Como os livros de história registrarão o impeachment

Dilma durante evento oficial em Brasília. Foto: Uéslei Marcelino/Reuters
Dilma durante evento oficial em Brasília. Foto: Uéslei Marcelino/Reuters

Por João Paulo Charleaux.

A passagem dos anos tornará a cassação do mandato de Dilma Rousseff um evento ligado cada vez mais aos livros de história do que aos sites noticiosos e às páginas de jornais.

A saída definitiva da presidente da República do cargo em razão de manobras fiscais foi determinada em 31 de agosto de 2016 pelos votos dos senadores. No lugar dela, assumiu o vice, Michel Temer.

Na versão da oposição e de uma parte da sociedade, trata-se de uma decisão justa que põe fim a um governo marcado pela irresponsabilidade com as contas públicas, num processo legal e legítimo, apoiado pela maioria da opinião pública e dos parlamentares, sob chancela do Supremo.

Para os governistas e outra parte da sociedade, foi um golpe contra um governo legítimo, conduzido por meio de uma campanha midiática massiva, em meio a um processo cheio de falhas legais e selado por políticos envolvidos em casos de corrupção cujo interesse maior é assumir o governo por meio de uma manobra.

A construção de uma narrativa

O Nexo procurou cinco estudiosos da história do Brasil para saber como é feita a construção de uma narrativa histórica e como os eventos dos dias atuais poderão ser retratados nos livros daqui anos depois.

O vencedor influencia a versão

Guilherme Casarões

Professor de Relações Internacionais na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing)

“Tudo dependerá dos desdobramentos de longo prazo do processo e de quem, no limite, detiver o controle das ‘narrativas’ a serem estabelecidas no futuro. A desconstrução da ditadura militar só foi efetivamente iniciada, como projeto historiográfico e político, no contexto da transição democrática. E ainda há muitos pontos passíveis de novas interpretações, que dependem do acesso a depoimentos e documentos novos. O mesmo ocorreu com o governo Collor, cujo trauma político causado levou muitos acadêmicos a evitarem o período. Isso gerou duas consequências: a ausências de estudos sistemáticos sobre aquele processo de impeachment e a crise que o antecedeu; e o triunfo de uma narrativa que, embora correta, simplificou muitos dos fenômenos ocorridos e contribuiu para uma ‘maniqueização’ do período, que predomina nos livros de história e no senso comum.

Em outras palavras: se o grupo que hoje assume o poder for capaz de mantê-lo nos próximos ciclos eleitorais, é bem possível que o impeachment de Dilma seja retratado como uma inflexão positiva na história do Brasil. Se este novo projeto fracassar, daqui a uma década poderemos nos arrepender, como sociedade, das apostas que foram feitas durante esse momento crítico.”

Vivemos a ansiedade do ‘isso vai entrar para a história’

Rodrigo Bonciani

Professor adjunto de História na Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana)

“Essa pergunta está relacionada aos contextos universitário e escolar dos próximos 30 anos: quem serão os historiadores, os professores e os estudantes do amanhã? Aqui, eu arrisco dizer que a imagem da primeira presidente mulher, seu histórico de militância contra a ditadura e o problema desse movimento vir acompanhado de uma nova onda reacionária vão pesar. Primeiro vai ter uma escrita jornalística, que vai contar uma versão de quem é a favor do impedimento, na onda do discurso dominante que temos lido na mídia. Ainda nesse primeiro período, vai aparecer a versão oposta, que interpreta o processo como golpe.

Existe uma ansiedade atual em viver o histórico – ‘isso vai entrar pra história’, ‘esse momento é histórico’. Pense, desde o 11 de Setembro, quantas vezes se anunciou essa ideia? Aliás, a pergunta que vocês me fizeram antecipa o evento, afinal o que vai ser votado hoje é a instauração do processo. Uma história acadêmica e suas diferentes versões vão demorar para aparecer – veja que nem a do impeachment do Collor foi escrita; ainda estamos no momento de consolidação de uma historiografia referente à ditadura. Já a ideia de que estamos no fechamento de um período da história do Brasil faz sentido – e acho que esse marco existe independente do resultado desse processo.”

