Comissão Memória e Verdade revela participação ativa da UFSC na Ditadura Civil-Militar

Durante a Ditadura Civil-Militar havia uma conexão entre os setores militar e policial e a administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A universidade teve uma participação ativa ou foi omissa no processo de repressão e perseguição a professores, estudantes e técnicos administrativos. Ficou comprovado que o papel de espionagem, denúncia, censura, repressão e controle ideológico foi assumido em determinados períodos pela administração da instituição, através de seus membros, ou do próprio reitor. Essas são algumas das informações que constam no Relatório Final da Comissão Memória e Verdade  da UFSC (CMV-UFSC), apresentado em evento na noite de segunda-feira, 14 de maio, no auditório da Reitoria. Além de trazer à tona todos esses dados, o relatório também faz recomendações à universidade. O documento está disponível na íntegra aqui.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Jean-Marie Farines, coordenador da Comissão, iniciou a apresentação do relatório afirmando que há uma ideia equivocada de que os efeitos da ditadura militar não foram tão significativos no âmbito da universidade: “A história que permanece na UFSC é a de que aqui não houve fatos marcantes de repressão, que reinava a paz e a cordialidade entre administração, professores e estudantes. E que graças a esse quase consenso, e pelo protagonismo de seu reitor e de sua administração, a UFSC foi pioneira da Reforma Universitária. Um dos objetivos principais da Comissão foi buscar nas fontes primárias e nos depoimentos fatos que validassem ou não a narrativa construída até o momento na UFSC. Esses documentos forneceram subsídios para reescrever a história e para trazer a verdade para a memória da comunidade universitária. Não podemos nos restringir unicamente pela visão oferecida por um mito que foi construído.”

Muitas universidade do país, conforme lembrou Jean-Marie, tiveram uma atitude de resistência à ditadura, como foi o caso da UFMG. Na UFSC, pelo contrário, já em 2 de maio de 1964, logo após o golpe, uma portaria do reitor designou uma comissão de inquérito que buscava atender ao Ato Institucional 1. “Durante 45 dias essa comissão promoveu uma extensa varredura de informações sobre professores, estudantes e funcionários da universidade, à caça de elementos considerados subversivos. Seu trabalho se desenvolveu na mais estreita relação com setores militares estabelecidos na capital”, afirmou Jean-Marie. Um dos alvos preferenciais foi o professor de Direito Henrique Stodieck.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

O relatório faz duras críticas a João David Ferreira Lima, primeiro reitor da UFSC: “O reitor Ferreira Lima se mostrou um fiel cumpridor das ordens militares, um leal seguidor e defensor do Golpe, permanecendo aquém da relevância e da dignidade de seu cargo, como dirigente máximo de uma Universidade.” O relatório afirma ainda que Ferreira Lima “mostrou-se circunscrito a seu papel de gerenciador e fortalecedor das demandas da ditadura, o que fez com pertinácia e envaidecimento. Estudantes, como Francisco Mastella, serão abandonados à sanha das forças da repressão. A temporada da caça às bruxas será aberta, contando não só com a cumplicidade, mas também com a contribuição direta e decisiva da própria reitoria”. No texto há uma declaração do professor Armen Mamigonian, referindo-se ao surgimento da “direita raivosa” dentro da Universidade: “Houve uma espécie de guinada lenta, gradual. O pessoal foi vendo que quem mandava não eram mais os velhos professores, como Stodieck. Percebeu que quem mandava era a reitoria, o próprio Ferreira Lima. Todos foram para a direita com a maior tranquilidade do mundo. Um pessoal que balança conforme a direção dos ventos.”

Segundo Jean-Marie, a repressão ocorreu desde o início, tanto partindo de fora como de dentro da própria instituição. Em 1965, por exemplo, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) interviu diretamente na eleição para nova diretoria do Centro Acadêmico XI de Fevereiro (CAXIF), do curso de Direito. Uma tropa de choque entrou na universidade e recolheu as urnas. O estudante Ivo Eckert, que era candidato, respondeu a Inquérito Policial Militar junto ao 14º Batalhão de Caçadores, como resultado de seu indiciamento pela Comissão de Inquérito da UFSC. Segundo o relatório, a Comissão “não encontrou, nos documentos oficiais que consultou nos arquivos da UFSC ou nos depoimentos colhidos, informações claras e precisas de expulsões de estudantes e de expurgos de servidores e professores da UFSC, a partir da utilização direta do decreto 477, após o AI-5. Entretanto, diversos testemunhos denunciam que muitas não contratações de docentes ocorreram nesse período, além da pressão que esse instrumento e sua possível aplicação exercia sobre eventuais ‘veleidades’ do movimento estudantil.” Ronaldo Andrade, que foi presidente do Diretório Acadêmico do Centro de Estudos Básicos (DACEB) de 1973 a 1974, declarou em seu depoimento à Comissão: “Era um clima de medo… nós não tínhamos greve, isso não existia.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Espionagem

