Como a substituição do ‘trabalhador’ pelo ‘empreendedor’ afeta a esquerda

Trabalhadores da EMBRAER antes de assembleia em São José Dos Campos. Foto: Roosevelt Cassio/Reuters
Trabalhadores da EMBRAER antes de assembleia em São José Dos Campos. Foto: Roosevelt Cassio/Reuters

Por João Paulo Charleaux.

O Partido dos Trabalhadores saiu desta eleição municipal de 2016 como uma partido mais fraco e cada vez menos ligado aos trabalhadores. O binômio que justifica o nome da sigla perdeu grande parte do seu sentido original. E da mística de seu propósito de fundação também.

Parte disso diz respeito aos casos de corrupção que envolvem seus principais líderes, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o crescimento de uma oposição liberal na economia e conservadora nos costumes.

Porém, uma outra parte dessa desidratação está relacionada ao fim de um ciclo que, por décadas, nutriu o discurso da luta de classes e da organização sindical, que era alma do PT e da esquerda no Brasil.

A ascensão da classe C, ocorrida em grande medida durante os 13 anos de presidências petistas, também contribuiu para a mudança do perfil social e econômico de uma parcela importante dos brasileiros.

“Há um processo de desconstrução da noção de classes sociais”, disse ao Nexo o antropólogo Carlos Gutierrez. Esse processo “faz com que não pensemos mais a partir da dicotomia operários e patrões, mas sim como colaboradores de um mesmo ideal, sem divergências de interesses. Isso mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, o momento de sua derrocada no mundo.”

Ex-empregados, agora empreendedores, mostram ‘indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda’

O crescimento evangélico tem sido um dos vetores de transformação dessa mentalidade, sobretudo nas periferias. Se nos anos 1970 a Igreja Católica politizava os “trabalhadores”, hoje as igrejas evangélicas politizam os “empreendedores”.

Gutierrez pesquisa especialmente as identidades religiosas nas periferias e a produção social dos evangélicos, em doutorado na Unicamp. Em 2014, ele cursou um semestre de “gestão empresarial” na Igreja Universal do Reino de Deus, igreja à qual o prefeito eleito do Rio, Marcelo Crivella, é ligado.

Para Gutierrez, “a esquerda deveria incorporá-los [os antigos trabalhadores, convertidos em empreendedores, especialmente evangélicos] em seus núcleos partidários e organizações, pois aceitar a diferença e a pluralidade de visões de mundo que esse grupo social carrega é fundamental para a esquerda se transformar e também transformá-lo”.

O pesquisador explica que, entre os moradores de favelas, “53% dos entrevistados atribuía a melhoria de vida ao seu esforço, 24% à fé pessoal e apenas 5% ao governo”. Portanto, “essa descrença com relação à ação governamental na melhoria de vida revela também uma indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda.”

O ‘trabalhador’ está dando lugar ao ‘empreendedor’? Essa mudança é mais forte nas periferias?

CARLOS GUTIERREZ A antiga legislação trabalhista começa a dar lugar à forma mais flexível do ‘colaborador sem vínculo empregatício’, nessa etapa atual do capitalismo. Isso obriga muitos trabalhadores a se tornarem Pessoa Jurídica para continuar em sua atividade. Esse fenômeno compreende uma clara precarização das relações de trabalho e também a queda de arrecadação na Previdência, complicando a receita do Estado. Há uma tendência para que todos sejam empreendedores, uma vez que as regras coletivas de negociação passam a ser substituídas por acordos individuais.

‘No Brasil, 35,4% da população adulta possui negócio próprio, índice superior à China e aos EUA’

A nova classe C – chamada pelo sociólogo Jessé de Souza de ‘batalhadores’ – encontrou no empreendedorismo uma possibilidade de ascensão social. Atualmente, boa parte de moradores das periferias das grandes cidades,  antigos assalariados, ou trabalhadores que ofereciam seu serviço de forma esporádica, dedica-se a um pequeno empreendimento, como bar, lanchonete, costura, salão de cabeleireiro, oficina mecânica.

Hoje, no Brasil, 35,4% da população adulta possui negócio próprio, índice superior à China e aos EUA. Evidentemente, parte desse crescimento pode ser explicado pelo aumento de formalizações de negócios já existentes, mas 45% dos novos empreendedores trabalhavam antes com carteira assinada, o que indica um aumento considerável. Nas favelas, 40% dos moradores deseja ser dono do próprio negócio.

Qual o papel das igrejas evangélicas nessa mudança?

