Como o suicídio de um PM no Rio reabriu o debate sobre condições de trabalho na polícia

Por André Cabette Fábio.

O policial militar Douglas Vieira se matou com um tiro na cabeça na noite de sábado (28) em sua casa, na zona norte do Rio. O suicídio foi transmitido por um vídeo ao vivo em sua conta no Facebook, e tem gerado debate sobre as condições de trabalho nas polícias no Rio de Janeiro. Vieira tinha 28 anos.

Lotado no 4º Batalhão (Queimados), ele tinha uma filha de um ano e, apesar de não ter se divorciado oficialmente, morava em uma residência separada da de sua esposa, Rayane dos Santos. Ele exercia o cargo de soldado, o mais baixo na hierarquia da Polícia Militar. De acordo com informações repassadas pela esposa ao jornal “Extra”, Vieira havia sido internado quatro vezes no departamento de psiquiatria do Hospital Central da instituição. A última internação durou uma semana e ocorreu após ele tentar suicídio ingerindo bebidas e medicamentos. A Polícia Militar afirmou, por meio de nota, que está prestando apoio aos familiares do policial.

É impossível apontar uma causa para a decisão de Vieira de tirar a própria vida. Mas sua atividade nas redes sociais e relatos de pessoas próximas mostram que, além de questões pessoais, o soldado vinha sofrendo com muitos dos problemas que são constantes entre policiais no Rio de Janeiro.

Atrasos salariais

Em uma publicação realizada no dia 11 de janeiro em sua conta no Facebook, Vieira reclamou ao governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) sobre pagamentos atrasados. Ele fez isso com uma paródia da canção “Deu Onda”: “eu preciso receber, minhas contas vão vencer, Pezão”.

Ao “Extra” sua mulher Rayane dos Santos afirmou: “a gota d’água foi o atraso nos salários. Era muito certinho com as contas. Nos últimos meses, muitas vezes me ligava desesperado. Dizia que estava endividado e não sabia como iria pagar o aluguel”.

O governo estadual vem atrasando desde novembro de 2016 os salários de servidores ativos e inativos da área de segurança pública do Estado, que envolve não só a Polícia Militar, mas também Polícia Civil, Secretaria de Administração Penitenciária e órgãos ligados a essas instituições: Corpo de Bombeiros, Defesa Civil e Secretaria de Segurança.

Segundo reportagem do “G1”, alguns policiais chegaram a ficar sem dinheiro para pagar a condução até o trabalho.

De acordo com a Secretaria de Estado da Fazenda do Rio de Janeiro, responsável pelos pagamentos, os salários de novembro foram integralmente quitados em 16 de janeiro, e os referentes a dezembro, no dia 18 de janeiro.

O 13º salário e o pagamento relativo ao Regime Adicional de Serviço durante a Olimpíada ainda não foram pagos. Nesse regime de trabalho, policiais e bombeiros trabalham horas extras, em alguns casos de maneira compulsória.

Excesso de trabalho

Em entrevista ao “Extra”, Clenilson Cruz, padrinho de casamento e amigo de Vieira, afirmou que o excesso de trabalho também vinha trazendo sofrimento ao policial.

“Ele andava muito triste, muito para baixo. Além da falta de pagamento, ele estava se divorciando e trabalhando muito, fazendo segurança privada”, afirmou.

‘Bicos oficiais’

A maioria das Polícias Militares do Brasil possui regras proibindo que seus integrantes exerçam atividades remuneradas fora das corporações. No Rio de Janeiro, a situação não é tão clara e há uma lacuna na regulamentação da atividade, afirmou em janeiro de 2017 ao Nexo o ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Estado, antropólogo e hoje coronel da reserva e consultor em segurança Robson Rodrigues da Silva.

Mas é comum que policiais trabalhem para complementar suas rendas, principalmente como seguranças privados. Isso significa que, mesmo vivendo uma rotina de trabalho cansativa, que exige que fiquem alertas, lidem com violência e empunhem armas, os policiais trocam tempo de descanso por ainda mais trabalho.

Também em entrevista ao Nexo, o ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo José Vicente da Silva afirmou que o ideal seria que policiais trabalhassem no máximo oito horas seguidas durante dois dias e depois folgassem 40 horas para se recuperar do estresse físico e mental.

Mas é comum que as escalas façam com que trabalhem 12 horas ou até 24 horas seguidas e depois folguem por até 48 horas.

Silva afirma que não há justificativa operacional para isso, e que esse tipo de escala serve, extraoficialmente, para viabilizar que os policiais tenham trabalhos paralelos, o que torna mais difícil que se recuperem de suas rotinas exigentes.

Há, porém, uma institucionalização do “bico” dos policiais. No Rio, por exemplo, funciona desde 2011 um programa que permite que policiais militares atuem durante sua folga junto a órgãos públicos.

No ano seguinte, o Rio instituiu o RAS (Regime Adicional de Serviço), que cria a possibilidade de que tanto policiais militares quanto civis realizem “bicos oficiais” para as próprias polícias, complementando a falta de efetivo.

O programa é particularmente criticado porque qualquer policial pode ser convocado para trabalhar no RAS, desejando ou não, caso os chefes da instituição julguem que haja “circunstâncias especiais, emergenciais ou que prepondere relevante interesse público”.

Em entrevista concedida ao Nexo, a psicóloga Dayse Miranda, coordenadora do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), uma parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro com a Polícia Militar do Estado, afirmou que policiais do Rio de Janeiro têm sido convocados a vender seu tempo livre para a realização de shows, como o Rock in Rio, para a expansão das Unidades de Polícia Pacificadora ou para a segurança da Olimpíada.

Eles ainda não receberam pelo tempo extra que trabalharam nos Jogos Olímpicos.

Como podem ser convocados a qualquer momento para trabalhar pelo Regime Adicional de Serviço, eles têm dificuldade de planejar as próprias vidas, aumentando seu estresse, disse Miranda.

Para a pesquisadora, é sabido que o trabalho extra compromete a saúde dos policiais. “Mas a questão do descanso do profissional não está na agenda da segurança pública.”

Publicado em março de 2016 pelo Gepesp, o livro “Por que policiais se matam?” analisa as causas do suicídio desses profissionais no Rio de Janeiro, e afirma que a falta de tempo de descanso é um fator. Por isso, afirma que tempo para se recuperar deve ser garantido.

Além de permitir descanso e ajudar a diminuir o estresse, jornadas mais curtas permitem que os policiais tenham tempo para se aproximar da família e dos amigos, fortalecendo sua rede de apoio.

Acesso a armas de fogo

Apesar de ter passado por serviços de atendimento psicológico e ter falado abertamente sobre a vontade de se matar, Vieira continuou com acesso à própria arma.

Segundo o livro “Por que policiais se matam?”, o acesso fácil a armas mesmo quando se encontram emocionalmente fragilizados contribui para o suicídio de policiais.

Entre 22 casos de suicídio de membros da Polícia Militar do Rio de Janeiro em 2009 acompanhados pelos autores da obra, 14 mortes, ou 63%, foram causadas por armas de fogo.

Na população geral essa taxa é menor. Dados de 2000 do Sistema de Informação de Mortalidade apontam que 51,5% dos suicídios no Brasil foram por enforcamento. Armas de fogo ficam em segundo lugar, com 19,6% do total.

O livro recomenda que policiais com risco de suicídio tenham suas armas temporariamente apreendidas.

Fonte: Nexo. 

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