A universidade foi submetida a uma rede de espionagem através da Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI), que fazia parte do Serviço Nacional de Informações (SNI). Na UFSC, a AESI foi criada por uma portaria do reitor pró-tempore, Ernani Bayer, em fevereiro de 1972. No início, a AESI ficou localizada junto ao Gabinete do Reitor, o que demonstra explicitamente sua participação direta na vigilância e perseguição de membros da própria comunidade universitária: “Na UFSC, a AESI ficou diretamente ligada ao reitor. Era um órgão de destaque. Durante muito tempo, ficou localizada em uma sala discreta, sem placa na porta, ao lado do gabinete do reitor. Na década de 1980 passou a ter uma sala no térreo do prédio da reitoria. A Comissão aponta que houve um envolvimento substancial de estudantes, professores, técnicos e membros da administração em um esquema de coleta de informações durante a Ditadura Militar. Alguns por omissão, outros por medo, outros por necessidade financeira ou obrigação. Era comum também o uso de agentes infiltrados, como mostram alguns documentos que encontramos”, relata Jean-Marie.

Demissões e não contratações

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

O relatório também aponta que “durante o período correspondente à ditadura civil-militar, houve na UFSC demissões e não-contratações de professores e servidores”. Entretanto, o texto afirma  que a Comissão não chegou a resultados conclusivos sobre essa questão, “uma vez que, no caso de não contratação, por exemplo, muitas vezes não conseguimos depoimentos dos testemunhos diretos e que se sentiram prejudicados nem, em alguns casos, os registros e as provas concretas de perseguição política”. Mas o relatório destaca como casos de demissões os professores Aldo Ávila da Luz, Eugênio Doin Vieira, Osmar Cunha, Gerônimo Vanderlei Machado, Vilson Rosalino , João Soccas, e o técnico Valci Lacerda. Os casos de não-contratações envolveram Eglê Malheiros, Gerônimo Wanderley Machado, Pedro de Castro e Valmir Martins.

Recomendações

A CMV-UFSC fez 16 recomendações à Universidade. Entre elas está a organização e publicação do Relatório Final em forma de livro. Também com o objetivo de divulgação de dados, a Comissão propõe a criação de um Acervo da Memória e dos Direitos Humanos e de um documentário, que está parcialmente editado. Além disso, foi recomendada uma Resolução do CUn para que a universidade não atribua títulos e homenagens a pessoas que, reconhecidamente, feriram ou ajudaram a ferir os direitos humanos durante a ditadura civil-militar. A Comissão sugere que o próprio Conselho reavalie homenagens dadas àqueles que comprovadamente contribuíram para perseguições durante a ditadura. Todas as recomendações estão disponíveis aqui.

Os membros da Comissão enfatizam que o Relatório Final é apenas uma etapa preliminar do “reestabelecimento da Memória, Verdade e Justiça na UFSC, tendo plena consciência da necessidade de se defender os Direitos Humanos em todas as circunstâncias. A história recente da UFSC nos mostrou que o arbítrio, a truculência, a violência e o desrespeito ao ser humano continuam presentes no país, a despeito inclusive da lei que garante a autonomia universitária.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Histórico da Comissão

A CMV-UFSC faz parte de um movimento nacional que surgiu em 2012 após a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) através da Lei 12.528/2011. Comissões como a da UFSC foram organizadas em nível estadual, municipal e em diversas instituições de todo o país. A CMV-UFSC foi criada pela Resolução Normativa nº 48/Cun/2014, após votação, por unanimidade, em sessão do Conselho Universitário (CUn) de 16 de Dezembro de 2014.

Inicialmente, a CMV foi coordenada pela professora Ana Lice Brancher, que alegou razões pessoais para deixar o cargo. Assumiu então o professor Jean-Marie Farines. Durante sua vigência, participaram da Comissão oito professores, dois técnicos administrativos em educação e 16 estudantes. Foram colhidos 21 depoimentos e realizadas três audiências públicas, com a participação de 13 depoentes. Foram consultados documentos da própria universidade e do Estado, além de documentos sigilosos do Serviço Nacional de Informações (SNI), disponibilizados pelo Arquivo Nacional de Brasília; e da Delegacia de Ordem Política e Social de Santa Catarina (DOPS/SC), encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Livros, teses, dissertações e artigos científicos sobre o tema também foram consultados e analisados.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

O atual reitor da UFSC, Ubaldo Balthazar, que integrou a Comissão durante pouco mais de um ano, esteve presente na cerimônia.  Após receber oficialmente o relatório como presidente do CUn, Ubaldo se comprometeu a garantir um espaço para a Comissão apresentar os resultados do seu trabalho em uma reunião do Conselho: “Precisamos recuperar a memória do que ocorreu aqui nesse período obscuro da ditadura. Graças ao trabalho muito bem feito de um grupo de abnegados, no qual eu não me incluo, e como o próprio Jean-Marie já colocou, o resultado não é um trabalho definitivo, por suas lacunas, mas penso que representa a verdade do que aconteceu em nossa universidade durante a ditadura civil-militar.”

Relatório Final, vídeos e diversos outros materiais produzidos pela Comissão estão disponíveis para acesso público no site Memória e Direitos Humanos.

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

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