Coitada da base monetária

Por Rolf Kuntz.

A crise continua, o desemprego aumenta e 378.481 postos de trabalho com carteira foram fechados neste ano, até abril. Desde 1992, começo da série histórica, foi esse o pior resultado para o período. A notícia saiu nos jornais de 26/5, quinta-feira. No mesmo dia a imprensa divulgou as últimas informações sobre o crédito. Alguns editores deram destaque aos juros do cheque especial: chegaram a 308,7% ao ano, taxa nominal mais alta da série iniciada em 1994. Houve quem desse mais importância a outro aspecto da notícia. Pela primeira vez em 13 anos o estoque de crédito encolheu num mês de abril (recuo de 0,6%). Além disso, a expansão de 2,7% em 12 meses  foi a menor desde 2007. Descontada a alta de preços, foi uma contração violenta.

Jornalisticamente, dirão alguns, a melhor escolha foi destacar os juros de 308,7%, um detalhe muito mais vistoso que os dados sobre a contração do crédito. Pode-se acrescentar: é melhor começar a notícia mostrando como a vida do leitor é afetada. Talvez valesse a pena chamar a atenção, também, para os juros cobrados no caso do refinanciamento do cartão de crédito. A taxa de 448,6%, embora pouco menor que a do mês anterior, ainda é assustadora. Essa argumentação é sem dúvida respeitável, mas também se pode examinar o assunto de outra perspectiva.

Se o objetivo é mostrar ao leitor o estado das coisas, qual o detalhe mais importante? Nesse caso, é a contração do crédito. É esse o dado relevante, quando se trata de informar sobre um quadro de recessão. Os juros do cheque especial e do rotativo do cartão de crédito podem ser mais inteligíveis e mais atraentes, de imediato. Mas são dados menos informativos, até porque essas taxas, no Brasil, são normalmente muito altas, mesmo em tempos de prosperidade.

Pode-se desdobrar facilmente a informação inicial sobre a redução do estoque de crédito. Basta mostrar como diminuíram as operações com empresas e consumidores, indicando em seguida como encolheram os financiamentos para certos negócios, como, por exemplo, para a compra de carros. O leitor pode entender todos esses pontos facilmente e, ao mesmo tempo, compor uma visão clara da situação da economia. Os quadros divulgados pelo Banco Central (BC) nem sempre são acessíveis, mas o relatório é aberto com um texto de apresentação razoavelmente didático. Qualquer redator pode produzir, a partir desse material, um texto base para o noticiário.

Mas o relatório inclui também detalhes mais técnicos e bem mais complicados. Traduzir esses dados para o chamado leitor comum é um tanto trabalhoso, mas, havendo espaço, o esforço pode compensar. Quem se aventurar por esses lados da última nota do BC terá uma visão mais clara do arrocho monetário, isto é, do aperto promovido pelas autoridades para conter a inflação. Será bom começar pela base monetária, formada pela soma do dinheiro emitido e das reservas dos bancos. A base encolheu 1,6% em abril e 0,7% em 12 meses. No mês, a variação resultou da contração de 6,9% das reservas e de 0,6% do dinheiro emitido pela autoridade.

Sumiço do noticiário

A base monetária, a menor unidade usada na mensuração da liquidez, foi um conceito usado com freqüência na discussão pública e na cobertura econômica até os anos 1980. Pode ter ainda aparecido no começo da década seguinte, mas depois sumiu do noticiário e até das declarações das autoridades, mas continuou, é claro, exibida nos documentos do BC. Na imprensa, coitadinha, ficou esquecida.

Depois da base vêm os conceitos de meios de pagamento mais próximos da experiência comum. O conceito mais simples, também conhecido como M1, corresponde à noção mais estrita de moeda: é o dinheiro em poder do público mais os depósitos a vista. Nesse caso, a contração foi de 0,4 em abril e de 2,6% em 12 meses (números correspondentes à média dos saldos diários). Somando-se a isso os depósitos de poupança e os títulos privados, chega-se a M2. Nesse caso, houve redução de 0,55 em abril. Ainda faltam M3 e M4.

Quando se chega a esses conceitos, aparece algo interessante: nos dois agregados houve aumento, provocado pela expansão dos fundos de investimento e dos títulos públicos. Em outras palavras, houve ao mesmo tempo um arrocho monetário, refletido no crédito curto e caro, e uma expansão das aplicações em fundos lastreados em títulos públicos e nos próprios títulos, diretamente. De um lado, o BC apertou e encareceu o crédito, contribuindo para a recessão. De outro, o Tesouro continuou disputando, com os papéis de sua dívida, o dinheiro ainda disponível no mercado. Pode-se contar esses detalhes de modo mais simples, mas vale a pena mencioná-los para dar uma ideia mais completa do mecanismo da crise.

Afinal, a vasta destruição de empregos com carteira e o encolhimento do crédito foram noticiados na mesma e edição e no mesmo caderno de economia. As duas informações eram componentes da mesma história. Deste ponto de vista, acertou quem deixou mais clara essa conexão. Mas este é, obviamente, um ponto de vista entre outros.

*Rolf Kuntz é colaborador do jornal O Estado de São Paulo e professor titular de filosofia política na USP


Imagem: EBC

Fonte: Observatório da Imprensa

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