Como a imprensa construiu imagem de Fidel Castro e da Revolução Cubana

fidel

Por Amanda Cotrim.

Boa parte da memória sobre Cuba, e consequentemente sobre Fidel, foi construída pela imprensa, que por sua vez não é isenta de uma posição discursiva e ideológica. Os jornais, dessa maneira, repetiram alguns enunciados sobre Fidel, silenciaram outros e regularizaram algumas interpretações sobre o líder cubano.

Para falar sobre Fidel é preciso falar de Cuba:

Cuba era um local estratégico para a política comercial da região do Caribe, sendo palco, no final do século XIX, de duas tentativas de independência. A primeira ficou conhecida como a Guerra dos 10 anos (1865-1875); já a segunda ocorreu em 1895 e teve como líder José Martí, que morreu em combate

Desde o segundo processo de independência cubana (1895-1898), a imprensa brasileira produziu informações sobre o que ocorria em Cuba, por meio do jornal O Estado de S. Paulo. O veículo foi o primeiro a veicular uma opinião, no dia 27 de abril de 1895, se colocando a favor do movimento cubano que pedia a independência e se alinhando ao discurso norte-americano da época, que tinha interesse na independência de Cuba.

Cuba tornou-se independente da Espanha, mas foi capturada pelos EUA, que interviram militarmente, economicamente e politicamente na ilha. A Ilha viveu a ditadura de Machado, na década de 1930 e de Fulgencio Batista, na década de 1950.  Cuba era uma espécie de “ilha da fantasia” para a burguesia norte-americana, com cassinos, pobreza, desigualdade, analfabetismo, praias paradisíacas; um lugar de exploração, de todas as formas que possamos imaginar.

No período da guerrilha cubana (1957 a 1959), o jornal The New York Times construiu Fidel Castro como um “líder rebelde”, fato que contribuiu para produzir um efeito psicológico para o processo histórico que se iniciava na ilha. A guerrilha cubana aconteceu como exigência histórica na relação de Cuba com suas contradições sociais, com a ditadura de Fugencio Batista e com a submissão aos EUA, mas seu processo foi, discursivamente, produzido como sendo de responsabilidade de um sujeito: Fidel Castro. Talvez por isso faça sentido até hoje ouvirmos “a ilha de Fidel”. Noticiar que a Revolução Cubana, enquanto processo histórico, político e coletivo, foi mérito ou culpa de um único sujeito acabou silenciando os (outros) sentidos que poderiam surgir sobre a Revolução. Não por acaso há quem pense que se eliminando Fidel, se elimina a Revolução.

Como a Imprensa noticiou a Revolução Cubana:

Os jornais, em sua maioria, alimentados pelas agências de notícias norte-americanas viam no início com “bons olhos” a guerrilha em Sierra Maestra, saudando Fidel Castro e seus companheiros como heróis e revolucionários. No dia 3 de janeiro de 1959, o jornal brasileiro Diário de Notícias (do grupo Diários Associados) trouxe como manchete: “O exemplo cubano”.

Mas logo após o triunfo da Revolução Cubana, houve uma transformação discursiva dos jornais e das agências de notícias em relação à Ilha. Os guerrilheiros e Fidel Castro, até então enunciados como heróis, passaram a vilões quando Cuba começou a se “esquerdizar”:

Com o triunfo da Revolução Cubana (1959), o governo revolucionário, logo nos primeiros anos, nacionalizou todas as empresas privadas, realizou uma campanha voluntária de alfabetização, julgou os crimes de guerra (sobre os quais a imprensa se posicionou, afirmando serem os paredões), promoveu a reforma agrária e disse que os EUA não iam mais intervir em Cuba. Essas ações do novo governo revolucionário romperam com uma norma social, econômica e política em Cuba. Além disso, dizer “não” para os EUA também lembrou a independência cubana, que não tinha vindo no final do século XIX.

O medo dos jornais era de uma Cuba comunista:

O medo dos jornais não era de uma Cuba guerrilheira, mas de uma Cuba comunista. No meio da Guerra Fria, Cuba surgia como uma ameaça para os demais países da América Latina, e por sua proximidade geográfica tornou-se o alvo da maior potência política do mundo. Os jornais esqueceram do Fidel herói para que novos sentidos sobre ele surgissem, apagando outros possíveis.

