Como os supremacistas hindus estão destruindo a Índia

Há sete décadas, a Índia se mantém unida por sua constituição, que promete igualdade a todos. Mas o BJP, partido do atual primeiro-ministro Narendra Modi, está transformando a nação em um lugar em que algumas pessoas são consideradas mais indianas que outras

Logo após o início da violência, em 5 de janeiro, Aamir estava do lado de fora de uma ala residencial na Universidade Jawaharlal Nehru (JNU), no sul de Deli. Aamir, um estudante de doutorado, é muçulmano e pediu para ser identificado apenas pelo seu primeiro nome. Ele veio devolver um livro a um colega de classe quando viu 50 ou 60 pessoas se aproximando do prédio. Eles carregavam barras de metal, bastões de críquete e pedras. Um deles balançava uma marreta. Um dos slogans que mais gritavam era: “Atirem nos traidores da nação!”. Mais tarde, Aamir soube que haviam passado a meia hora anterior agredindo uma reunião de professores e alunos no caminho. Seus rostos estavam mascarados, mas alguns ainda eram reconhecíveis como membros de um grupo de estudantes nacionalistas hindus que se tornou cada vez mais poderoso nos últimos anos.

O grupo, o Akhil Bharatiya Vidya Parishad (ABVP), é a ala juvenil do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS). Fundado há 94 anos por homens apaixonados pelos fascistas de Mussolini, o RSS é uma ‘holding’ do supremacismo hindu: o Hindutva, como é chamado. Dado seu papel e tamanho, é difícil encontrar um análogo para o RSS em qualquer outro lugar do mundo. Em quase todas as religiões, a fonte da teologia conservadora é seu clero hierárquico, organizado de forma centralizada. Essa teologia é reformulada para se tornar um projeto de governo religioso em outros lugares, por outros partidos. O hinduísmo, no entanto, não tem uma igreja principal, nem um pontífice, ninguém para ordenar ou ditar as regras. O RSS, então, autonomeou-se tanto o árbitro do significado teológico, como o arquiteto de um Estado-nação hindu. Ele tem pelo menos 4 milhões de voluntários, que fazem juramentos de lealdade e participam de exercícios quase militares.

A palavra frequentemente usada para descrever o RSS é “paramilitar”. Em seu quase século de existência, foi acusado de planejar assassinatos, provocar tumultos contra minorias e atos de terrorismo. (Mahatma Gandhi foi morto a tiros em 1948 por um homem do RSS, embora o RSS afirme que ele havia deixado a organização então.) O RSS, por si só, não se envolve em política eleitoral. Mas entre seus grupos afiliados está o Partido Bharatiya Janata (BJP), o partido que governa a Índia nos últimos seis anos e que, sob o primeiro ministro Narendra Modi, vem transformando a Índia em um estado nacionalista hindu autoritário.

Eram quase sete horas da noite quando Aamir viu a multidão que se aproximava. Nesse horário, no meio do inverno, o campus da JNU, talvez a universidade estatal mais influente da Índia, fica assustadoramente sombrio. Seu campus se espalha por mais de 400 hectares de terra arborizada, isolada por um muro do resto do sul de Déli. As alas residenciais ficam em bosques de acácia e borragem. Para chegar a qualquer lugar do portão é preciso uma bicicleta, um riquixá motorizado ou uma longa caminhada. Os 8.000 estudantes da universidade parecem compartilhar um mundo remoto particular. Desde a sua fundação em 1969, porém, a JNU funcionou como um microcosmo da política nacional. As ideologias de seus alunos e professores – exibidas na hiperativa ação política de seus estudantes – são tradicionalmente liberais, esquerdistas e seculares. Através de seus acadêmicos, a JNU tem frequentemente moldado a política do governo; seus graduados vão para a mídia, para grandes organizações sem fins lucrativos, para o sistema de justiça ou para partidos de esquerda. Ao longo dos anos, a JNU tem simbolizado, em grande medida, a razão do ressentimento que o conservador e etnocêntrico BJP tem pelo país que governa hoje. A universidade tem sido como uma pedra no sapato do BJP, atrapalhando o partido a cada passo.

Quando ele viu a multidão, Aamir correu para os dormitórios, subiu as escadas e entrou no quarto de seu amigo. Eles trancaram a porta e depois se esconderam na varanda. Eles ouviram os agressores quebrando vidros, invadindo salas e espancando estudantes. Aamir silenciou seu telefone. “Eu tinha certeza de que eles quebrariam meus braços e pernas se me pegassem”, disse. A multidão veio com uma intenção clara, visando estudantes e professores que criticavam o BJP: um estudante muçulmano da Caxemira, professores com vínculos com a esquerda política, membros de grupos que defendiam castas carentes. A presidente da união estudantil da JNU, Aishe Ghosh, recebeu um corte profundo na cabeça e seu braço foi quebrado. Os quartos dos aliados da ABVP, no entanto, foram poupados.

