“Coisa de preto” – um significado heroico de resistência

Por J. Roberto Militão.

Nestes sete dias de novembro 2017 com o evento da expressão ´Coisa de Preto´ li dezenas de artigos, manifestações diversas e principalmente, mais de 2.000 comentários nos portais e redes sociais. Trago aqui considerações preliminares. Nestes tempos de crise, obrigações profissionais e de ativista contra o racismo, não poderia deixar de oferecer uma visão, na condição de preto ativista contra o racismo, digamos, de dentro para fora, com o viés de quem não alimenta ódio racial e que acredita que a superação do racismo se trata, a toda vista, de um empreendimento para o esforço de todos, a todo momento, em todo o mundo.

Quase todos os comentários são de pessoas brancas solidárias à luta contra o racismo, porém, há também os comentários de ´aliados´ que não compreendem que a luta contra o racismo não é questão dos pretos e pardos, mas uma questão de toda a sociedade. Em especial aos “bem intencionados” precisam mais do que negarem o racismo. Precisam praticar o antirracismo em seu dia a dia!

Desculpem, mas a primeira coisa que observei é que toda a reação publicada não tem por base nem dá a devida importância para a raiz histórica da locução proferida com escárnio pelo jornalista: “Coisa de Preto” tem um magnífico significado histórico e um núcleo conceitual que a nossa literatura e a nossa história oficial, por serem racistas, sonegaram.

A verdadeira origem da expressão “Coisa de Preto” que hoje tem o significado racista de presunção de culpa dos pretos e pardos na forma evocada por Waack, significava na origem, exatamente isso: os pretos eram culpados de praticarem um vitorioso ato de rebeldia e tem como base um movimento heroico de pretos escravizados. Se trabalhassem bem e com capricho conforme faziam os ´negros escravos´, deixariam o escravocrata ainda mais poderoso e com recursos para adquirir ainda mais escravos e o sistema enriquecido se retroalimentando e financiando ainda mais o sequestro, aprisionamento e translado de mais africanos.

Assim, para causar prejuízos e empobrecer o senhor, ou reduzir seus lucros, eles executavam mal os serviços. Quebravam engrenagens do engenho, deixavam apodrecer os frutos colhidos, não recolhiam todas as pedras na mineração enfim, se não podiam fazer greves por melhores condições e dignidade, boicotavam o próprio trabalho e reduziam o lucro da produção.

Portanto “Se não fizesse na entrada tinha que fazer na saída” de fato era um gesto heroico de resistência ao sistema cruel. Isso era ´Coisa de Preto´ lamentavam os escravocratas! Os que se conformavam com a condição de escravos eram simplesmente ´negros´ confiáveis ao sistema.

Porém quem cometia ato de resistência, naquelas condições, eram subversivos e de fato fazia ´Coisa de Preto´ e esses pretos eram ferozmente punidos. Por isso, fugiam e criaram neste Brasil afora, milhares de Quilombos, pois ocupavam e resistiam com nossas ´terras de pretos´ onde poucos ousavam ir busca-los.

Desde 1988, com o reconhecimento do direito à titulação da terra dos ´Remanescentes de Quilombos´, mais de 1.100 ´Terras de Pretos´ já foram identificados e cadastrados. Somente no Maranhão existem mais de 500 e, sob a tutela da família Sarney, nenhum deles recebeu o título de propriedade conforme prevê o art. 68 das Disposições Transitórias da CF/1988. Há um dado a ser considerado. Até hoje as autoridades tem ódio contra os ´pretos´ que ocuparam terras: eles não se submeteram à escravidão e resistiram heroica e subversivamente a um sistema econômico que durou 350 anos.

Por falar em Sarney, neste momento de ´Consciência Negra´ não poderia deixar de consignar que foi ele o Senador Presidente do Congresso Nacional que comandou a aprovação das leis raciais do Estatuto da Igualdade Racial e da Lei de Cotas Raciais nas Universidades.

Dada a realidade histórica dos afro-maranhenses (o mais baixo IDH dentre todos os brasileiros em 2016) e minha convicta oposição às leis de segregação de direitos raciais, esse patrocínio parlamentar do Senador Sarney é a prova maior e incontestável de que tais leis raciais – em que o estado afirma uma presumida inferioridade dos pretos e pardos – não tem a natureza de nos beneficiarem, se destinando a domesticar e manter submissos uma legião de novos ´negros´. Aqueles que não faziam e não farão “Coisa de Preto…”.