CARLOS GUTIERREZ As igrejas evangélicas tiveram um importante papel no processo de ascensão social brasileiro, em conjunto com medidas como valorização de salário mínimo e diversos programas sociais. Na religião, os fiéis encontraram incentivo e apoio, e desenvolveram sua autoestima, ganhando uma nova esperança para reagir em um cenário completamente adverso. Além disso, a religiosidade evangélica contribui para a construção de um ethos baseado no trabalho duro, ou seja, uma disposição para lutar e aguentar extensas jornadas de trabalho, associadas, em muitos casos, a período de estudo noturno. Muitas dessas pessoas atribuem sua força e resistência à fé e aos ensinamentos ministrados nas igrejas.

‘As igrejas evangélicas foram responsáveis por instaurar um processo de reflexão acerca das relações de trabalho e da desigualdade social no país’

Em minha pesquisa, pude perceber um forte incentivo ao empreendedorismo, encarado por pastores e fiéis como uma solução frente ao cenário de desemprego e de empregos mal remunerados. Essa iniciativa não se reduz apenas a cultos e reuniões, mas há instituições que contam com cursos e oficinas de formação para capacitar seus fiéis a empreender. A Igreja Universal é uma delas. Os fiéis também são frequentemente convidados a refletir sobre o futuro, para estabelecer planos, conseguindo racionalizar a vida.

Porém, o que gostaria de ressaltar é que muito além do incentivo ao empreendedorismo, as igrejas evangélicas foram responsáveis por instaurar um processo de reflexão acerca das relações de trabalho e da desigualdade social no país. Na perspectiva dessas pessoas, a igreja foi fundamental para se revoltarem diante situações de humilhação e de degradação no emprego. Na perspectiva das pessoas que entrevistei e convivi, ser assalariado é estar condenado a ser explorado, a uma vida miserável, sem autonomia e sem realização pessoal. Para eles, a solução se encontra no negócio próprio. Trata-se de uma crítica complexa, pois ao mesmo tempo em que condena o capitalismo, encontra nele próprio uma solução.

Os partidos de esquerda têm como força maior, tradicionalmente, a defesa do direito do trabalhador, da organização sindical e da luta de classes. Que terreno essa mensagem tem encontrado hoje?

CARLOS GUTIERREZ Desde os anos 1970 a esquerda tem abraçado outras causas sociais como o ambientalismo, feminismo, movimento negro e LGBT. Logo, o próprio discurso da esquerda também se fragmentou e hoje a luta social divide espaço com outras bandeiras.

Eu digo isso pois são temas que podem levar setores da sociedade com uma perspectiva mais tradicional, com relação à moral, a rejeitar o projeto político da esquerda, mesmo que no plano econômico estejam de acordo com maior regulamentação da economia e proteção ao trabalhador. Enfim, são diversos os fatores que podem explicar o enfraquecimento da esquerda. A questão da moralidade é um deles.

Novos empreendedores estão interessados em menor carga tributária, mais segurança e melhores condições de empréstimo, que não são bandeiras históricas da esquerda

Para esses empreendedores, muitos atribuem o sucesso ao próprio trabalho e à fé. Pesquisa realizada pelo DataFavela mostra que 53% dos entrevistados atribuía a melhoria de vida ao seu esforço, 24% à fé pessoal e apenas 5% ao governo. Essa descrença com relação à ação governamental na melhoria de vida revela também uma indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda.

Considerando-se também que muitos desses assalariados, hoje, são empreendedores, a crítica nesse terreno não parece fazer muito sentido a essas pessoas, atualmente mais interessadas em temas como, por exemplo, carga tributária, segurança e condições de empréstimo para pequenos empresários. Isso não significa, absolutamente, que a defesa do trabalhador e da CLT deixaram de importar a um amplo setor da sociedade, mas sim que novos interesses emergiram a partir do desenvolvimento de uma nova classe social e seus anseios.

Quanto da derrocada da esquerda pode ser creditada a essa mudança na organização do trabalho?

CARLOS GUTIERREZ No capitalismo contemporâneo, em muitas atividades profissionais, as negociações coletivas deram lugar aos acordos individuais, o que enfraqueceu os sindicatos. Dessa forma, um importante agente mobilizador nas sociedades modernas perdeu espaço. Além disso, o setor industrial, onde se concentrava historicamente a classe trabalhadora, diminuiu em todo o mundo e perde espaço para o setor de serviços, em um ambiente menos sindicalizado.

Fim da dicotomia entre operário e patrão mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, sua derrocada no mundo

No Brasil, a atividade industrial diminuiu em ritmo muito mais acelerado do que a taxa mundial, devido à financeirização da economia e ao crescimento da taxa de juros que favoreceram mais o capital especulativo.

Enquanto isso, no plano simbólico, há um processo de desconstrução da noção de classes sociais. Na gramática desse novo capitalismo, não temos mais patrões e funcionários, mas sim líderes e colaboradores; operário torna-se operador e assim por diante.