Mais tarde, constatou-se que quadros da ABVP da própria universidade haviam sido reforçado por estudantes de outras universidades – e talvez por pessoas que não eram estudantes, pessoas que eram apenas o músculo do RSS. Rohit Azad, que passou duas décadas na universidade, primeiro como estudante e depois como professor de economia, me disse que, apesar de ter visto sua parcela de violência entre grupos de estudantes, “essa coisa – esse ato de atrair agressores de fora – isso foi sem precedentes”. Era como se os jovens republicanos tivessem convidado alguns bandidos de extrema-direita para se juntarem a eles em Berkeley, espancando estudantes negros e hispânicos, jovens democratas e qualquer pessoa que expressasse apoio a Bernie Sanders.

Vídeos dos ataques vazaram pelas mídias sociais em tempo real. A polícia foi chamada, mas não se mexeu para conter a violência. Em vez disso, um grupo de policiais se instalou no portão da JNU, não permitindo que ninguém entrasse. Yogendra Yadav, um ativista político, chegou ao portão às 21h. Noventa minutos depois, os agressores surgiram, ainda mascarados e armados. Mesmo assim, a polícia não deteve ninguém. Em vez disso, eles foram autorizados a se afastar como se nada tivesse acontecido. Quando o colega de Yadav tirou fotos, Yadav foi atingido por um aglomerado de homens, derrubado e chutado no rosto. A polícia não fez nada. Mais tarde, em um vídeo, Yadav identificou um funcionário local da ABVP entre os que o haviam atingido. Em um comunicado, a ABVP culpou os ataques a “capangas de esquerda”, mas na televisão os membros admitiram que homens e mulheres mascarados e armados no campus faziam parte da ABVP. Ainda assim, a polícia de Déli não apresentou queixa. “A polícia deu cobertura aos capangas, deu-lhes passe livre no campus”, disse Yadav. Um professor da JNU foi além, alegando que: “A polícia é cúmplice”.

O ataque à JNU marcou o meio de uma temporada de protestos em todo o país, provocada por uma nova lei. A Emenda à Lei de Cidadania, aprovada pelo parlamento em 11 de dezembro de 2019, fornece um caminho rápido para a cidadania de refugiados vindos para a Índia do Afeganistão, Paquistão e Bangladesh. Refugiados de todas as religiões do sul da Ásia são elegíveis – todas as religiões, exceto o Islã. É uma política que se ajusta perfeitamente ao RSS e à demonização dos muçulmanos pelo BJP, a maior minoria religiosa da Índia. Para os apoiadores do Hindutva, o país estará se o Islã for expulso. A lei foi um forte sinal dessa ambição e uma ferramenta útil para ajudar a alcançá-la.

Desde dezembro, milhões de indianos foram às ruas para se opor a essa visão de seu país. O governo lutou contra eles proibindo reuniões, desligando serviços de internet móvel, detendo pessoas arbitrariamente ou coisa pior. Depois que protestos começaram na Jamia Millia Islamia, uma universidade islâmica em Déli, policiais dispararam gás lacrimogêneo e tiros com balas de verdade, agrediram estudantes e destruíram a biblioteca. Enquanto as manifestações se espalhavam pelo estado de Uttar Pradesh, a polícia invadia e vandalizava casas muçulmanas em represália. Os detidos eram espancados; um homem relatou ter ouvido gritos em uma delegacia a noite toda. (Em várias declarações, a polícia alegou estar agindo em legítima defesa, ou para impedir a violência, ou erradicar a conspiração.) Pelo menos 20 manifestantes morreram devido a ferimentos a bala. Os oficiais da polícia negaram disparar contra as multidões, apesar de só a polícia carregar armas visíveis nessas manifestações.

Ainda assim, os protestos persistem em fevereiro. Em Shaheen Bagh, um bairro no sudeste de Déli, centenas de milhares de pessoas compareceram ao longo de nove semanas para participar de uma manifestação, sem data definida para terminar, em que as pessoas permaneciam sentadas. O BJP adotou uma visão implacável de todo esse dissenso. Em uma ocasião, Yogi Adityanath, um clérigo hindu que é ministro-chefe de Uttar Pradesh, disse: “Se eles não entenderem as palavras, entenderão as balas”. Um dos ministros de Modi usou “Atirem nos traidores da nação!” como uma chamada e resposta em um comício – o mesmo slogan que a ABVP havia levantado na JNU.

