Como a mídia global blinda Israel

Na TV5 francesa, após matéria sobre a abertura de investigação de corte internacional sobre crimes de guerra cometidos por Telaviv na Palestina, belas imagens da vacinação de israelenses. Escândalos de necropolítica abafados pelo biopoder

Foto: reprodução

Por Berenice Bento.

Não há muita novidade para quem acompanha a imprensa “livre” francesa de que o mantra da liberdade de expressão caracterizaria a vida pública da República da “liberdade, igualdade, fraternidade”. Tampouco há muita novidade em afirmar que esta mesma imprensa tem sido (contrariando seu mantra fundante) um dos principais portos-seguros do Estado de Israel para assegurar suas políticas continuadas de limpeza étnica e a genocidade contra o povo palestino. Digo genocidade para me referir às políticas continuadas de expulsão e extermínio dos originários da terra: o povo palestino. A genocidade não se caracteriza por um ato único (por exemplo, ligar uma câmara de gás e matar dezenas de seres humanos em um único ato). A genocidade sionista é lenta e conta com inúmeros suportes para seguir seu objetivo. A imprensa/mídia é um dos seus pilares de sustentação.

Sigo diariamente a TV5Monde pela internet. No dia 06 de fevereiro, uma das primeiras matérias do jornal informava que a promotora do Tribunal Penal Internacional (TPI), Fatou Bensouda, declarou a aprovação da abertura de uma investigação sobre os crimes de guerra nos territórios palestinos cometidos por Israel. Bensouda iniciou uma investigação preliminar em janeiro de 2015 sobre as denúncias do massacre cometido por Israel contra a população palestina residente em Gaza em 2014. Resultado do massacre: 2.251 mortos palestinos/as a maioria civil (desse total, 550 eram crianças). Israel perdeu 74, quase todos militares1. Também examinou a violência perto da fronteira entre Israel e Gaza em 2018. No dia 05/02 o TPI aprovou que sua jurisdição se estende aos territórios ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, que incluem Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza.2

Logo depois da notícia da admissão pelo TPI do processo contra Israel, o primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu se pronunciou e articulou as três palavras mágicas que operam grande parte da genocidade sionista: terrorismo, antissemitismo e direito à autodefesa. O mesmo tripé que tem sido operacionado para perseguir ativistas dos direitos humanos engajados na campanha global pelo boicote a Israel. Sem a pompa do primeiro ministro israelense, o primeiro-ministro palestino, Mohammad Shtayyeh, faz uma declaração anêmica sobre a importância daquela decisão. Todo estudante de jornalismo sabe que a verdade da notícia é construída no espaço mágico das ilhas de edição, com seus cortes e colas.

Diariamente a TV5 tem realizado pequenos informes sobre a pandemia da covid-19 no mundo (principalmente nos países francófonos) e o eixo central tem sido (já há algumas semanas) as imensas dificuldades de vacinação da população francesa, os novos desafios da ciência diante das variantes do vírus no Reino Unido, na África Sul e (mais recentemente) no Brasil. Mas no dia 06 de fevereiro algo novo aconteceu na redação da TV5Monde.

Logo após a notícia sobre a abertura de processo contra o Estado de Israel, uma matéria sobre o êxito da vacinação dos israelenses assumiu o protagonismo. Cenas de israelenses sendo vacinados, entrevistas com pessoas vacinadas, cenas da cidade de Tel Aviv. Enfim, a mensagem parecia transparente: Israel é um país do biopoder. Um lugar em que o Estado cuida de sua população. Vejam que beleza de país: mesmo com todo o sucesso na vacinação, ainda assim, antecipando-se ao pior, se estuda a proposta de um novo lockdown para se prevenir contra as novas variantes do vírus. Enfim, Israel é um Estado que cuida da vida de sua população.

Não tenho a menor dúvida de que após escutar as duas matérias, as imagens de israelenses (certamente, judeus/judias) sendo vacinados ficarão tatuadas na memória dos/as telespectadores/as e as poucas imagens dos bombardeios de Gaza em 2014, apresentadas na matéria anterior, desaparecerão. Aqui, nos movemos no espaço da retórica do poder. Não se trata, contudo, apenas de palavras. No mundo em que somos subjetivados principalmente pelas imagens, a cena da jovem israelense usando máscara e as outras entrevistas (por exemplo, com uma operadora da saúde falando um inglês impecável), não deixará espaço para nos lembrarmos de que Israel tem se negado sistematicamente a vacinar as pessoas presas políticas palestinas, de que Gaza segue bloqueada por Israel e sem permissão de saída e entrada de ajuda internacional. Depois de muita pressão internacional, espera-se que 2.500 residentes de Gaza sejam vacinados/as. Por que a TV5 não informou a seu público da catástrofe que se abate sobre o povo palestino e da responsabilidade reconhecida internacionalmente do Estado de Israel? Por que a TV5 nunca fez uma reportagem sobre a situação dos quase dois milhões de palestinos vivendo na maior prisão do mundo? Atualmente, Gaza compatibiliza 529 mortos e 52.543 infectados pela COVID3 e a pouca e precária estrutura hospitalar da “cidade” (leia-se: prisão), corre risco com os bombardeios diários de Israel.

E aqui, diante dos nossos olhos, a TV5Monde faz o trabalho de produção da realidade. Prestigiadores da imprensa sionista mundial tentam construir uma Israel deslocada das políticas de morte continuidade contra o povo palestino. Conforme já apontei em outros textos, a biopolítica israelense só pode ser compreendida vinculando-a às necropolíticas implementadas contra o povo palestino. Portanto, não estamos diante de dois conceitos desconectados (biopolítica e necropolítica). A necrobiopolítica (conceito que desenvolvi em outro momento)4 nos informa que a vacina, símbolo da vida, transformou-se (pela negação do Estado ocupante em vacinar a população que vive sob seu domínio colonial) em negação da vida. A não-vacina, portanto, tem se transformado em mais um momento de genocidade da política sionista. Assim, contraditoriamente, a TV5 ao apresentar a primeira matéria marcada pela morte (crime de guerra contra o povo palestino) e, depois, a vacinação “em massa” dos israelenses (como símbolo de um Estado protetor da vida) contribui para a genocidade do povo palestino.


1 ONU News. https://news.un.org/pt/story/2015/03/1506391-ocha-2014-foi-arrasador-para-palestinos-nos-territorios-ocupados. (acessado em 07/02/2021)

2 Relembrando a ofensiva israelense contra Gaza de 2014, https://www.monitordooriente.com/20200708-relembrando-a-ofensiva-israelense-contra-gaza-de-2014-2/, acessado em 07/02/2021.

3 Council on Internacional Relations – Palestine. www.coir.ps (acessado em 07/02/2021)

4 Bento, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? in: Cadernos Pagu. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000200405

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