A história não faz um registro único

Ângela de Castro Gomes

Professora titular de história do Brasil na (UFF) Universidade Federal Fluminense

“É preciso entender que a história não faz um registro único, como se ela fosse um tribunal, como se não tivesse historicidade. As narrativas históricas sempre sofrem o impacto dos momentos em que estão sendo produzidas. Nesse caso, como em muitos outros, haverá diversas interpretações, que variarão ao longo do tempo, embora possam se aproximar em alguns pontos e se afastar em outros, podendo também haver pontos recorrentes. É normal que as interpretações da história mudem ao longo do tempo.  Até porque, os historiadores constroem suas interpretações com documentos e confronto de versões sobre um evento. Basta ver como as interpretações sobre o golpe de 1964 e o regime que se seguiu, mudaram. Inicialmente, falava-se muito da participação dos militares, pouco sobre o papel dos civis e menos ainda sobre os apoios da sociedade civil. Não é casual que os historiadores insistam, até hoje, na liberação de documentos, ainda em poder das Forças Armadas no Brasil.

Então, seja lá o que se diga hoje sobre esse momento político, muito provavelmente haverá ajustes e oscilações ao longo do tempo. E, embora a compreensão de um fato não mude completamente, seus elementos fundamentais podem ganhar ênfases diferenciadas. Tudo o que se registra hoje sobre os fatos que estamos vivendo é de grande valor, mas os historiadores ainda vão lidar muito com tudo isso, com vagar, com documentos, ao longo do tempo que virá.”

Historiador não lida com o passado em si, mas com interpretações

Clóvis Gruner

Professor de História na UFPR (Universidade Federal do Paraná)

“A questão é um exercício difícil, porque a rigor não há como saber, de antemão, como se narrará os eventos presentes no futuro. Por outro lado, penso que o ofício do historiador, independente da complexidade dos acontecimentos, implica sempre e necessariamente o cotejamento de diferentes narrativas e documentos. Nesse caso, especificamente, acredito que será necessário levar em conta não apenas a multiplicidade de documentos disponíveis (jornais, revistas, TV, blogs, fotografias, depoimentos orais, etc…), mas as igualmente múltiplas – e por vezes contraditórias – interpretações que, desde o presente, já informam as maneiras pelas quais o impeachment está a ser narrado.

Explico: se o historiador não lida com o passado em si, mas com os muitos artefatos que já oferecem interpretações do passado produzidas quando este ainda era o presente vivido pelos seus contemporâneos, no futuro será preciso levar em conta justamente essas múltiplas, e por vezes contraditórias, interpretações. Não para julgar o que realmente aconteceu – por exemplo, se foi ou não um golpe – mas para alargar a compreensão que poderemos ter, daqui a alguns anos, dos acontecimentos coevos [de duração contínua, eterna]. E isso se fará, como disse anteriormente, a partir da leitura atenta das fontes e das vozes dissonantes de que elas serão a representação.”

Vozes insubordinadas ainda se farão escutar

Luana Saturnino Tvardovskas

Professora de história na Unicamp (Universidade de Campinas)

“Não há como, nesse momento de profunda consternação perante a contestável ruptura política que retira do poder a presidenta Dilma Rousseff, nos ampararmos em uma dada forma de fazer história, que busca justificar ou glorificar o acontecimento por meio de interpretações baseadas numa síntese coerente e absoluta. Se atentarmos ao filósofo francês Michel Foucault, é preciso escutar “o ronco surdo da batalha”, observando a complexidade e as múltiplas faces de nosso presente histórico. Esse é um momento singular, forjado por relações de forças em contínuo movimento e tensão. As resistências não serão abafadas e as vozes de insubordinação que fazem parte de nossa nação, ainda que hoje um pouco mais silenciosas, mais cedo ou mais tarde se farão escutar.

Precisaremos discutir, no desenrolar desse momento social e político, sobre como transformar a tradição antidemocrática que ainda está incrustada em nossa cultura. Sobretudo, devemos refletir enormemente sobre os perigos dos discursos e práticas políticas que, sob a máscara de uma suposta “legalidade” e “constitucionalidade”, justificarão medidas neoliberais já rechaçadas pela maioria da população pobre desse nosso imenso país. Atemorizar essa população que ainda vive na miséria com ameaças de retorno a uma pobreza ainda maior é a grande crueldade desse golpe midiático, civil e político. Onde encontrarão uma vida digna? Em mais neoliberalismo? Certamente não. É preciso ocupar tudo.”

Fonte: Nexo.

 

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