Nos seus 72 anos como país livre, a Índia nunca enfrentou uma crise mais séria. Suas instituições – seus tribunais, grande parte de sua mídia, suas agências de investigação, sua comissão eleitoral – já foram pressionadas a se alinharem às políticas de Modi. A oposição política é murcha e enferma. Mais está por vir: a ideia do Hindutva, em sua expressão mais completa, acabará por desfazer a constituição e destruir a trama do tecido da democracia liberal. O supremacismo hindu, Hindutva, terá que fazer isso: as sutilezas constitucionais não são compatíveis com o modelo do BJP para um país em que as pessoas são classificadas e avaliadas de acordo com sua fé. O estado de agitação que toma a Índia desde a aprovação da Emenda à Lei de Cidadania – a febre dos protestos, a brutalidade da polícia, a crueldade da política – apenas reflete o quão existencialmente altas as apostas se tornaram.

O sucesso do RSS e do BJP, nos últimos seis anos, deve-se em parte ao hábil envenenamento do discurso público. Políticos, meios de comunicação doutrinados e esquadrões de trolls de mídia social passam os dias inteiros a mentir, a polarizar e demonizar. Entre seus estratagemas está a invenção de insultos a serem dirigidos a seus oponentes, para mostrar com um único rótulo por que, para o bem da Índia, não se deve confiar nessas pessoas. “Presstitute“[uma mistura de press, imprensa, com prostitute, prostituto/a] é um deles, aplicado a jornalistas liberais para acusá-los de vender sua cobertura por dinheiro ou influência. “Sickular” [uma junção de sick, doente, com secular] é outro, nascido da opinião do RSS de que o secularismo indiano é uma versão demente de conciliação com as minorias.

O termo “tipo JNU” refere-se a esquerdistas de todas as faixas – desde os maoistas ansiando pela revolução, até os moderados que abominam o Hindutva. Tradicionalmente, a JNU se especializou em humanidades, então os “tipos JNU” também passaram a ser desprezados por seu humanismo brando – por sua oposição à pena de morte, aos abusos de direitos humanos do exército ou às repressões do estado na Caxemira. Enquanto estudam por anos e anos financiados pelo governo, reclamam os apoiadores do BJP. É suficiente inserir os “tipos JNU” na categoria mãe: “antinacional”.

Nos primeiros anos, a JNU absorveu a ideologia do homem que deu seu nome à universidade – Jawaharlal Nehru, primeiro primeiro-ministro da Índia – e do seu partido, o Congresso. Estavam a apenas uma geração desde a independência, e Nehru e o Congresso, tendo liderado a luta pela liberdade, exerciam enorme autoridade moral. O espírito da universidade e seu próprio currículo foram construídos com base nos valores de Nehru, diz Rakesh Batabyal, autor de JNU: The Making of a University. Era secular em sua visão de mundo, à esquerda do centro em sua economia e tecnocrático em seu pensamento sobre política. “Estudantes vinham de todo o país”, disse-me Batabyal. “Havia um pluralismo na universidade que Nehru queria para a Índia.”

Nas décadas seguintes, o lugar do poder na política estudantil migrou para a esquerda, para grupos que se aliavam a partidos comunistas nacionais. A ABVP, que se opunha a todos esses ‘ismos’ – secularismo, pluralismo, socialismo, comunismo – permaneceu à margem, assim como seus pares na política nacional. A direita hindu não fez nada de especial durante a luta pela liberdade, de fato, o RSS não participou dos movimentos de massas que forçaram os britânicos a sair da Índia. Por quase meio século após a independência, os partidos políticos apoiados pelo RSS permaneceram no deserto político. “Eles costumavam dizer que, na década de 1980, se você era um apoiador em um evento da ABVP, você ia com o rosto coberto por uma manta”, disse-me Azad, professor da JNU. “Era assim embaraçoso ser considerado membro desse grupo.”

Então uma mesquita foi destruída e a Índia mudou. Durante anos, o RSS alegou que a Babri Masjid, uma mesquita do século 16 na cidade de Ayodhya, ficava no local exato em que a divindade hindu Ram nasceu. O local merecia um templo, declarava o RSS, não uma mesquita construída por um rei muçulmano invasor. No final de 1990, um líder do BJP percorreu o coração da Índia por dois meses, em um Toyota com ar-condicionado que parecia uma carruagem, para despertar hindus e exigir que um templo substituísse a mesquita. (O homem que estava sentado na cabine do Toyota, fazendo a logística dos comícios, era Narendra Modi.) Em dezembro de 1992, uma multidão de homens do RSS e do BJP arrasou a mesquita, a polícia observou a ação sem intervir. Nas semanas seguintes, houve tumultos religiosos na Índia, particularmente em Mumbai. Duas mil pessoas foram mortas. A obsessão do BJP com a mesquita de Babri foi sangrenta e divisiva, mas também lhes rendeu um novo capital político. Em 1996, o BJP chegou ao poder pela primeira vez.