Por isso, em época de ENEM em que os debates sobre as famigeradas ´cotas raciais´ se tornou pauta obrigatória para a juventude brasileira tenho me desdobrado para cumprir os compromissos e participar dos debates em que a estupidez de um parlamento racista – o pior parlamento da história do Brasil – e de um Supremo Tribunal Federal inculto – o pior Supremo da história do Brasil – nos outorgaram e legitimaram a presença de direitos em bases raciais com a outorga e exclusão de direitos com base na falácia de um pertencimento racial que a humanidade não tem, e a nação brasileira não precisava, violando os arts. 5º e 19 da CF/1988.

“Coisa de Preto” nos traz a oportunidade de lembrar que estamos na década dos afrodescendentes instituída pela ONU – de 2015 a 2024 – exatamente a fim de proporcionar ao mundo um debate civilizado sobre a história recente da humanidade e a tragédia que o mundo ocidental patrocinou e foi beneficiário na África – o berço da humanidade – e jogou nas periferias do mundo moderno, centenas de milhões de afrodescendentes na diáspora, os mais empobrecidos e os que menos recebem políticas públicas.

No Brasil em pleno mês de novembro dedicado à ´Consciência Negra´ uma conquista da luta antirracista destinada a colocar na pauta da mídia, das escolas, da academia e dos debates sociais a importância da revisão histórica e da indispensabilidade de mudanças sociais profundas a fim de incorporar ao exercício de direitos humanos e direitos à cidadania plena sonegada aos afro-brasileiros eis que a expressão “Coisa de Preto” – deturpada em seu sentido original – polarizou os debates e nos impôs, aos antirracistas, uma pauta obrigatória: a ofensa verbal que sofremos desde a primeira infância machuca tão profundamente muito mais que uma violência real, uma agressão física.

Para coroar essa reflexão, em razão de alguns argumentos a favor do conceituado William Waack, tipo como ´gente do bem´, trago o extraordinário artigo da Ana Maria Gonçalves, de 2016, muito adequado para a reflexão de nossos aliados na luta contra o racismo: os “bem intencionados” não bastam sê-lo. Precisam ser de fato ativistas do antirracismo!

Há no início do livro “The Erotic Life of Racism”, de Sharon Patricia Holland, uma história que sempre me vem à cabeça quando ouço a expressão “gente de bem” e suas variáveis, como cidadão, homens, mulheres ou pessoas de bem. Holland conta que, alguns dias depois da morte do rapper Tupac Shakur, em 1996, ela parou o carro no estacionamento de um mercado, em Palo Alto, Califórnia. Estava acompanhada da filha de uma amiga, Danielle, uma adolescente de quinze anos, ouvindo algumas canções do rapper que tocavam no rádio, quando uma senhora se aproximou de sua janela e pediu que ela tirasse o carro dali para que pudesse descarregar as compras que tinha acabado de fazer.

Não havia, de acordo com Holland, nenhuma hesitação na voz da mulher, apenas a certeza de que seu pedido seria atendido. Olhando o posicionamento dos carros, Holland percebeu que a senhora poderia muito bem descarregar as compras pelo outro lado, onde não havia qualquer impedimento, apenas uma vaga vazia. Respondeu então que esperaria dentro do carro, sem abrir as portas para não atrapalhá-la, mesmo porque a conversa entre ela e Danielle estava interessante, com a garota falando do impacto da morte do rapper sobre os amigos da escola.

Quando a senhora terminou de guardar as compras, as duas desceram e, ao passarem por ela, ouviram, com o mais indignado dos tons, o comentário “E pensar que marchei por vocês!”. A senhora se referia às marchas que aconteceram durante a luta pelos direitos civis, e Holland, bastante estupefata a princípio, resolveu que deveria fazer algo, para que se calar em situações como aquela nunca se apresentasse como opção para a garota ao seu lado. “Você não marchou por mim; marchou por você mesma”, respondeu, “e se não entende isso não há nada que eu possa fazer.”

