvelando o que ele reprimiu e esmagou historicamente por meio da instituição sempre mais extensiva da propriedade privada.

A ideia de que o homem é um animal comunitário é muito antiga. E ela contraria, como se sabe, a ideia moderna do “homo œconomicus”, privilegiada sempre pela economia política, a ciência burguesa por excelência. E esta, como se sabe, erige-se em última análise para defender e promover a acumulação de riqueza na forma abstrata. Diante do avanço sem medida do capitalismo por meio agora do neoliberalismo, a luta pelos comuns ressurge como um grito contra a destruição dos fundamentos últimos da vida humana. Para enfrentar o princípio de competição desenfreada, essa luta reaparece como busca por formas de vida em comum, radicalmente democráticas. Eis que a verdadeira riqueza é a riqueza concreta apenas suficiente para criar a vida boa.

Nessa perspectiva, por “comuns”, Laval e Dardot designam tudo aquilo que está posto como condição objetiva da atividade coletiva das pessoas; por “comuna”, em complemento, indicam o modo de organização caracterizado pelo autogoverno das próprias pessoas que se valem dos “comuns”. Eles empregam o termo “princípio do comum” para assinalar o princípio político que institui os “comuns” enquanto formas sociais que permitem uma vida plenamente civilizada.

O livro Comum tem três partes. Na primeira, “A emergência do comum”, Laval e Dardot fazem uma investigação histórica para indicar as condições da emergência da luta pelos comuns na contemporaneidade, à medida mesmo em que eles passaram a ser deliberadamente soterrados pelo neoliberalismo. Ao mesmo tempo, buscam nessa primeira parte submeter à crítica as concepções que surgiram no bojo dessa luta para defender os comuns, assim como para delinear os contornos de sociedades pós-capitalistas. Na segunda parte, Direito e instituição do comum, eles trabalham no campo da ciência jurídica com o fim de encontrar as bases normativas ou institucionais dos comuns em geral. Finalmente, na terceira parte, eles dedica-sem às Propostas políticas. Aí, “sem pretender redigir um programa”, eles fazem proposições concretas para instituir comuns, para emancipar o trabalho, para organizar a democracia participativa, para construir uma federação de comuns, etc.

Segundo Laval e Dardot, a chegada de um mundo novo já pode ser pressentida nos dilaceramentos, nos impasses e nos alvoroços do tempo presente. Mas não se sabe se “esta comoção desemboca no reino tirânico e cada vez mais absoluto do capital ou em uma nova revolução democrática e anticapitalista em escala planetária” (Laval e Dardot, 2017, p. 649). Pois, o que dolorosamente se sabe hoje é que não se tem mais aquela certeza de antigamente — a saber, que o desenrolar da história conduzirá a humanidade, necessariamente, para um mundo melhor. Sabe-se também, por um lado, que o neoliberalismo é uma racionalidade política que se impõe institucionalmente e, por outro lado, que para combatê-lo é preciso lutar politicamente pela institucionalização de outra racionalidade.

Laval e Dardot propõe que o comum, enquanto um princípio político, seja o fundamento dessa nova racionalidade que pretende substituir a racionalidade do mercado total. O que ele significa? Por meio da ação coletiva, os seres humanos se dão o direito de deliberar sobre o que não é apropriável privada ou estatalmente, assim como sobre as normas que regem o uso responsável dos bens postos na condição de comuns. Mas a auto-gestão dos comuns não implica, segundo eles, a supressão total da propriedade privada e dos mercados, mas apenas a sua severa limitação; eis que o capital pode existir em pequenos nichos, mas não pode governar as mulheres e os homens, determinando as condições de sua sobrevivência. Ademais, para que sobrevenha uma sociedade verdadeiramente civilizada, enquanto “comunas” e “democratas”, julgam que é necessário recuperar a grandeza da ideia de revolução:

“É possível e desejável atualmente retomar a ideia de uma revolução que nada tem a ver com uma espécie de apocalipse milenarista ou uma marcha triunfal em direção a um porvir radiante. Numa entrevista intitulada “O que é uma revolução”, Cornelius Castoriadis quis dissipar uma ilusão: ‘A revolução não significa nem guerra civil nem um banho de sangue. A revolução é uma mudança de certas instituições centrais da sociedade mediante a atividade da própria sociedade: uma autotransformação da sociedade em curto espaço de tempo’” (Laval e Dardot, 2017, p. 656).

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Onde encontrar

“Se Alain Badiou escreveu sobre a ‘hipótese comunista’, podemos dizer que este novo livro de Dardot e Laval constitui nada menos do que a ‘tese’ comunista!” – Christian Dunker

“Comum é um ambicioso ensaio que busca construir um marco teórico para uma nova alternativa política.” – El País

“Esses dois especialistas em Marx se lançam a uma louca aventura intelectual e política: reabilitar a ideia do ‘comum’.” – Jean-Christophe Féraud, Libération

Fonte: Blog da Boitempo.

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