No campus da JNU, paralelamente, a fortuna da ABVP floresceu: conquistou seu primeiro cargo na organização dos estudantes em 1992, três cargos importantes em 1996 e em 2000, conquistou a própria presidência da organização. O homem que ganhou o cobiçado posto, Sandeep Mahapatra, entrou na JNU em 1997 – numa época, ele me disse, em que os apoiadores da ABVP estavam orgulhosos e expressavam abertamente sua lealdade. Ninguém mais enrolava mantas em seus rostos. Parte do motivo da ascensão da ABVP, disse Mahapatra, foi o cansaço com as ideias de esquerda. “A União Soviética havia se desintegrado. Mesmo lá, a esquerda foi derrotada”, disse Mahapatra, agora advogada em Deli. “Os estudantes descobriram que havia algum espaço para o pensamento nacionalista”.

Os anos 90 foram uma década de desilusão com o socialismo e o comunismo, e também na JNU. Os oponentes de Mahapatra, disse ele, “estavam sempre falando de coisas abstratas – o que Mao havia dito ou o que Marx havia dito”. A ABVP, por sua vez, explorou as mesmas falhas no campus que o BJP explorou na sociedade indiana. “Conversávamos sobre Caxemira, sobre o templo de Ram, sobre a nação hindu.” Todos esses itens foram cruciais na lista de desejos do RSS: tomar posse total da região disputada da Caxemira, derrotando o Paquistão no processo; construir o templo em Ayodhya; dar primazia aos hindus na Índia. Brigas e discussões entre grupos de estudantes, disse Mahapatra, eram comuns. Uma vez, enquanto falava em um palco, ele foi ferido por pedras atiradas contra ele por seus oponentes.

No século 21, as trilhas da política da Índia e da JNU divergiram um pouco. Em todo o país, os antigos partidos comunistas perderam sustentação. Em Bengala Ocidental, uma cidadela da esquerda, os comunistas foram eliminados do governo do estado em 2011, tendo se mantido no poder por 34 anos.

O Congresso, administrado como uma loja de família pela dinastia de Nehru, tornou-se complacente e altamente corrupto. Nas eleições parlamentares de 2014, conquistou apenas 44 cadeiras – uma queda histórica. O deslize foi rápido e brutal. No campus, os grupos de estudantes esquerdistas se fragmentaram; novas facções baseadas em castas surgiram. Mas todos eles decidiram, disse Mahapatra, se unir contra a ABVP. Seus números aumentaram, mas seus triunfos eleitorais estancaram. Não existe um presidente sindical da ABVP desde Mahapatra, mas o poder e a autoridade do grupo se expandiram de maneira a seguir o rastro de caos liberado pela direita hindu sob Modi.

Quando Modi ganhou seu primeiro mandato como primeiro-ministro em 2014, ficou difícil saber como ler o resultado. Aqueles que votaram no BJP estavam frustrados com as alternativas ou acreditavam que Modi era o milagreiro econômico que alegava ser? Eles simplesmente optaram por desconsiderar o fato de que ele havia permitido que multidões de fanáticos hindus matassem centenas de muçulmanos em tumultos durante sua administração do governo em Gujarat em 2002, ou eles aprovavam ativamente essa evidente agenda antimuçulmana?

Somente depois que Modi assumiu o poder muitos eleitores do BJP começaram a expressar claramente suas simpatias pelo Hindutva. Essas revelações foram repentinas e chocantes, a tal ponto que você se perguntava se esses eleitores haviam silenciosamente ansiado por uma nação hindu pura bem antes de Modi. Os relacionamentos romperam como aconteceram após a eleição de Trump ou o referendo do Brexit. Famílias brigavam em grupos do WhatsApp e amigos brigavam. “Antes de 2014, você encontrava um aluno pró-ABVP e um aluno de esquerda que eram amigos”, me disse Cheri Che, um aluno de doutorado em história. “Depois de 2014, isso ficou cada vez mais difícil.”