Cuba teve sua primeira constituição, pós Revolução, em 1961. No dia 11 de março do mesmo ano, o relatório da CIA (Agência de Inteligência Estadunidense) apresentava o objetivo dos EUA em relação a essa “nova” Cuba:

“Há aproximadamente um ano, a agência foi orientada a colocar em ação a organização de uma ampla oposição ao regime de Castro; uma grande campanha de propaganda; o apoio para atividades de resistências pacíficas e violentas; e o desenvolvimento de forças aéreas e terrestres paramilitares treinadas, compostas por voluntários cubanos. Conclusões: o regime de Castro não cairá por si, o enfraquecimento gradual da oposição interna cubana deve ser esperado. Se usadas com eficiência, as forças paramilitares têm grande chance de depor Castro, ou causar uma prejudicial guerra civil, sem a necessidade dos EUA se comprometerem com a ação manifesta contra Cuba”.

O relatório da CIA foi elaborado pela maior potência militar e política na era capitalista. Fidel Castro foi nomeado o responsável pela Revolução em Cuba e, portanto, tornou-se o alvo político e discursivo dos EUA e, consequentemente, dos jornais que apoiaram os estadunidenses em relação à Ilha.

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Como o discurso histórico é constituído politicamente, podemos questionar: até que ponto os dizeres sobre Cuba pelos jornais não foram movidos pelos dizeres dos EUA?

O silêncio da ditadura militar

No Brasil, assim como na maioria dos países da América Latina, a ditadura civil militar (1964-1985) é peça chave para a compreensão dos discursos dos jornais sobre Cuba e Fidel, pois a ditadura organizou uma memória sobre a Ilha. A ditadura civil militar não se mostrou apenas um regime “militar”, mas político, cultural, econômico, social, discursivo. Com a censura, quase nenhuma informação sobre Cuba chegava pelos jornais. Nesse período, o perigo era o inimigo interno: o comunismo. E onde “morava” o comunismo, o perigo vermelho? Em Cuba. Desse modo, a Ilha foi apagada dos jornais. Afinal, proíbem-se certas palavras para se proibirem certos sentidos.

A desintegração da URSS

Os jornais especulavam se, com a desintegração da URSS, Cuba também abandonaria o “comunismo”. A manchete da Folha de S. Paulo, de maio de 1991, dizia: “Fidel defende ditadura no seu 30º aniversário”.

Em 1992, os EUA aprovaram a Lei Torricelli, proposta pelo Partido Democrata do Estado de Nova Jersey, Roberto Torriceli. O presidente da época era Bush pai. A lei é extraterritorial, ou seja, aplicada além das fronteiras dos EUA; é como se uma lei brasileira pudesse ser aplicada na Argentina. A lei proíbe que barcos que atraquem em portos cubanos realizem negócios com os EUA, além de autorizar o presidente estadunidense a aplicar sanções a governos que prestem assistência a Cuba. “Meu objetivo é executar a destruição em Cuba… Minha tarefa é rebaixar Fidel Castro”, disse o autor da lei. Esse enunciado, que relaciona, pela memória, Cuba a Fidel, se propagou. O sentido é que, quando Fidel não existir mais, o sistema socialista em Cuba desaparecerá. Esse discurso é mais eficaz, porque elimina a ideia de que a Revolução existe pela conjuntura e adesão popular, mas pela perversidade de uma mente.

Agora, com o desaparecimento físico de Fidel Castro, estamos diante de um acontecimento histórico dos mais importantes, porque Fidel sofreu mais de 600 tentativas de assassinato; os EUA tentaram muito e tentaram de tudo. Agora mesmo estão tentando por outro caminho, o diplomático. Mas Fidel ajudou a construir algo chamado Revolução, um processo político que produziu nos cubanos uma ética que muita gente nunca conseguirá entender, por isso arrisco dizer que o povo cubano é soberano e não retrocederá.

Amanda Cotrim é Jornalista e Doutoranda em Análise de Discurso pela Unicamp. Estudou cinema na Escola internacional de Cinema e TV de Cuba, foi correspondente na ilha pela revista Caros Amigos em 2012 e é Mestre pela Unicamp com pesquisa sobre a representação de Cuba na mídia mundial.

Fonte: Diálogos do Sul.

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