Pensando sobre o assunto, Holland concluiu que pessoas brancas, na maioria das vezes, esperam que pessoas negras, principalmente mulheres, interrompam conexões com amigos e familiares para que possam servi-las, e que a recusa a fazê-lo acaba sendo encarada como uma grande afronta. Patroas e patrões, por exemplo, esperam que empregados domésticos abram mão do convívio familiar para atendê-los altas horas da noite e/ou nos finais de semana; e não é raro o caso de babás que não conseguem acompanhar o crescimento dos próprios filhos para cuidarem dos filhos alheios.

A senhora branca do estacionamento havia passado décadas acreditando que a luta pelos direitos civis tinha sido uma luta pela liberdade dos negros apenas, e não da sociedade como um todo. E sendo algo para o outro, e não para si, acreditava também que este outro lhe devia algo, principalmente porque, aparentemente, os objetivos do outro haviam sido alcançados com a sua ajuda. Esta é a ideia que me vem à cabeça quando vejo/ouço “gente de bem” – o que, com certeza aquela senhora se considerava, assim como Alma White.

Alma Bridwell White nasceu em 1862 e viveu até 1946, tendo, neste período, fundado a Pillar of Fire Church, sido a primeira mulher ordenada bispa dos EUA, se tornado uma conhecida feminista a lutar pelo voto das mulheres, aberto 61 igrejas, sete escolas, fundado dez periódicos, entre jornais e revistas, e duas estações de comunicação. Alma White, com certeza, se via e era considerada “gente de bem”, tanto que um dos principais jornais fundados por ela foi batizado de “The Good Citizen”, algo como O Bom Cidadão, ou O Cidadão de Bem.

O conteúdo do periódico logo atraiu a atenção da Ku Klux Klan, tornando-se também órgão divulgador das ideias da organização supremacista. Alma White via a ligação como altamente benéfica, pois acreditava que a Klan traria a parceria ideal que a ajudaria a lutar pelos direitos civis das mulheres brancas protestantes enquanto mantinha as minorias (negros e imigrantes) nos seus devidos lugares, segundo a interpretação bíblica feita por ela: “Onde as pessoas buscam a igualdade social entre as raças branca e negra, elas violam as ordens da Sagrada Escritura em todos os seus códigos morais e sociais”, publicou em um de seus sermões.

Racismo não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo.

A gente de bem se acredita sempre bem intencionada ou autorizada por um Bem maior, como Alma White, ou merecedora de algum tipo de vantagem e reconhecimento eternos e gratuitos, como a senhora do estacionamento do supermercado. É claro que o exemplo de Alma White é mais radical, mas o comportamento da senhora do supermercado não é incomum nem entre as pessoas consideradas de esquerda. E sendo assim, comportamento de aliados dentro de movimentos políticos e sociais, é muito mais difícil de combater, exatamente porque são aliados e, na maioria das vezes, verdadeiramente bem intencionados.

Não é raro ouvir de gente de esquerda, por exemplo, que o problema racial está embutido na desigualdade social; ou que certos assuntos como violência contra a mulher negra não deve ser discutido dentro de movimentos anti-racistas, porque os enfraqueceria e dividiria. Penso exatamente o contrário: que certos calcanhares de Aquiles podem e devem ser discutidos com honestidade, para que o movimento como um todo se fortaleça. E estes, como vários outros relacionados à questão racial, serão tema da coluna que hoje início no The Intercept Brasil.

Havia a possibilidade de esta primeira coluna ser publicada no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Data mais do que necessária para se chamar a atenção para assuntos que estão diariamente em discussão entre os que se dedicam à causa anti-racista, mas que não atingem o restante da população de uma maneira mais direta e mais cotidiana. É exatamente o que esta coluna pretende fazer com o tema racismo e seus tentáculos: ampliar a discussão, naturalizar a conversa, quebrar os tabus, chamar a atenção para a violência cotidiana, para a necessidade de ação e discussão que vai além do dia, do mês ou da década da consciência negra e da luta de todos os afrodescendentes da diáspora. Fazer entender que racismo não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo, inclusive – ou principalmente – de toda essa gente de bem.

Muito axé para todos!

Fonte: Jornal GGN

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