Na JNU, a influência da ABVP aumentou. Che alegou que os cargos de professores e administração foram ocupados por pessoas que tinham conexões com o RSS ou a ABVP. A certa altura, ele disse, os “guardas” – ou supervisores – de quase todos os alojamentos residenciais foram retirados e substituídos por simpatizantes da ABVP. Além do campus, os nacionalistas hindus se sentiram tão empoderados que formaram gangues para linchar muçulmanos e hindus de casta inferior, sob suspeitas débeis de que suas vítimas estavam contrabandeando vacas ou de posse de carne bovina. (No hinduísmo, a vaca é reverenciada como sagrada.) Desde 2014, pelo menos 44 pessoas foram assassinadas e 280 feridas. As gangues agiram impunemente, às vezes filmando a si mesmas, como se soubessem que nunca seriam processadas – e se mostraram corretas. Em uma cidade de Uttar Pradesh, um homem muçulmano, tão espancado que acabaria morrendo, foi arrastado ferido pelo chão. Uma foto mostrava um policial abrindo caminho na multidão enquanto a multidão arrastava o corpo atrás dele.

No campus da JNU, os estudantes muçulmanos se sentiam cada vez mais aflitos. No dia de 2017, em que Yogi Adityanath, o membro linha dura Hindutva, foi eleito Ministro-Chefe de Uttar Pradesh, um estudante muçulmano da Caxemira estava caminhando para uma cantina. Era quase meia-noite. “Eu vi um cara, um defensor incondicional da ABVP”, disse o estudante, que pediu para não ser identificado. “Assim que ele me viu, ele disse: ‘Agora que o Yogi está aqui, mataremos e devoraremos os muçulmanos’, disse ele abertamente. Havia muitas pessoas por perto. Você não teria ouvido algo assim antes.”

Em fevereiro de 2016, Kanhaiya Kumar, um comunista que era o presidente da união dos estudantes, fez parte de um protesto no campus contra o enforcamento de um homem da Caxemira condenado por terrorismo. A ABVP chamou equipes de notícias de canais pró-BJP. Nos dias seguintes, esses canais exibiram imagens que pareciam mostrar Kumar e outros gritando slogans pedindo o desmembramento da Índia. Para os espectadores, os vídeos confirmaram o que eles já suspeitavam: que a JNU era uma estufa de traição. Algumas semanas depois, descobriu-se que os vídeos foram adulterados.

Independentemente disso, os líderes do BJP continuaram se referindo aos estudantes da JNU – e a qualquer pessoa que os apoiasse – como “antinacionais” e traidores. A polícia de Déli prendeu Kumar e o acusou com base em uma lei de sedição centenária. Quando a polícia o levou ao tribunal para sua audiência, eles encontraram uma multidão de dezenas de advogados e pelo menos um legislador do BJP gritando slogans. “Atirem nele!”, eles gritavam. Então, dentro do tribunal, enquanto a polícia estava ao seu lado, a multidão espancou Kumar. Depois, disse uma reportagem, um dos agressores afirmou com satisfação: “Nosso trabalho está feito”.

Após o protesto de fevereiro de 2016, o estudante da JNU vindo da Caxemira soube que a polícia havia visitado sua casa em Srinagar, na Caxemira, e anotado uma série de detalhes sobre ele e sua família. Ele nem estava no protesto, disse ele. Então ele descobriu que todo estudante da Caxemira que ele conhecia na JNU tinha uma história semelhante para contar. Isso o abalou. “Decidimos – um grupo nosso – que ficaríamos de fora das coisas relacionadas à política”, disse ele. “Somos vulneráveis aqui.” Há pouco mais de um ano, quando ele estava indo para a biblioteca do campus uma manhã, viu um caminhão grande cheio de pessoas gritando slogans sobre o templo Ram em Ayodhya. Um conjunto de alto-falantes no caminhão, tocava músicas do livro de canções do Hindutva. Acompanhando o caminhão, ele disse, havia “pessoas em bicicletas, pessoas a pé – e eram pessoas de fora, não estudantes”, disse ele. “Pensei: ‘Os brigões entraram.’”

Em 2016, o governo de Modi instalou, à frente da JNU, um professor de engenharia chamado M Jagadesh Kumar. Os estudantes e a imprensa descreveram Kumar como um fiel membro do RSS – parte da campanha mais ampla do governo para plantar indicados do RSS em universidades e instituições culturais. Kumar negou qualquer ligação com o RSS.

Na noite de 5 de janeiro, à medida que os ataques no campus aumentavam, Kumar enviou uma mensagem para a polícia via WhatsApp, de acordo com um relatório da polícia. Em vez de pedir ajuda para conter a multidão, ele pediu que a polícia ficasse estacionada do lado de fora do portão. (Mais tarde, para um repórter, ele disse que queria que a segurança do campus resolvesse os ataques, que ele chamou de “infelizes”.) Somente às 19h45, um funcionário da JNU pediu à polícia que entrasse no campus para intervir; a violência terminou. Os agressores ainda estavam no local horas depois, mas a universidade e a polícia os deixaram sair, como se tivessem parado para uma visita e, então, estivessem correndo para pegar o último ônibus para casa.

