Como acontece o processo de “cura gay” dentro de congregações religiosas

Por Marcio Caparica.

“Sentia que tinha que ‘fazer o papel de hétero’ o tempo todo, continuava deprimido, e minha orientação sexual não mudava em nada.” Essas são as lembranças que o publicitário Gabriel (que preferiu usar um pseudônimo), de 26 anos, tem dos dois anos e meio em que se submeteu a processos de “cura gay”. O debate sobre esse tipo de “tratamento psicológico” retornou graças às iniciativas da bancada evangélica. Mas poucos realmente sabem pelo que passam as pessoas que se submetem a esse tipo de “terapia”.

Gabriel compartilhou sua história, na esperança de oferecer alguma esperança para outras pessoas que não veem outra possibilidade para serem felizes além de se submeterem a esse tipo de violência psicológica. Confira a seguir seu relato.

Falta de perspectiva afetiva

Sempre tive atração por homens, mas não havia para mim sequer a possibilidade de viver essa homoafetividade. Sou filho de pastor presbiteriano. Cresci numa cidade do interior de Minas Gerais, onde todos conheciam minha família. Aos 16 anos já tentava compensar meu interesse por outros homens entrando em competições com os amigos para ver quem beijava mais mulheres no Carnaval, esse tipo de coisa. Mas durante a juventude nunca tive qualquer tipo de relacionamento, nem sexual nem afetivo, nem com mulheres nem com homens.

Aos 18 anos tive minha primeira paixão por um homem: um colega de faculdade. Eu havia acabado de me mudar para São Paulo para fazer faculdade, e estava muito sozinho. Essa paixão me trouxe muito sofrimento: não via possibilidade de que esse amor se realizasse. Tentava sair com mulheres, mas nada mudava. Nunca tinha sequer beijado ou me declarado para um homem; não havia essa perspectiva para mim. Fiquei cada vez mais deprimido, até que comecei a tentar me suicidar. Foram três tentativas. Na primeira delas, mandei uma mensagem me despedindo do colega por quem havia me apaixonado, e ele acabou me salvando. Nas outras duas, o medo de ir para o inferno fez com que eu não fosse até o fim. Depois dessa última, esse colega de faculdade entrou em contato com minha mãe, que veio de Minas Gerais para me socorrer.

Quando ela chegou, me encontrou afundado em casa, há vários dias sem trocar de roupa, nem tomar banho, nem ir pra faculdade, nem ir para o trabalho. Ela me perguntou o que estava acontecendo, e eu só chorava; quando ela perguntou se o problema era minha sexualidade, desabei no pranto. A reação de minha mãe foi dizer que a homossexualidade era um erro. Ela deixou claro que estava preocupada com a repercussão em casa, principalmente sobre o que os outros pensariam quando soubessem que o filho do pastor era gay. Disse que eu deveria procurar uma pastoral para que minha orientação sexual fosse revertida. Lembro vividamente da tristeza no rosto de minha mãe quando disse a ela que gostava de homens. Foi o empurrão que faltava para que eu buscasse algum tipo de terapia que “curasse” minha homossexualidade.

As igrejas ofereciam “salvação”

Fiz uma busca na internet e encontrei uma igreja presbiteriana que eu poderia visitar. Depois do culto, fui conversar com o pastor, que ouviu minha história e me disse que, assim como são Paulo tinha um espinho do pecado na carne, eu também tinha; se eu não conseguisse extirpá-lo, teria que viver uma vida de celibato. Aos poucos comecei a conhecer os jovens dessa igreja, que me levaram até a igreja Bola de Neve. Foi então que o processo de “cura” realmente começou.

A igreja Bola de Neve tem um marketing muito bom. As pessoas pensam que essa igreja é bastante liberal porque permite que as pessoas usem dreads etc. Mas a verdade é que eles são extremamente conservadores. Quando passei a integrar suas células, eles me apresentaram ao que chamam de Ministério de Cura e Libertação. Esse é um núcleo da igreja que tenta ajudar as pessoas a se livrarem de vícios como adultério, abuso de drogas… e homossexualidade. Achei que essas pessoas finalmente conseguiriam transformar minha homoafetividade, e passei a me dedicar integralmente às doutrinas que eles pregavam.

Nós fazíamos reuniões coletivas, com por volta de dez pessoas, em que o líder lia trechos da Bíblia e passava ensinamentos. Também havia consultas “particulares”, em que eu ficava numa sala com um terapeuta, conversando, sentado em um sofá, ladeado por duas pessoas. Essas pessoas tinham a função de orar por mim durante toda a consulta. Os “terapeutas” tentavam controlar até detalhes íntimos da minha vida: insistiam para que, se eu tinha que me masturbar, pelo menos o fizesse olhando fotos de mulheres. Uma vez, tentaram tirar o diabo do meu corpo: fizeram com que eu tirasse a camisa, e, enquanto eu estava sentado numa cadeira, insistiam que havia uma serpente nas minhas costas, que havia botado ovos em minha cabeça. Nunca houve violência física, mas a violência psicológica era muito grande.