No ambiente das empresas, essas classificações mais neutras produzem novas pequenas hierarquias que desmobilizam anseios coletivos de trabalhadores, anteriormente organizados sob o mesmo status. Essa mudança não afeta somente uma palavra, mas é responsável por produzir uma nova forma de pensar e justificar o capitalismo. É a ideologia que sustenta o capitalismo moderno e que faz com que não pensemos mais a partir da dicotomia operários e patrões, mas sim como colaboradores de um mesmo ideal, sem divergências de interesses. Isso mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, o momento de sua derrocada no mundo. No Brasil, acredito que essa queda da esquerda explica-se mais pelos escândalos de corrupção dos governos petistas e pelo atual momento de crise econômica, atribuída ao PT.

Empreendedores individuais são por natureza mais liberais economicamente do que os empregados assalariados?

CARLOS GUTIERREZ A mudança da situação implica também uma transformação na visão de mundo e nos anseios das pessoas. Pode ser que as necessidades sejam outras, o que pode significar uma visão mais liberal com relação a impostos e encargos trabalhistas. Entretanto, em muitas igrejas, por exemplo, há uma pressão para a regularização dos negócios, por meio do Supersimples e também pela formalização dos empregados. Há um certo componente ético que atribui uma importância à carteira assinada dos trabalhadores, o que, talvez, não fosse encarado por muitos como uma visão perfeitamente liberal.

O que a esquerda tem a oferecer para esse novo setor da sociedade daqui para frente?

CARLOS GUTIERREZ A esquerda deve fazer um profundo processo de reflexão com relação à emergência dessa nova classe social e seus anseios e, de forma mais geral, e em relação às novas configurações do capitalismo. Além disso, precisa fazer uma autocrítica à forma como se relacionou com o poder e com o sistema político nas gestões petistas.

‘A melhor coisa que a esquerda pode oferecer é uma mudança de atitude, aceitando o protagonismo dos pobres e sua capacidade de reflexão, ao invés de limitar-se à crítica desses sujeitos como ignorantes e/ou alienados’

A sobrevivência da esquerda passa pela incorporação desses batalhadores, muitos deles evangélicos. Por isso, precisamos estabelecer uma comunicação direta com esses grupos, de forma aberta e respeitosa, aceitando o que eles têm a dizer. Só assim poderemos entender o que eles pensam e também aprender com eles, pois, certamente, eles devem ter algo a nos ensinar, principalmente no que diz respeito à mobilização de massas e auxílio social.

Isso não os exime de críticas, que devem ser feitas, mas também é necessário conhecer as críticas dessas pessoas. Acredito que a melhor coisa que a esquerda possa oferecer é uma mudança de atitude, aceitando o protagonismo dos pobres e sua capacidade de reflexão, ao invés de limitar-se à crítica desses sujeitos como ignorantes e/ou alienados. A esquerda deveria incorporá-los em seus núcleos partidários e organizações, pois aceitar a diferença e a pluralidade de visões de mundo que esse grupo social carrega é fundamental para a esquerda se transformar e também transformá-lo. A esquerda precisa, urgentemente, produzir um descentramento de seu ethos, predominantemente, de classe média, entender que não é dona de uma verdade absoluta e incorporar novas visões de mundo. Nesse processo, ganha a democracia brasileira.

Há relação entre o crescimento econômico da classe C e o crescimento da direita e da centro-direita nestas eleições municipais de 2016?

CARLOS GUTIERREZ Não. Acredito que os principais fatores de descrédito da esquerda foram os escândalos de corrupção dos governos do PT, uma cobertura maciça dos meios de comunicação a respeito desses casos, a intensa mobilização das pessoas nas redes sociais contra a esquerda e contra o que consideram como sendo de esquerda. Além disso, assistimos também ao surgimento de uma nova força política ultraliberal, caso do MBL (Movimento Brasil Livre), que teve grande poder de mobilização nas manifestações pelo impeachment.

Desde as manifestações de Junho de 2013, a esquerda vem perdendo espaço no plano eleitoral e mesmo na capacidade de mobilização de pessoas. Em 2014, Dilma reelegeu-se de forma muito apertada e os brasileiros elegeram um Congresso muito mais conservador. O atual pleito apenas foi o aprofundamento de um processo que já havia começado antes.

Com relação à classe C, não é possível afirmar que ela tenha abandonado o barco por conta de sua ascensão social. Abandonou por conta dos fatores acima. Da mesma forma, caso a economia não melhore, poderá voltar a votar em um candidato do campo de esquerda no futuro.

Fonte: Nexo.

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