Mesmo antes dos ataques da ABVP, a JNU já estava fervendo. Por semanas, a união estudantil se opôs agressivamente a um aumento nas taxas, boicotando as matrículas e forçando a suspensão das aulas. Quando começaram as manifestações nacionais contra a Emenda à Lei de Cidadania, o tema foi incorporado às mobilizações no campus. Para muitos estudantes, a administração da JNU, o RSS e o BJP fazem parte da mesma máquina.

Por si só, a nova lei desafia a constituição da Índia, que é um longo documento impregnado pela determinação de tratar castas e religiões com igualdade escrupulosa. Escrita entre 1946 e 1949, foi um exercício de criação de uma nação – unindo, em um estado moderno gigante, comunidades fragmentadas que viviam em todo o país. Para isso, uma de suas principais promessas era que a cidadania não tivesse conexão com a religião. A exclusão dos muçulmanos, feita pela Emenda à Lei de Cidadania viola essa promessa.

Mas o ato é mais ameaçador quando lido em conjunto com outras medidas recentes do governo, que, no conjunto, pretendem redefinir quem pertence e quem não pertence ao solo indiano. Essas medidas podem causar perplexidade, mesmo para os indianos.

Por um lado, algumas das funções das medidas tomadas parecem se sobrepor. Por outro lado, constantemente referem-se a elas pelo tipo de abreviaturas inevitáveis na vida indiana. A Emenda à Lei de Cidadania é a CAA; o Registro Nacional de Cidadãos é o NRC; o Registro Nacional da População é o NPR. No Twitter, hashtags sobre o problema # CAA-NPR-NRC se transformam em uma sopa de letrinhas.

O governo começou a criar um registro de cidadãos há cinco anos, no nordeste do estado de Assam. Os deltas ribeirinhos e os arrozais de Assam ficam do outro lado de uma fronteira porosa com Bangladesh, e os migrantes cruzam as duas direções há décadas. A chegada de naturais de Bangladesh – muitos deles muçulmanos – tornou-se uma questão política acalorada em Assam nos anos 70 e 80. Os migrantes foram acusados de tomar empregos, usurpar terras e inscrever-se em benefícios sociais, apesar de não serem elegíveis para isso.

Governos anteriores, bem como a suprema corte da Índia, concordaram que era necessário um registro de cidadãos para distinguir migrantes de locais. Nem sempre é fácil provar a cidadania na Índia; em um país com mais de 1 bilhão de pessoas, menos de 100 milhões têm passaporte, enquanto outros documentos, emitidos em nível local por oficiais corruptos ou ineficientes, podem não ser confiáveis. Para o BJP, a ideia de registro de cidadão serviu tanto como uma tática eleitoral lucrativa, quanto como uma cunha religiosa. Em um discurso em 2014, Modi disse a uma audiência em Assam que, os migrantes hindus seriam acomodados, enquanto outros “infiltrados” seriam enviados de volta para Bangladesh. Em abril de 2019, Amit Shah, atual ministro do Interior de Modi, disse que os imigrantes de Bangladesh estavam “comendo o grão que deveria ser destinado aos pobres”. Eles eram “cupins”, acrescentou Shah. O BJP os pegaria, um a um, e os “jogaria na Baía de Bengala”.

Para entrar no registro, as pessoas tiveram que provar primeiro que um ancestral morava em Assam antes de 1971 e, em seguida, que elas eram relacionados a esse ancestral. Em um país com listas eleitorais irregulares e escrituras de propriedades, com grafias inconsistentes de nomes e documentação irregular, isso sempre seria difícil. Quando o registro de cidadãos começou em 2015, Assam se revirou por seus documentos. As famílias pobres, preocupadas em ficar apátridas, gastaram seu dinheiro com advogados e documentos. Alguns cometeram suicídio. Os tribunais dos chamados estrangeiros, criados para ouvir apelos, foram incentivados a tirar as pessoas do registro; quanto mais estrangeiros você identificar, maiores serão suas chances de permanecer no tribunal.

Em 2019, um exame do Vice News de cinco desses tribunais constatou que nove em cada dez casos envolviam muçulmanos. Dos muçulmanos que apelaram, 90% eram declarados imigrantes ilegais; para os hindus, o número era de 40%. O governo planeja reunir todos esses “estrangeiros” e transportá-los para preencher quase uma dúzia de campos de internação no estado. (Um já está sendo construído: um complexo de 28.000 metros quadrados e paredes duplas para 3.000 pessoas, não muito longe da fronteira com o Butão. O centro possui seis torres de vigia e uma torre de luz de 100 metros de altura.) O BJP está tão satisfeito com esse processo, que deseja compilar um registro pan-indiano de cidadãos, estendendo o poder de exclusão do processo a uma população de 1,3 bilhão.