Tive que jogar fora meus CDs e tirar o alargador da orelha. Não convivia mais com os amigos, passei a usar outros tipos de roupas e até me forcei a namorar uma garota da igreja – hoje me sinto bastante mal por colocá-la nessa situação. Tentavam de todas as formas encontrar uma justificativa para minha sexualidade: perguntavam se eu havia sido estuprado, por exemplo. Até decidirem que a culpa era da minha família: ter uma mãe dominadora e um pai submisso teria me tornado homossexual. Por causa disso, passei a acusar meus pais de serem os responsáveis por meu sofrimento e me afastei também deles. Eu passava óleo de unção na fronte antes de sair de casa, para evitar pensamentos impuros. Combater a maneira como eu sou se tornava um fardo cada vez maior, que fazia com que eu me sentisse cada vez mais diminuído.

Isolamento e discriminação

Por trás das terapias de “cura gays” tocadas por igrejas está uma associação chamada Ministério Ágape, que reúne líderes religiosos de várias congregações. Depois de seis meses sem deixar de sentir atração por homens, busquei uma outra igreja treinada pelo Ágape. Era uma igreja menor, menos famosa. Imaginei que, em um ambiente mais “familiar”, eu teria um acompanhamento mais próximo, que facilitaria o processo.

Em nenhuma das igrejas as pessoas me tratavam como igual. Todos da congregação sabem quem são as pessoas que estão se submetendo ao processo de “cura gay”; por causa disso, muitas vezes evitam conviver com você. Em acampamentos da igreja, havia um desconforto grande entre os homens por causa da minha presença: os rapazes temiam que eu pudesse me interessar por eles. Mesmo conversar com eles era difícil: não tínhamos interesses em comum, e eu sentia que devia ficar “fazendo o papel de hétero” o tempo todo.

Acho importante frisar que não foi por falta de esforço da minha parte que a terapia de “cura gay” não funcionou. Eu me dediquei com afinco. Durante os dois anos e meio em que me submeti a isso, li a Bíblia inteira quatro vezes e meia. Fazia tudo que me orientavam, durante as sessões de terapia e fora delas. Frequentava as sessões promovidas pela igreja e me consultava com terapeutas que os líderes da igreja indicavam. A cada consulta eu achava que dessa vez a questão havia se resolvido, apenas para ficar frustrado quando, pouco depois, percebia que continuava o mesmo. E pior, minha depressão só se agravou durante esse período. Continuava tomando remédios para evitar que eu tentasse me matar novamente.

Uma nova perspectiva

Depois de dois anos e meio sem perceber qualquer resultado, comecei a questionar o que estava fazendo, e a questionar os líderes da igreja. Também foi nesse período que li um livro transformador: Torn, de Justin Lee. Foi a primeira vez que alguém oferecia uma visão que conciliava o cristianismo e a homossexualidade. De repente, descobri que não precisava mais negar minha orientação sexual. Isso tudo aconteceu em 2014, quando o país entrou numa comoção política, e eu percebi que  os amigos da igreja e alguns de seus líderes se alinhavavam com Bolsonaro. Não concordava com esse tipo de posicionamento e senti que tinha cada vez menos em comum com aquelas pessoas. Aos poucos, comecei a me afastar delas.

Isso fez com que eu procurasse outra terapeuta, uma que não estivesse associada ao culto. Com sua ajuda, fiz as pazes com o que sentia e comecei a lidar bem com minha sexualidade. Continuava a frequentar a igreja, mas os outros membros da congregação me tratavam como pária, diziam que eu havia desistido. Deixaram bem claro que ou eu me adequava à maneira como eles pensavam que eu deveria ser, ou teria problemas para me encaixar nos padrões da igreja. Não queriam que eu fosse quem eu realmente era – me senti expulso. Abandonei essa igreja pouco depois. Duas semanas mais tarde, fiz uma tatuagem de uma cruz com um arco-íris no fundo. Sim, é possível ser gay e cristão.

Aos 24 anos, vivi uma nova adolescência: tive o primeiro beijo, o primeiro namoro, a primeira transa. Hoje meus pais dizem que nunca me viram tão feliz e tão saudável. Ainda não falamos abertamente sobre minha sexualidade – eles sabem que eu namoro, mas não tocam no assunto. Sinto que ainda têm a esperança de que a “cura gay” vai acontecer por algum outro caminho. Mas pelo menos não me agridem. Às vezes algum comentário deles me fazem acreditar que estão tentando compreender como sou. Continuo sendo cristão, mas não frequento qualquer igreja – nem mesmo as inclusivas. Não me sinto confortável.

Não sou capaz de condenar alguém que busque um processo de “cura gay”, porque eu mesmo já me submeti a isso. Mas posso dizer tranquilamente que só passa por isso quem não vê outra perspectiva de vida. E isso acontece por falta de informação. Qualquer profissional realmente qualificado ou amigo próximo vai tentar mostrar para a pessoa que é possível viver a homossexualidade de maneira saudável e feliz, mesmo que agora isso pareça impossível. O caminho que trilhei para aceitar minha sexualidade teve que passar por esse tipo de “terapia”, mas hoje vejo que poderia ter me tornado uma pessoa realmente feliz muito mais cedo se houvesse encontrado alguém mais qualificado para me orientar.

Fonte: LadoBi

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