Comer, ato político

Por João Peres e Moriti Neto.

Está no ar joio e o trigoSite jornalístico sobre os sentidos da alimentação, e da tentativa de submetê-la à ditadura de um punhado de megacorporações, não é sobre como comer (bem ou mal), nem sobre dietas da moda. Tampouco quer repercutir a última pesquisa provando que o alimento X provoca o efeito Y em nosso organismo. E, menos ainda, difundir ingredientes milagrosos. Esse é um projeto sobre comer como ato político, com profundas implicações sociais, econômicas e ambientais.

Isso significa que uma questão tão complexa não pode ser individualizada . Já há gente demais culpando o indivíduo pela obesidade, pelas doenças, por qualquer coisa que dê errado. Esse é um sistema muitíssimo maior do que nossos corpos frágeis. Entendemos que nossa missão é justamente refletir essa complexidade, buscando compreender como chegamos até aqui e como podemos sair dessa.

Sim, sair dessa, porque, apesar do caos que reina nessa seara, há um consenso: as coisas não vão bem. Não é possível considerar normal um mundo que caminha para a marca de um bilhão de obesos. E que em breve terá mais crianças com sobrepeso do que famintas. O Brasil não foge à curva: mais de 50% da população vive agora com sobrepeso.

Há muitas opiniões sobre como chegamos até aqui: somos preguiçosos, desleixados, comemos sem parar para pensar, nosso intestino tem muitas bactérias malvadas, a genética não ajuda. Com todo o respeito, acreditamos que parte disso pode ter um papel, mas tem sido usado como distração para ocultar o real problema.

Nos últimos 50 ou 60 anos, houve um conjunto de mudanças. Altos subsídios à soja e ao milho, por exemplo. A formulação de produtos mais e mais tentadores com inúmeros derivados desses grãos, resultando em alguma coisa que não nos remete a alimentos como os conhecíamos. A desregulação dos sistemas de saúde e das fronteiras, com a abertura de mercados globais a algumas poucas empresas. Isso só para ficar no básico.

Em espanhol, comida chatarra. Em inglês, junk food. No Brasil, não temos um termo que designe o conjunto de produtos altos em sal, gordura e açúcar. Adotamos em O joio e o trigo a nomenclatura ultraprocessados, tal como consta do Guia Alimentar para a População Brasileira, editado em 2014 pelo Ministério da Saúde. Apesar de ser contestada pela indústria e por setores acadêmicos, entendemos a classificação como adequada, crescentemente aceita na comunidade científica e de fácil compreensão para o público em geral.

E está aí o ponto central para nós. É a realidade mais óbvia a que desejamos alcançar. Aquela que – por contraditório que soe – é também a mais difícil de ser reconhecida. É nas trincheiras do cotidiano, em lugares considerados comuns, banais até, como um lar, uma padaria, uma lanchonete, um bar ou um supermercado, que cidadãs e cidadãos, crianças e adultos, famílias e indivíduos constroem hábitos alimentares. Em muitos casos, esses hábitos são balizados pela imagem, o discurso e o poder político-econômico de agentes que são onipresentes na rotina das comunidades, tal o tamanho e a força que ganharam ao longo dos anos.

Atravessando fronteiras físicas e simbólicas mundo afora com ações políticas, midiáticas e no campo da ciência, essas forças dirigem há tempos os caminhos da alimentação, sendo capazes de produzir saúde ou doença, vidas longevas e de qualidade ou mortes precoces e evitáveis. Sem falar nas consequências nos aspectos culturais e ambientais que, assim como no caso da saúde, têm impacto difuso: culturas são postas à extinção e o planeta é ininterruptamente esgotado.

Por outro lado, sabemos que, em meio à era da informação em pílulas e da pós-verdade, é impossível ao cidadão ter plena consciência do que escolher como o tempo todo. Enquanto o celular toca, o WhatsApp zune e o Facebook sequestra atenções, temos que fazer escolhas cada vez menos raciocinadas. Acelerar é a prioridade. Então, o perigo aumenta, porque, na correria do dia a dia, no embalo da cultura corporativa que pauta a vida no e do planeta, é fácil ficar à deriva, à mercê daqueles que detêm o poder de influenciar nossos comportamentos, de controlar nossas mentes e corpos e, supostamente, tornar as nossas vidas “mais práticas”.

De antemão, nos desculpamos se essas palavras soam como um clichê ou um amontoado de certezas. Somos, igualmente, atingidos por esse conjunto de exigências que nos quer cada vez mais multitarefas e velozes. Não temos a pretensão de ensinar ninguém a pensar. Longe disso. Queremos, isso sim, ir além da simples falácia de que “todos temos poder igual de escolha” num mundo em que as desigualdades são enormes – tanto na má distribuição de itens materiais quanto na capacidade de influir em decisões que afetam (positiva ou negativamente) a vida de indivíduos e coletividades; que direcionam governos e mandatos.

Crédulos que somos no papel social e de defesa do interesse público exercido pelo jornalista, apesar de toda a precariedade que vem minando a profissão, estabelecemos como compromisso priorizar o debate. Assim, com O joio e o trigo, nosso intuito maior é peneirar conteúdo e forma para que possamos construir uma experiência de informação radicalmente democrática, de troca, que nos permita – por que não? – ao menos reduzir as distâncias entre aqueles que concentram poder e privilégios e os que ainda se veem sem direitos tão básicos, como o de se alimentar de maneira saudável.

Claro que esse tipo de experiência é impossível sem olhar, vivenciar e escutar muitos lados. Por isso, optamos pela reportagem como o nosso carro-chefe. É o que nos deixa mais à vontade para contar histórias. Além disso, é nesse gênero que confiamos para oferecer um espaço onde possamos todos, de fato, aprender a escolher pensando. Que sacudamos essa peneira coletivamente. Juntos.

Imagem: Peter BrueghelBanquete de Casamento (1518-19).

Fonte: Outras Palavras. 

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