O registro de Assam foi tornado público em agosto passado, e 1,9 milhão de pessoas, por terem sido omitidas, tiveram que se apressar para interpor recursos. Quatro meses depois, o governo aprovou a Emenda à Lei de Cidadania. Nesse grande mecanismo para determinar a “indianidade”, haverá mais um componente: um registro populacional, acumulando dados demográficos sobre os “residentes habituais” da Índia.

Mas mesmo essa contagem aparentemente passiva da população pode transmutar em mais uma peneira de cidadania. Após a atualização do registro da população em setembro, as listas de residentes serão publicadas em cada localidade. Então, qualquer pessoa na localidade – autoridades, vizinhos, vigilantes, informantes de RSS – pode fazer uma objeção à inclusão do seu nome. Nesses casos, você será marcado como um cidadão “duvidoso” – um “eleitor D” – com a perspectiva de ser internado sem parar ou expulso da Índia. Neste ar abafado de paranoia, qualquer um poderia teoricamente se ver marcado como “duvidoso”: muçulmanos, dissidentes, jornalistas e trabalhadores políticos da oposição. O BJP conhece suas prioridades. “Nenhum hindu, sikh, jainista, budista, cristão ou parsi”, um novo livreto do BJP garante aos leitores, “encontrará seu nome na lista de eleitores-D”. Os muçulmanos, novamente, são facilmente notados por sua ausência.

O jogo final não é para desaguar 180 milhões de muçulmanos para fora da Índia. Não pode ser, por razões práticas. Para onde eles iriam? Mesmo aqueles especulativamente identificados como imigrantes ilegais de Bangladesh não podem ser enviados de volta para casa, a menos que Bangladesh os aceite. O que o BJP está buscando é o que seus fundadores sempre quiseram: um país que é hindu antes de qualquer outra coisa.

Na década de 1940, Muhammad Ali Jinnah, fundador do Paquistão, e Vinayak Savarkar, um dos principais ideólogos do RSS, eram defensores de uma teoria de duas nações. “A única diferença”, diz Niraja Jayal, cientista político que estuda a democracia indiana, “era que Jinnah queria que o território da Índia dividida fosse dividido em dois, com uma parte para os muçulmanos. Enquanto Savarkar queria hindus e muçulmanos na mesma terra, mas com os muçulmanos vivendo em uma posição subordinada aos hindus.” Essa cidadania desigual era o que o RSS considerava – e ainda considera – correto e adequado, disse Jayal. “Então você obtém uma cidadania com gradações, uma cidadania com hierarquias. Você não precisa de genocídio, não precisa de limpeza étnica. Isso faz o trabalho suficientemente bem.”

Os primeiro e segundo mandatos de Modi agora parecem distintos. Após 2014, o BJP consolidou seu sucesso ao vencer uma série de eleições estaduais. O governo iniciou seu registro de cidadania em Assam, mas suas outras políticas importantes afetaram todos os indianos de maneira uniforme: um novo imposto sobre bens e serviços, implementado caoticamente; um cancelamento de notas em moeda de alto valor, destinadas a conter a corrupção, mas que, em vez disso, derreteu a economia; e um esquema de identificação biométrica orwelliano. Os piores atos de violência de direita – os linchamentos de carne bovina – foram cometidos por vigilantes encorajados pela ascensão do BJP, e muitas vezes apoiados por líderes do partido. (Dois anos atrás, depois que oito linchadores condenados foram libertados sob fiança, um dos ministros de Modi os convidou para sua casa e colocou guirlandas florais neles.) Em todo caso, os linchamentos não eram diretamente atribuíveis ao governo da mesma forma que foram os eventos desde a reeleição de Modi no ano passado.

Em agosto de 2019, três meses após o início de seu segundo mandato, o governo suspendeu uma disposição constitucional que há muito concede autonomias especiais ao disputado estado fronteiriço de Jammu e Caxemira. Além disso, o estado foi dividido em dois, e as metades foram colocadas sob controle federal. Para evitar a resistência, tropas invadiram o já fortemente militarizado vale da Caxemira e os serviços de internet em todo o estado foram paralisados. Eles ainda não foram restaurados adequadamente; cada dia que passa estabelece um novo recorde para a maior paralisação da internet por um governo em qualquer lugar do mundo. Os principais políticos da oposição da Caxemira foram presos; não se sabe deles desde então. Justificando uma ordem de detenção draconiana, o governo argumentou que um desses políticos merecia ser detido por causa de sua capacidade “de convencer grande número de pessoas em seu eleitorado a sair e votar”.

O RSS também conseguiu a solução que queria em Ayodhya. Desde 1992, uma batalha legal é travada para determinar o que deve ser feito com o local da mesquita demolida. Em novembro, a suprema corte – que parece cada vez mais flexível às necessidades do governo – decidiu que a mesquita havia sido destruída ilegalmente, mas que a terra deveria, no entanto, abrigar um templo. Era como se um ladrão, depois de repreendido severamente, fosse convidado a se mudar para a casa que ele roubara. A Emenda à Lei de Cidadania foi aprovada em dezembro. Em meio ano, com uma velocidade e ousadia que deixaram a Índia atordoada, o governo havia cumprido alguns dos principais itens da lista de desejos do RSS.

Dada a ferocidade e a resistência aos protestos contra o governo desde dezembro, parece desconcertante que nenhuma mobilização semelhante tivesse acontecido contra nenhum dos movimentos anteriores do governo. A partir das eleições de 2019 em diante, durante vários meses, parecia que a maioria dos indianos era implicitamente a favor desse início galopante do Hindutva. Por que foi a Emenda à Lei de Cidadania que eletrificou o público em protesto? Pode ter sido em parte “a palha que quebrou as costas do camelo”, disse Jayal, mas também pode ser que a lei tenha induzido a um tipo mais amplo e mais primitivo de insegurança.

“Com a Caxemira, grandes segmentos da Índia foram convencidos ao longo do tempo de que é uma região problemática – que é um estereótipo injusto, mas talvez isso tenha dificultado a reação das pessoas à sua mudança de status”, disse ela. “Com o Babri Masjid, houve uma fadiga por um problema que se arrasta há décadas.” A Emenda à Lei de Cidadania, no entanto, “promete toda uma gama de possibilidades desagradáveis”. Apesar das garantias do governo aos hindus e outros não-muçulmanos, “todo mundo está aflito por saber que precisam procurar documentos, embora, claro, seja pior para os muçulmanos”, disse ela. “Existe a perspectiva de assédio. Existe o medo de ser declarado ilegal. Existe o medo do desconhecido. ”

Esse senso de perigo pessoal é acompanhado por um senso de perigo nacional. A Índia pode parecer seduzida por injustiças – os abortos da lei, as iniquidades de riqueza e casta, a venalidade, as feridas e os machucados do corpo político. O que ainda a faz resistir é a tentativa de agarrar o corpo e reorganizar seus próprios ossos – sua constituição. Nehru, Ambedkar e os outros autores da constituição da Índia projetaram o país para ser uma democracia liberal e secular. Até há pouco tempo, essa ideia parecia tão impossível de ser desalojada que até políticos claramente não-seculares se sentiam compelidos a prestar um serviço público. “O secularismo é um artigo de fé para nós”, disse Modi durante sua campanha de 2014. Até então, como membro do RSS, ele já estava comprometido com o conceito de nação hindu há 43 anos.

Quando os governos ameaçaram se separar dessa base constitucional, encontraram uma oposição popular generalizada. Depois que a primeira-ministra Indira Gandhi suspendeu as liberdades civis – de expressão, de assembleia e de devido processo legal – em 1975, ela teve que reprimir ondas de protestos pelos 18 meses seguintes, até que cancelou o estado de emergência. As recentes agitações contra a Emenda à Lei de Cidadania são semelhantes: desafiar uma lei que se intromete no desenho fundamental da Índia.

Pela primeira vez desde 1947, quando o subcontinente passou por sua sangrenta partição na Índia e no Paquistão, uma política está sendo construída inteiramente em torno da premissa de exclusão – de decidir quem não pode ser indiano ou calibrar o quão indiano alguém pode ser. O foco radical na identidade é parte de um padrão global, é claro, mas é especialmente perigoso em um país com construção tão frágil quanto a Índia. Ainda é, como era em 1947, uma terra repleta de tantas identidades – traçadas multidimensionalmente nos eixos de casta, gênero, classe, religião, língua e etnia – que a única maneira de fazê-la funcionar é aceitar que todos pertencem igualmente à Índia.

Este princípio igualitário, portanto, não tem sido apenas um ideal; foi um acordo necessário para a sobrevivência da Índia. Quando um governo começa a defender que alguns sejam considerados menos indianos do que outros, subtraindo primeiro uma identidade e depois outra como se fossem blocos de madeira Jenga, a estrutura fica instável.

Ou a união se dissolve ou é mantida unida apenas por um regime autoritário de punho de ferro – do tipo que desencadeia a violência pela polícia, como em Uttar Pradesh, ou por auxiliares do partido sob proteção policial, como na JNU. O perigo colocado pelo BJP é que ele tanto está se preparando para ser esse regime, como está guiando a Índia para uma instabilidade da qual nunca poderá se recuperar.

*Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução de César Locatelli

 

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